sábado, 7 de maio de 2022

Zé Celso e o nosso continuar esperando Godot em pleno 2022 [Diálogos com o teatro]

* Atenção: este texto possui spoiler da peça!


Beckett, através de seu teatro - e toda sua literatura - do absurdo, leva ao paroxismo cenas que, no fundo, são o nosso mais banal quotidiano, mas que normalizamos - até como forma de suportar o sem sentido de ações em um mundo (socialmente construído) que reiteradamente nos nega a possibilidade de criar sentido à nossa existência. "A gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão que a gente existe", diz Estragon, talvez numa frase já caduca para o século XXI, primeiro porque a gente não precisa ter a impressão de que existimos, precisamos passar essa impressão; e segundo porque estamos num tempo em que crianças são instadas a obedecer até mesmo em seus momentos de lazer, entretidas e devidamente caladas por parafernálias eletrônicas ou animadores de festas, que negam qualquer tempo vazio por onde a criatividade e a autonomia possam florescer - porque uma pessoa diante do vazio é uma pessoa que questiona e incomoda, uma pessoa que inventa e pode fugir do controle. 

A não ser que seja a pessoa o próprio vazio: desprovido de qualquer relação com o tempo que não seja de tédio, como Estragon, a viver num eterno presente, em que sequer as marcas no corpo - a ferida da perna, do chute de Lucky (ou Felizardo, como na versão do Oficina), a necrosar - conseguem imprimir uma memória, e cujas lembranças são apenas as referências mais óbvias para estar no mundo - um mundo muito estreito, ainda por cima -, como sua amizade com Vladimir. Sim, talvez um avanço para o tipo ideal de sujeito que temos hoje: cidadãos de não-lugares, que não estabelecem mais que relações fugazes, rasas - líquidas - com tudo o que o rodeia (locais, coisas e pessoas), e se movimentam em meio a sinalizações publicitárias.

A montagem de Esperando Godot feita pelo Teatro Oficina, é de uma feliz sutileza ao atualizar a condição do sujeito de hoje à obra de 1952, sem deixar se seguir muito rente ao texto.

Há uma dinamicidade e vivacidade em Vladimir (Alexandre Borges) e Estragão (Marcelo Drummond) que eu ainda não vira em nenhuma das montagens a que assisti - nem noto no texto. Um frescor de novidade e aventura naquele mais do mesmo sem sentido e sem graça que os dois personagens vivenciam. A insistência de Estragão de partirem aparece mais como inquietação e falta de memória, e não de tédio - ainda que, sim, aquela situação é tediosa o suficiente para não querer estar. 

E quem mais deveria estar entediado, cansado de esperar - porque tem noção da espera -, Vladimir, é quem mais se mostra animado a preencher esse vazio de não acontecimentos, como se fosse o mais corriqueiro da vida e não coubesse qualquer negatividade - "good vibes only", como dizem muitas pessoas hoje em dia, desesperadas em negar o mundo e sua própria condição.

Uma das sutilezas da montagem, presente pelo seu não aparecimento, é a ausência de toda pulsão sexual que habitualmente marca as peças do Oficina. A insinuação de cunho mais sexual - no nabo ou cenoura que Vladimir entrega para Estragon comer - soa brincadeira de quinta série (ou do presidente e seus adeptos), os beijos entre os dois tem um quê de demonstração de um afeto desesperado e dessexualizado. É como se Zé Celso nos avisasse: não há tesão possível sob a égide do fascismo, seja ele o fascismo aberto do bolsonarismo, seja o fascismo velado do liberalismo (Viagra, plásticas e Only Fans estão aí para servir de muletas a nossa incapacidade de ter prazer diante da obrigatoriedade de aparecer sempre prontos a gozar).

Outra mudança sutil está na cena em que Felizardo (Roderick Himeros) fala. Ao invés da verborragia ininterrupta e desvitalizada à qual eu estava acostumado em outras montagens, Felizardo atua em sua fala de modo "profissional", sem maneirismos, sem faltas ou excessos nessa atuação - apenas alguns enroscos maquinais. Este ponto, assumo, me incomodou: está por normal demais para a reação dos dois protagonistas de quererem calá-lo a qualquer custo - normal no texto (nada próximo das absurdidades que ouvimos de bolsonaristas, Cantanhede, Sardenberg, Pedro Doria, Vera Magalhães, Oyama e outros jornalistas e "formadores de opinião"), normal na encenação (ou no trejeito espetacular que assimilamos como sendo a normalidade, mas é de uma artificialidade atroz). A fala ininterrupta e desvitalizada, ou uma declamação cheia de kitsch, de maneirismo de classe média forjada nas novelas da Globo me pareceriam mais apropriadas.

Os pontos onde Zé Celso descolou do texto estão no final de cada ato. Primeiro com o menino/mensageiros (Tony Reis) que vai avisar que Godot não irá naquele dia, mas sim no próximo. Ao invés de uma criança insegura e amedrontada, um aprendiz de malandro da velha guarda, com vocabulário devidamente atualizado, que parece recém saído de um terreiro. Karol, a amiga que me acompanhou - e que desconhecia a obra - se disse impressionada com o diálogo entre ele e Vladimir no fim do primeiro ato; eu apenas segurava o riso com o choque que esse personagem me trouxe - e lembrava de outra amiga, professora do ensino básico, comentando dos seus alunos mini-mano de sete anos

A escolha desse menino fica evidenciada ao fim do segundo ato. Quando ele reaparece, e Vladimir segue o diálogo posto por Beckett, de conformismo com a vinda só no dia seguinte. O menino rompe o texto, de início sem ser ouvido por Vladimir. Godot se transmutou em outra entidade - Godot está morto. Não virá - como nunca veio e nunca viria. Não é mais necessário esperá-lo. Vladimir e Estragon estão livres para partir e construir seus caminhos, suas vidas, tentar ser ao invés de apenas dar a impressão. 

Com esse final, Zé Celso nos instiga a agir, a sair da letargia, a parar de esperar. Ele repete isso, em sua fala, após o fim da peça: não esperemos por um Messias, não fiquemos parados esperando a eleição de Lula. Como ateu, faço uma leitura um pouco mais pessimista do final proposto pelo diretor: seguimos esperando. Se não é mais Godot, esperamos alguém que nos anuncie que não precisamos mais esperar. Seguimos passivos, dependentes do animador de festa, do menino recém saído do terreiro, do diretor de teatro, de alguém com alguma "autoridade" que nos diga: vão! Saiam! E saímos todos do teatro. Podemos mesmo sair da espera pela chegada de quem virá consertar tudo quase como em um passe de mágica, mas teremos saído da posição de quem não sabe agir com autonomia, política e eticamente, conseguiremos construir nosso próprio caminho, um caminho que, por vivermos em sociedade, é ao mesmo tempo individual e compartilhado, coletivo?


07 de maio de 2022


A peça está em cartaz no Teatro Oficina Uzona, no Bixiga, até 19 de junho (https://bileto.sympla.com.br/event/72759/d/135340).


segunda-feira, 18 de abril de 2022

Reencontro (e o tempo que passa numa velocidade que não consigo acompanhar)

A campainha toca, Guile pula de meu colo, Libertad fica alerta. É Luís - primeira visita que recebo em casa em 2022. Abro a porta, nos cumprimentamos, ele ainda de máscara. Ao tirá-la reconheço o Luís de sempre, em suas pequenas variações capilares. É ele quem me avisa do tempo: “Caramba, depois de mais de dois anos!” É isso: não foram duas semanas, e sim mais de dois anos sem nos vermos. Não é o Luis de sempre. É o Luís de 2022 - como eu também, sou o daniel de 2022.

Libertad corre para o corredor, assustada com o “estranho” - e não adiantou Luís tentar chamá-la. Guile, como é de seu feitio, vai se esfregar em suas pernas, todo “eu sou fofo, aproveite e me afofe”, cobrar seu tributo para que a visita sinta-se em casa. 

Não são duas semanas. Não são apenas as últimas novidades a contar e falar da vida, como sempre fazemos - durante a pandemia seguimos nos falando pela internet, mas um encontro real é sempre de outra qualidade, ainda mais com um grande amigo. Dois anos. Dele, sei que agora já é arquiteto e urbanista formado e devidamente desempregado - apesar do currículo. E muito iremos discutir sobre o ponto onde ele está e por onde poderia ir - eu, inveterado palpiteiro dos amigos. 

De mim... o que sei? Primeiro, que preciso perceber que muito tempo se passou desde que ele foi embora da última vez, avisando que voltaria no mês seguinte, quando as aulas da FAU começariam e ele passaria a dormir uma vez por semana em casa, como vinha fazendo há dois anos. Quantas coisas a contar em detalhes que só as mãos conseguem expressar. Libertad fica a espreitá-lo. O concurso entrado a fórceps, a transferência de um trabalho que eu gostava para um que não me faz sentido - e me faz sentir quase um parasita. Fim do relacionamento, início e fim de outro. O início de uma nova faculdade. A partida de César. Os planos mirabolantes de sempre - com os convites sem noção para ele se juntar a eles. A mudança para Pato Branco e a volta para São Paulo. A perda da minha mãe - mas antes disso, toda uma vida vivida em sete meses ali com ela e meu irmão, sabendo do fim e tentando viver como se a vida fosse seguir (e ela de algum modo segue, cá estou eu a escrever mais uma crônica). Ele sabe disso tudo, mas discutimos como se fossem novidades de ontem, da semana passada. 

Noto minha vida nesses dois anos foi de um bem-me-quer-mal-me-quer de inícios e fins. Início, fim, início. Fim, início, fim. Fim, início, fim. Início, fim, início. Fim. Início. Fim. Na volta do barco é que sente o quanto deixou de viver. E depois, nesse bem-me-quer-mal-me-quer da vida, cujas pétalas arrancadas nada tem a responder ou sugerir um caminho, vem o que? O início ou o fim?

Libertad se aproxima, ainda receosa, fica um tempo a observá-lo - e nós a ela, até que retomamos a conversa. Lembrei que certa feita Natália havia comentado que a gata andava com umas brincadeiras mais sofisticadas; alguns dias depois, ao entrar em casa, e vê-lo entretido brincando de esconde-esconde com Libertad, entendi de onde ela vinha se aprimorando - enquanto Luis ficava sem graça de ser pego em plena infância aos trinta anos. Libertad interrompe nossa conversa com miado alto direcionado a Luís: parece que lembrou, finalmente, de quem se trata, e agora pergunta se ele se lembra dela. Recebe um agrado de confirmação e a partir de então gruda nele.

Vamos entretecendo memórias, planos e angústias, entre discussões de músicas e política, eu preparando arepas (algo que aprendi a fazer em Pato Branco e que minha mãe apelidou de "xis-polenta"), e o mate circulando na roda curta de duas pessoas. Início-fim-início-fim. Recordamos da Copa de 2014 e o festival de pessoas vestidas fora da "normalidade", da padronização que a cordialidade brasileira exige: não foi mês passado, não? Início-fim-início.

Lembro da minha idéia de “sentir-se em casa”, que vai além do lugar, está nos afetos que fazem com que eu me sinta à vontade. Estou em casa duas vezes esta noite. Fosse antes, a conversa se estenderia madrugada adentro, mas eu preciso acordar cedo, para bater cartão - e ele já pela manhã pega o ônibus de volta. Fim-início-fim.

Nos despedimos ainda com muito assunto pendente. Fecho a porta. Libertad mia novamente, talvez indignada que Luis sequer brincou com ela. Fim. Eu vou me preparar para dormir. Me olho no espelho, reparo nos cabelos brancos, meus primeiros, que começaram a despontar há poucos meses. Início. Me vejo envelhecido como nunca antes me vira. Estou há dez anos em São Paulo, mas parece que faz, no máximo, dois. Fim-início. Quantos anos terão transcorrido no calendário no que senti como sendo a passagem de dois ou três meses? Inicio.


18 de abril de 2022