segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Família [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça.]


"Família, família
cachorro, gato, galinha
família, família
vive junto todo dia". 

Se a desocupada leitora, o desocupado leitor esperava neste texto uma crítica à família, com citações de Engels e Gaiarsa, sinto informar que não haverá nada disso. Se, pelo contrário, imaginava que encontraria alguma palavra cristã edificante sobre a família, como teria a pastora Flordelis ou vemos nos sonhos eróticos-perversos da pastora Damares (quer dizer, espero que sejam sonhos, porque metade de sua historieta perversa de sequestro de crianças ela é acusada de já ter praticado), você errou feio, muito feio. Se imagina que uma família é como uma empresa, digo, que uma empresa é como uma família, tenho dó da sua família e sofro de inveja reversa de onde você trabalha.

“Família” é como não raro usam para se referir a mim e ao nobre colega Macedo, quando saímos pelo centro da cidade, em nosso horário de almoço, conforme comentado alhures. 

Até então achava que fosse uma forma de o atendente tentar parecer simpático ao chamar duas ou mais pessoas que chegam a um estabelecimento comercial: na ânsia de não ser minimalista com um “o que vocês querem” ou “pois não”, ao invés de um formalóide “o que os clientes/os senhores desejam”, ou os “o que os irmãos precisam”, que daria um ar muito religioso (talvez na Conde de Sarzedas caia bem), “família” soaria uma tentativa menos clichê, ainda que aparentemente muito utilizada. 

Pois estávamos eu e o nobre colega Macedo na zona, em um dos estabelecimentos comerciais onde costumo comprar chimia. A atendente se aproximou com o já habitual “posso ajudar, família?”. Ao que respondi que não, apenas olhava, mas ela insistiu em ficar ao nosso lado - depois a gente migra para as compras online e não entendem o porquê. Avisou que a geleia de determinada marca estava em promoção. Agradeci e avisei que era diabético. Ela assinalou onde estavam as sem açúcar e para ali voltei meu foco. 

Não o nobre colega Macedo, cuja atenção foi sugada pela geleia de alho com pimenta tal qual o clássico Ferdinando, o touro, diante de uma borboleta. Dono de marmitas com misturebas um tanto esdrúxulas (sem entrar no mérito se ficam boas, apenas que são plenamente incomuns), ele soltou um introspectivo “olha!”, enquanto eu me indignava com a empresa tentando me enganar, cobrando cinquenta centavos a mais numa geleia 100% fruta, mas com metade do peso. A atendente, que seguia ao meu lado, me pressionando, interveio de pronto: “essa tem açúcar” (sim! A geleia de alho com pimenta é doce!). “Ele está vendo pra ele”, respondi, ao que ela soltou um “ahh” estranho. 

E foi esse “ahh” estranho que fez eu suspeitar que o “família” que sempre ouvíamos não era um vocativo comum a todos, mas só àquelas pessoas que atendentes crêem serem uma... família. Isso se confirmou naquela mesma tarde, após ter perguntado a outros colegas e ninguém ser “família” quando saíam juntos às compras na hora do almoço.

Olhei para Macedo, meu nobre colega, e comuniquei, desolado, a descoberta: “Macedo, acham que somos um casal”. 

Até aí, tudo bem - desde que a senhora Maceda não achasse também e quisesse tirar qualquer satisfação e partir pro braço comigo. O problema é que imagem de casal as pessoas devem ter de nós: dois caras meio parecidos, com barbixas parecidas, usando roupas sempre quase iguais: com certeza acham que temos também um chaveiro com o rosto do outro escrito love e cada um tem um pingente com metade de um coração (se não for uma tatuagem na ulna ou no carpo ou em região íntima!). O problema não é acharem que somos um casal, mas que somos um casal brega! “Brega, Macedo! Um casal muito brega!”. Anos de estudo em artes pra terminar assim: confundido com alguém brega! E não adianta no lugar de pingente ou tatuagem de meio coração ser qualquer outra meia-imagem, mais significativa: seguimos bregas!

Para ajudar meu drama aqui compartilhado, Macedo não aceitou que passássemos a usar o crachá ao sair, para ao menos acharem que estávamos quase com a mesma roupa por trabalho, não por um de nós ter perguntado, no início da manhã, “amor, vamos de camisa vermelha hoje?”


23 de janeiro de 2023


PS: Este é um texto ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

As bases que permitiram o descolamento da realidade dos bolsonaristas estão em toda a sociedade

Em reportagens sobre os “patriotários” presos pelos atos golpistas/terroristas em Brasília, a lista de queixas é surreal, parece saída de uma esquete do Monty Python, e mostra um descolamento da realidade: basicamente se queixam que a prisão não é confortável (não deve seguir o padrão Fifa, desconfio que sequer lembre um hotel três estrelas), não há wi-fi, a comida está muito aquém do churrasco com refrigerante servida nos acampamentos. Há um relato em especial que me chamou a atenção: a da pessoa que se queixava de ter sido presa contra sua vontade (parênteses: boa parte da grande mídia segue chamando essas pessoas de “manifestantes”, numa insistência em normalizar o discurso e a violência neofascista).

Se essa pessoa “presa contra a sua vontade” mostra que o descolamento da realidade foi aprofundado pela manipulação via internet – tão bem instrumentalizada pela extrema-direita -, as bases para se chegar a tanto haviam sido postas desde muito antes. Identifico dois pontos que subjazem a essa queixa.

O primeiro é da liberdade absoluta, defendida pelo neo/ultraliberalismo propagado pela mídia tupiniquim há décadas. O discurso posto é de antagonismo quase completo entre individual e coletivo, em especial o público. Nada estaria acima da liberdade individual de propriedade: daí o imposto ser um roubo, as regras de trânsito tirarem o prazer de dirigir e quanto mais propriedade, mais liberdade – o que seria comprovado pelos acessos que o dinheiro dá, aparentemente todos (ou, talvez, a uma consciência reificada, ele dê acesso a tudo o que ela pode abarcar).

O segundo é da instituição da prisão, de quem seria elegível para se tornar um detento – o que já foi reproduzido por uma juíza de Campinas em uma sentença, por sinal. E novamente a grande mídia tem papel fundamental nessa construção, ao ser a porta-voz de uma elite frustrada com o fato de ter nascido nestes Tristes Trópicos e ressentida com o fim da escravidão – e nem me refiro aqui aos apresentadores de programas policialescos, apolegetas da violência, do racismo, das execuções sumárias e uma série de outros crimes.

Antes de cometer um crime, no senso comum dos patriotários – e de muitas e muitas outras pessoas -, um preso no Brasil é alguém com desvio moral, desvio de caráter (Foucault já levantava isso, mas me parece que a coisa tem tomado uma proporção ainda maior). Uma pessoa comete um delito não porque está sem emprego e precisa de dinheiro para sobreviver, mas porque é “vagabundo” e não quis trabalhar, porque é um “pervertido” e gosta de infligir danos aos demais, porque é “do mal”,  simplesmente um “bandido”, assim como eu sou daltônico (sobre o “vagabundos” e “bandidos”, Pedro Serrano mostra como esse discurso é desumanizante, proto-fascista, e percorre a sociedade brasileira de alto a baixo).

Assim, alguém que se julga um “cidadão de bem”, se crê sem falhas morais – eventuais escorregadas seriam lapsos, justificadas em nome de um bem maior, e que se redimiria com um pedido de desculpas, como Moro fez com Lorenzoni. Essa “perfeição de classe média” é respaldada pelo comportamento gregário do grupo, inflada pelas bolhas criadas pelos algoritmos da internet e chancelada por líderes políticos e religiosos, mas vem sendo construída por um discurso midiático de longa data, eu diria que constitutivo da imprensa burguesa e da indústria cultural – fundamental para garantir que a classe média ressentida pelo seu fracasso se enxergue próxima das elites e atue como seus asseclas.

Esses terroristas estão tendo dificuldades para entender o básico mais concreto da sua realidade: de que foram presas. Debord fala da sociedade do espetáculo entrar num grau de ideologização, abstração e alienação em que as pessoas renegam a realidade vivida em prol do que lhes dizem e fazem crer – estamos presenciando isso num nível paroxístico. Para essas pessoas, se elas são boas (por autoproclamação), se estão agindo em nome do bem (como os mocinhos nos filmes de Hollywood), não importa o que façam, elas não merecem estar presas: presos são os outros, os semi-humanos, os negros, os pobres, os periféricos, os estrageiros, os ateus, os esquerdistas, os diferentes – nunca alguém branco, cristão, com posses, patriota.

Infelizmente, vejo muita gente que tem rido dessas bizarrices (que são, de fato, engraçadas) reproduzir essa base sobre a qual se erigiu a alucinação militar-bolsonarista. O mais clichê na esquerda classe média é o “estar do lado da certo da história”, como se a história fosse teleológica e moral: os lados certo e errado serão dados arbitrariamente por historiadores futuros com uma série de interesses nas suas análises. Na minha concepção, o ponto que se deve levar em consideração é estar do lado dos mais necessitados, dos oprimidos, da maioria explorada, da vida digna para todos – mas assumir isso exige uma postura ativa de ação (quem tem fome tem pressa), não condizente com ficar esperando o julgamento da história enquanto faz postagem nas redes sociais.

Há camadas muito profundas que sustentam o discurso alucinado (alucinógeno?) da extrema-direita brasileira, e que permeia toda a sociedade – estamos todos vivendo sob a égide do espetáculo. Um trabalho de auto-reflexão para identificá-los em nossas próprias posturas e construções mais complexas dos argumentos quando na exposição aos demais (um grande desafio nestes tempos memênicos) são tarefas urgentes para não termos o espectro do fascismo sempre a rondar nosso país.

17 de janeiro de 2023