A campainha toca, Guile pula de meu colo, Libertad fica alerta. É Luís - primeira visita que recebo em casa em 2022. Abro a porta, nos cumprimentamos, ele ainda de máscara. Ao tirá-la reconheço o Luís de sempre, em suas pequenas variações capilares. É ele quem me avisa do tempo: “Caramba, depois de mais de dois anos!” É isso: não foram duas semanas, e sim mais de dois anos sem nos vermos. Não é o Luis de sempre. É o Luís de 2022 - como eu também, sou o daniel de 2022.
Libertad corre para o corredor, assustada com o “estranho” - e não adiantou Luís tentar chamá-la. Guile, como é de seu feitio, vai se esfregar em suas pernas, todo “eu sou fofo, aproveite e me afofe”, cobrar seu tributo para que a visita sinta-se em casa.
Não são duas semanas. Não são apenas as últimas novidades a contar e falar da vida, como sempre fazemos - durante a pandemia seguimos nos falando pela internet, mas um encontro real é sempre de outra qualidade, ainda mais com um grande amigo. Dois anos. Dele, sei que agora já é arquiteto e urbanista formado e devidamente desempregado - apesar do currículo. E muito iremos discutir sobre o ponto onde ele está e por onde poderia ir - eu, inveterado palpiteiro dos amigos.
De mim... o que sei? Primeiro, que preciso perceber que muito tempo se passou desde que ele foi embora da última vez, avisando que voltaria no mês seguinte, quando as aulas da FAU começariam e ele passaria a dormir uma vez por semana em casa, como vinha fazendo há dois anos. Quantas coisas a contar em detalhes que só as mãos conseguem expressar. Libertad fica a espreitá-lo. O concurso entrado a fórceps, a transferência de um trabalho que eu gostava para um que não me faz sentido - e me faz sentir quase um parasita. Fim do relacionamento, início e fim de outro. O início de uma nova faculdade. A partida de César. Os planos mirabolantes de sempre - com os convites sem noção para ele se juntar a eles. A mudança para Pato Branco e a volta para São Paulo. A perda da minha mãe - mas antes disso, toda uma vida vivida em sete meses ali com ela e meu irmão, sabendo do fim e tentando viver como se a vida fosse seguir (e ela de algum modo segue, cá estou eu a escrever mais uma crônica). Ele sabe disso tudo, mas discutimos como se fossem novidades de ontem, da semana passada.
Noto minha vida nesses dois anos foi de um bem-me-quer-mal-me-quer de inícios e fins. Início, fim, início. Fim, início, fim. Fim, início, fim. Início, fim, início. Fim. Início. Fim. Na volta do barco é que sente o quanto deixou de viver. E depois, nesse bem-me-quer-mal-me-quer da vida, cujas pétalas arrancadas nada tem a responder ou sugerir um caminho, vem o que? O início ou o fim?
Vamos entretecendo memórias, planos e angústias, entre discussões de músicas e política, eu preparando arepas (algo que aprendi a fazer em Pato Branco e que minha mãe apelidou de "xis-polenta"), e o mate circulando na roda curta de duas pessoas. Início-fim-início-fim. Recordamos da Copa de 2014 e o festival de pessoas vestidas fora da "normalidade", da padronização que a cordialidade brasileira exige: não foi mês passado, não? Início-fim-início.
Lembro da minha idéia de “sentir-se em casa”, que vai além do lugar, está nos afetos que fazem com que eu me sinta à vontade. Estou em casa duas vezes esta noite. Fosse antes, a conversa se estenderia madrugada adentro, mas eu preciso acordar cedo, para bater cartão - e ele já pela manhã pega o ônibus de volta. Fim-início-fim.
Nos despedimos ainda com muito assunto pendente. Fecho a porta. Libertad mia novamente, talvez indignada que Luis sequer brincou com ela. Fim. Eu vou me preparar para dormir. Me olho no espelho, reparo nos cabelos brancos, meus primeiros, que começaram a despontar há poucos meses. Início. Me vejo envelhecido como nunca antes me vira. Estou há dez anos em São Paulo, mas parece que faz, no máximo, dois. Fim-início. Quantos anos terão transcorrido no calendário no que senti como sendo a passagem de dois ou três meses? Inicio.
18 de abril de 2022
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