sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Das vantagens em se trabalhar no centro [por Sérgio S., da Equipe Trezenhum. Humor sem graça.]

Reconheço um ganho em qualidade de vida ao ter o trabalho transferido da Marginal Tietê para a região central. A começar pela proximidade de casa e a economia de R$ 4,40 diários, o que totaliza praticamente R$ 100,00 mensais - pois agora a mesma 1h20min que eu levava para ir a pé do trabalho para casa eu gasto para ir e voltar. Me dou por satisfeito com essa caminhada, e isso me permite a economia de outros R$ 150 de academia. 

Afora essas vantagens monetária (já que o salário segue o mesmo) e temporal, que no fundo, conforme Benjamin Franklin, é tudo dinheiro, é na hora do almoço que o local de trabalho faz toda a diferença.

Na Marginal, começava que tínhamos três opções de almoço nas cercanias - uma barata, uma média-cara e uma cara, nenhuma muito boa -, e para o restante do tempo de almoço, a opção mais interessante era ficar contemplando o rio Tietê devidamente retificado, frequentado por brilhantes animais metálicos, sob o sol escaldante de ésse pê - o que talvez inspirasse poemas parnasianos em Marinetti ou em Mishima (ainda que não veja Mishima escrevendo poemas parnasianos, a não ser, talvez, com as próprias vísceras). Como não sou futurista (nem passadista), nem poeta (mesmo calado), nem fiz o curso de Ikebana e Harakiri do Anti-Espaço Cultural Casa de Lego* na época da Universidade, esse tipo de bucolismo urbano não me comove tanto... 

Em compensação, pelo centro são muitas opções de casas de pasto nas cercanias do trabalho, com grande variedade de preços e tipos de comida. Seria difícil até de escolher, basicamente impossível de enjoar, se eu não me restrigisse às três de sempre - que sequer são as mais baratas ou as mais gostosas.

O melhor mesmo de trabalhar pelo centro fica por conta das opções do que fazer para completar o horário de almoço. Sempre acompanhado de Macedo, meu nobre colega, e às vezes algum (ou alguma) outro colega, não menos nobre, mas que não se chama Macedo, saímos para ver exposições, passear por lojas (a 25 é logo ali, e nós evitamos), ou mesmo só zanzar vendo a fauna citadina pedestre. 

Quando nos centramos nas compras, invariavelmente sabemos distribuir nossas necessidades desnecessárias ao longo do mês, para estarmos sempre necessitando de algo: um estimulante modo do salário frugal garantir que não caiamos no tédio nem no consumismo desenfreado. 

Um dia saímos para fazer uma pesquisa de preços; no outro, para pesquisar outros produtos, que podem ser mais interessantes, diante das limitações monetárias. É na sequência que decidimos ir às compras: uma chave de mandril num dia, um jogo de três cuecas no outro, um odorizador de guarda-roupas no terceiro, um copo retrátil no quarto. E assim vamos, eu e Macedo, meu nobre colega, como se fôssemos dois barões do café esbanjando dinheiro, ou como se fôssemos Estragon e Vladimir esperando Godot: "a gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão que a gente existe", no caso, a gente inventa algo pra comprar. 

Os dias mais interessantes (e perdulários) costumam ser os que vamos à zona, o que costuma acontecer três vezes por mês: duas para comprar ervas, castanhas, frutas secas, ervilhas com wasabi e coisas do tipo, outra para ver se há promoção de cerveja e comprar queijos. Sim, eu sei que a zona cerealista não é tão grande, e poderíamos fazer a compra dos queijos, cervejas, das ervas e das passas numa vez só, mas precisamos fazer o tempo render.

E se acaso não temos o que comprar - ou meu orçamento do mês já está comprometido -, Macedo, meu nobre colega, sempre tem suas barras de gergelim para repôr em sua gaveta. Felizmente, até hoje ele nunca atentou que elas terminam num ritmo um pouco desproporcional ao que ele costuma comer...


02 de dezembro de 2022


* Piada retomada da época do Trezenhum. Humor sem graça. Quem acompanhou na época e/ou leu o livro (ainda tem para vender), entendeu.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Palestras motivacionais ou fascismo?

Há tempos tenho dito que o fascismo se enfia pelas frestas: se as “boas energias” transmitidas com o Heil Hitler nas manifestações alucionogolpistas em Santa Catarina são o fascismo escancarado e desavergonhado, ele só foi possível porque no nosso dia a dia uma série de pequenos elementos fascistas foram e tem sido naturalizados, seja via indústria cultural, seja pelos aparelhos ideológicos oficiais, seja nas relações micropolíticas que nos permeiam - o liberalismo é o fascismo se fingindo outra coisa, por saber usar talheres.

Gostaria que um caso como esse, do qual ouvi o relato e vou comentar a seguir, fosse um experimento científico (apesar da ética questionável, se fosse o caso), e não um experimento social - a sociedade se fazendo a quente e marchando para o fascismo. 

O que me contaram dessa palestra motivacional mostra que Bolsonaro e o movimento que há por trás não são um acidente, apenas escolheram um incompetente como cavalo para conduzi-lo - por isso perderam as eleições de 2022. Contudo, o projeto de uma teocracia fundamentalista cristã ultraliberal neofascista está como uma possibilidade futura, inclusive com ampla aceitação da população.

Ao relato.

Primeiro chegou a convocação para que o expediente fosse metade cumprido no escritório, a segunda metade em um espaço de evento corporativo. Todos seguiram, claro - afinal, presos ao tripalium e com o chicote a estalar no lombo, desobedecer é flertar com a carestia. Não havia explicação do que se tratava, o que haveria: apenas que era preciso ir, ou teria o salário descontado.

A seguir houve a recomendação de que todos deveriam ir de calça jeans e camisa branca - sendo que o contrato de trabalho não fala em uniforme, inclusive por isso a “recomendação”, e não a convocação. Poucos ousaram perguntar o porquê, e os que tiveram a ousadia ão obtiveram outra resposta que não o “cumpra-se”. 

Abriu-se para uma série de especulações: seria uma confraternização, um gincana entre os setores, o anúncio de uma grande mudança - que faria cabeças rolarem, mas no final todos ficariam melhores (sabe-se lá como) -, um vídeo institucional? Apenas os integrantes da diretoria sabiam. Foi só ao chegar no local que os funcionários souberam se tratar de uma confraternização com palestra motivacional (muitos haviam comido antes de ir). 

Mesmo sem saber o porquê da camiseta branca, poucos tiveram coragem de afrontar a recomendação: a grande maioria estava uniformizada, salvo alguns poucos rebeldes e... os principais diretores. Me questionei, diante da surpresa com que isso me foi relatado, se achavam mesmo que a diretoria iria se apresentar como sendo parte dessa grande massa de Zé Ninguéns.

Se a preparação para o evento já foi alarmante - uniformização e apagamento das diferenças, obediência cega ao chefe, a regras sem nenhuma explicação e justificativa, conformismo bovino com isso tudo -, a palestra se mostrou um show de horrores proto-fascista, a reforçar esse comportamento e a necessidade de cada um estar no seu lugar na hierarquia, cumprindo ordens e comemorando os resultados - o lucro do patrão.

Um homem branco forjado na comédia de stand up a la Gentili a repetir o clichê da importância do trabalho em equipe e fazer tudo com amor - salário, valorização dos funcionários (que não são mais trabalhadores, mas colaboradores), relações saudáveis, o que importa é fazer seu trabalho com dedicação e amor, o resto é consequência ou prova de que não se dedicou e não amou o suficiente o que fez. 

A novidade teria sido o uso de uma bateria de samba para transmitir esses clichês - tudo, claro, baseado em estereótipos rasteiros sobre o samba. Quem do samba só sabe sambar (ou nem isso) achou interessante; quem é do samba me apontou todos os erros, os sofismas, todos os 2+2=5 que ele usou para fechar a equação e fazer o samba parecer se encaixar no ambiente empresarial. E um branco bem de vida a querer falar de samba e instrumentalizá-lo me fez lembrar da Gabriela Prioli.

Dado a querer ser engraçadinho, o palestrante começou dizendo que não iria dar uma palestra. Tentou fazer da sua vida uma espécie de jornada do herói, mas parece ter uma história de vida digna de um banal fluxograma tedioso de classe média remediada, pois contou suas “conquistas” sem ter apresentado nenhuma trajetória e superação para elas - no máximo que depois de ser presidente de torcida organizada, trabalhava no mercado financeiro e queria mais (creio eu que esse mais não fosse só dinheiro), daí ter ido para o samba. 

E ali estava o coach mestre de bateria: homem, branco, cis, hetero (ao menos na apresentação), conservador (como ele mesmo disse), vencedor na vida, assistido por dez ou doze homens negros e duas mulheres negras - as passistas -, falando para um plateia em que se tentou apagar toda diversidade. Hierarquia, homogeneidade, adesão cega, racismo estrutural. Isso com doses generosas de machismo, assédio e preconceitos, em piadas que nunca tiveram graça (menos ainda no século XXI); tudo com o intuito de transmitir a mensagem que em nada melhora a vida dos funcionários - mas engorda os lucros dos patrões. 

Uma das suas instruções de seu showzinho era que sempre que alguém discordasse do que ele dissesse, deveria levantar o braço direito e falar “deus te proteja”. De início precisou avisar quando o público deveria fazer o gesto acompanhado da frase - mas em pouco tempo já estavam todos adestrados para atuar no momento oportuno, na brecha para o “deus te proteja” que ele previra em seu roteiro. Perguntei a meu interlocutor se o braço precisava ficar em 120 graus, mas parece que a coisa era mais discreta, estilo Jovem Pan - afinal, não estamos no Sul Maravilha. E não houve culto no final - o que me surpreendeu, ainda que não fosse um evento religioso.

Entre uma piadinha bem decorada e outra, perguntou por pessoas de nomes esdrúxulos. Diante de meia dúzia que levantou a mão, preferiu escolher a pessoa que, encolhida em sua cadeira, foi apontada pelos colegas - “quem não quer nem levantar o braço é porque costuma ter os melhores nomes”, justificou. A mulher foi obrigada a se levantar, falar seu nome no microfone e ser ridicularizada diante de todos. A naturalização do assédio de um lado; de outro, a ameaça velada a todos que quiserem manter sua dignidade diante da horda - que na sua impotência ressentida, riu com a humilhação (ainda que a piada de que nome daquele era mesmo coisa de nordestino não tenha surtido todo o efeito esperado). O segundo humilhado da palestra já estava mais à vontade (com assédio? com abrir mão da dignidade para vestir a camisa da empresa?), e não teve problemas em servir de escada para o astro do evento.

Ao cabo, cada um dos músicos comandou um setor da empresa e emularam uma bateria de escola de samba: totalmente de cima pra baixo, sem os funcionários saberem de fato o que estavam fazendo, que não obedecer às ordens dos chefes e dos subchefes. “E funcionou!” Comentou uma das pessoas que me relatou o evento. Funcionou, mas as questões essenciais do trabalho passaram ao largo: funcionou para quê, para quem, por que, por quem? 

Que sentido possui fazer algo por fazer, só para funcionar? Eichmann se orgulhava de ser um burocrata exemplar, de cumprir as ordens e conseguir aprimorar os índices que lhe eram cobrados. Era eficiente, trabalhava com paixão, e fazia funcionar o que lhe era ditado de cima - que fosse matar mais pessoas em menos tempo e a um custo menor, isso era irrelevante, importante é que funcionou! Como uma bateria de escola de samba de coach branco em um evento corporativo do Brasil de 2022. 


01 de dezembro de 2022.