terça-feira, 17 de janeiro de 2023

As bases que permitiram o descolamento da realidade dos bolsonaristas estão em toda a sociedade

Em reportagens sobre os “patriotários” presos pelos atos golpistas/terroristas em Brasília, a lista de queixas é surreal, parece saída de uma esquete do Monty Python, e mostra um descolamento da realidade: basicamente se queixam que a prisão não é confortável (não deve seguir o padrão Fifa, desconfio que sequer lembre um hotel três estrelas), não há wi-fi, a comida está muito aquém do churrasco com refrigerante servida nos acampamentos. Há um relato em especial que me chamou a atenção: a da pessoa que se queixava de ter sido presa contra sua vontade (parênteses: boa parte da grande mídia segue chamando essas pessoas de “manifestantes”, numa insistência em normalizar o discurso e a violência neofascista).

Se essa pessoa “presa contra a sua vontade” mostra que o descolamento da realidade foi aprofundado pela manipulação via internet – tão bem instrumentalizada pela extrema-direita -, as bases para se chegar a tanto haviam sido postas desde muito antes. Identifico dois pontos que subjazem a essa queixa.

O primeiro é da liberdade absoluta, defendida pelo neo/ultraliberalismo propagado pela mídia tupiniquim há décadas. O discurso posto é de antagonismo quase completo entre individual e coletivo, em especial o público. Nada estaria acima da liberdade individual de propriedade: daí o imposto ser um roubo, as regras de trânsito tirarem o prazer de dirigir e quanto mais propriedade, mais liberdade – o que seria comprovado pelos acessos que o dinheiro dá, aparentemente todos (ou, talvez, a uma consciência reificada, ele dê acesso a tudo o que ela pode abarcar).

O segundo é da instituição da prisão, de quem seria elegível para se tornar um detento – o que já foi reproduzido por uma juíza de Campinas em uma sentença, por sinal. E novamente a grande mídia tem papel fundamental nessa construção, ao ser a porta-voz de uma elite frustrada com o fato de ter nascido nestes Tristes Trópicos e ressentida com o fim da escravidão – e nem me refiro aqui aos apresentadores de programas policialescos, apolegetas da violência, do racismo, das execuções sumárias e uma série de outros crimes.

Antes de cometer um crime, no senso comum dos patriotários – e de muitas e muitas outras pessoas -, um preso no Brasil é alguém com desvio moral, desvio de caráter (Foucault já levantava isso, mas me parece que a coisa tem tomado uma proporção ainda maior). Uma pessoa comete um delito não porque está sem emprego e precisa de dinheiro para sobreviver, mas porque é “vagabundo” e não quis trabalhar, porque é um “pervertido” e gosta de infligir danos aos demais, porque é “do mal”,  simplesmente um “bandido”, assim como eu sou daltônico (sobre o “vagabundos” e “bandidos”, Pedro Serrano mostra como esse discurso é desumanizante, proto-fascista, e percorre a sociedade brasileira de alto a baixo).

Assim, alguém que se julga um “cidadão de bem”, se crê sem falhas morais – eventuais escorregadas seriam lapsos, justificadas em nome de um bem maior, e que se redimiria com um pedido de desculpas, como Moro fez com Lorenzoni. Essa “perfeição de classe média” é respaldada pelo comportamento gregário do grupo, inflada pelas bolhas criadas pelos algoritmos da internet e chancelada por líderes políticos e religiosos, mas vem sendo construída por um discurso midiático de longa data, eu diria que constitutivo da imprensa burguesa e da indústria cultural – fundamental para garantir que a classe média ressentida pelo seu fracasso se enxergue próxima das elites e atue como seus asseclas.

Esses terroristas estão tendo dificuldades para entender o básico mais concreto da sua realidade: de que foram presas. Debord fala da sociedade do espetáculo entrar num grau de ideologização, abstração e alienação em que as pessoas renegam a realidade vivida em prol do que lhes dizem e fazem crer – estamos presenciando isso num nível paroxístico. Para essas pessoas, se elas são boas (por autoproclamação), se estão agindo em nome do bem (como os mocinhos nos filmes de Hollywood), não importa o que façam, elas não merecem estar presas: presos são os outros, os semi-humanos, os negros, os pobres, os periféricos, os estrageiros, os ateus, os esquerdistas, os diferentes – nunca alguém branco, cristão, com posses, patriota.

Infelizmente, vejo muita gente que tem rido dessas bizarrices (que são, de fato, engraçadas) reproduzir essa base sobre a qual se erigiu a alucinação militar-bolsonarista. O mais clichê na esquerda classe média é o “estar do lado da certo da história”, como se a história fosse teleológica e moral: os lados certo e errado serão dados arbitrariamente por historiadores futuros com uma série de interesses nas suas análises. Na minha concepção, o ponto que se deve levar em consideração é estar do lado dos mais necessitados, dos oprimidos, da maioria explorada, da vida digna para todos – mas assumir isso exige uma postura ativa de ação (quem tem fome tem pressa), não condizente com ficar esperando o julgamento da história enquanto faz postagem nas redes sociais.

Há camadas muito profundas que sustentam o discurso alucinado (alucinógeno?) da extrema-direita brasileira, e que permeia toda a sociedade – estamos todos vivendo sob a égide do espetáculo. Um trabalho de auto-reflexão para identificá-los em nossas próprias posturas e construções mais complexas dos argumentos quando na exposição aos demais (um grande desafio nestes tempos memênicos) são tarefas urgentes para não termos o espectro do fascismo sempre a rondar nosso país.

17 de janeiro de 2023

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