quinta-feira, 13 de abril de 2023

O fatídico colega Rivarola, o Doutor Sabujinho do momento [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Em minha última crônica, preciso confessar e me desculpar publicamente, fui injusto com Macedo, meu nobre colega. Havia dito que ele era o golden boy dos chefes. Nunca foi. Apesar de funcionário exemplar, compenetrado e produtivo, o funcionário do mês sempre ficou a cargo de algum puxa-saco - e isso Macedo passa a anos luz, mesmo quando um antigo chefe insinuou que ele se daria bem se fosse um “pouco mais flexível e imparcial".

Troca-se de chefia, mudam os colegas, contudo, desde que estou em meu atual emprego, sempre temos alguém no setor que é despudoradamente um Fagundes, personagem da Laerte - e a maioria dos chefes adora esse tipo de funcionário, ao menos num primeiro momento. Curiosamente, o perfil é sempre muito parecido: um doutor em sua área, fracassado conforme seus próprios parâmetros, disposto a compensar esse seu retumbante fracasso com elogios do chefe de turno, a quem serve de maneira constrangedora e sem preocupação se isso implica pisar nos colegas. Sempre me pergunto se esse tipo de pessoa acaba assim por falta de uma mãe para elogiar ou, no outro extremo, de uma mãe que tudo elogia e não conta que ele ser o filho perfeito para ela não implica em perfeição fora de casa - e que ele não precisa provar a perfeição que a mãe vê pra toda autoridade. Enfim, por conta desse perfil comum, esse colega acaba por ganhar a alcunha, ou melhor, o título honorífico de Doutor Sabujinho - e alguns comentários maldosos, digo, imparciais, para ficar no mesmo campo que o antigo chefe.

Que conste aqui, um medium scriptum para não ter que ficar no post scriptum: se acaso este texto aparentar que tenho algo contra os doutores Sabujinhos com quem já convivi em minha vida laboral, nunca foi além do trabalho e do pessoal; e ainda assim busquei manter o máximo de isonomia e imparcialidade com os fatos.

Claro, há pequenas nuances entre um Doutor Sabujinho e outro. O atual, o fatídico colega Rivarola (que não é nobre, que fique claro, e para ter direito a algum adjetivo, achei que fatídico ornava), tem em comum com os anteriores uma proatividade ostentatória, de quem pega todas as demandas para si - mas é esperto para logo em seguida despachar parte dessas tarefas para algum colega ingênuo de fato fazer por ele, que fica com a fama no final.

O Doutor Sabujinho anterior tinha como grande frustração não ser o professor de Harvard que ele se julgava merecedor. O atual, crente piedoso do empreendedorismo e do anarco-capitalismo-cristão (afinal, na Bíblia Jesus fala em “que atire a primeira pedra primeiro os clientes Prime e Personnalité com as mensalidades em dia”), foi injustiçado pelo mercado, digo, pelo Estado, que não permitiu que sua startup vingasse e ele se tornasse o Steve Jobs brasileiro. O mais próximo do sucesso como empreendedor digital que ele chegou foi ser motorista de aplicativo (e usuário do aplicativo de ajuda emergencial do governo), após abandonar a infrutífera busca de jobs na sua área, mesmo com doutorado. Umas horas penso que foi melhor para ele: como empreendedor de sucesso, não teria um chefe para puxar saco e não poderia desenvolver suas verdadeiras habilidades (que estão muito além de qualquer doutorado).

Como todo Doutor Sabujinho, Rivarola é um profundo conhecedor de... tudo. Na verdade, de tudo e mais um pouco. E ainda um pouco mais. Sem falar na sua área de doutoramento, onde o fatídico colega parece que não ganhou o Nobel somente porque perdeu a data de inscrição. Uma versão moderna do vizir da história de Nuredin Ali e Bedredin Hassan (“um homem prudente, sábio, penetrante, perito nas belas letras e em todas as ciências”). Da queda do nome do pai na psicanálise lacaniana à fabricação de microchips com cobres aniônicos (cuprate) de lantânio, hólmio e bário; de teoria econômica (todas as vertentes) aos grupos fuchsianos aritméticos; do factum da razão nos juízos a priori à influência das civilizações pré-axumita na arte contemporânea produzida pelos dissidentes neoístas pós festivais de apartamento em New York; dos verdadeiro desejos do verdadeiro deus ao manuscrito Voynich (que ele não deve ter ainda liberado a tradução ao grande público porque está em dúvida na tradução de alguns termos), Rivarola talvez só não saiba a cor da minha cueca do dia - talvez. Mas a do chefe, ele deve saber com certeza.

A grande diferença de Rivarola com relação ao Doutor Sabujinho anterior, é que este tinha um ar meio bobo que causava certa piedade (até nos depararmos com ele caguetando alguém para o chefe); já o atual tem mil ares: adora carregar nas expressões faciais e corporais - parece que fez o curso de atuação do Wolf Maya e aprendeu direitinho (poderia ter sido ator de Malhação, se fosse bonito). Ele tem sempre a expressão super expressiva para expressar o momento* de acordo com o que sente do chefe. Se é algo grave, ele incorpora a expressão fechada, o tom severo - parece um médico sério (são raros, mas existem) comunicando o estado terminal aos familiares -, mesmo que seja só um dado outlier que será excluído do relatório do mês; se é alegria o que o chefe espera, só falta dançar declamando poesias do Casimiro de Abreu (não confundir com o Casimiro Ferreira, por favor!
) pela sala. Não há piada do chefe que não mereça uma sonora gargalhada a ecoar pelos corredores, e não há nada sério dito pelo chefe que não lhe inspire o mais compenetrado olhar.

Novamente, me alongo na apresentação do colega e acabo sendo obrigado a deixar para uma próxima o episódio que queria contar.


13 de abril de 2023


* Reitero: não fui redundante, fui influenciado pelos grandes dramaturgos gregos, como Aristófanes. Inclusive em grego fica um simpático, veja: εκφραστική έκφραση εκφράζουν.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.



quarta-feira, 5 de abril de 2023

Má Influência [por Sérgio S., ex-Trezenhum Humor Sem Graça]

Quando somos crianças e adolescentes os pais sempre temem as temidas* más influências que nos cercam. Em geral, escolhe-se por má influência alguém próximo: um amigo, um vizinho, um primo, um colega - ainda que atualmente estejam ampliando esse círculo e incluindo professores, esses comunistas que querem receber salário, ao invés de trabalhar por amor -, o que me faz pensar que é muito mais a busca de um bode expiatório, de um judas para malhar, que de fato de uma má influência. 

Curiosamente, para os pais nunca a má influência é o seu próprio filho - no máximo ele está uma má influência temporária por influência de uma verdadeira má influência, cujos pais negam a condição de má influência verdadeira e vão atribuir a filho de outrem, e assim até chegar ao primeiro motor do mundo, se formos levar às últimas consequências (o que soa até razoável, se se pensar friamente).

Meus pais, claro, nunca acharam que eu fosse uma má influência. E não só eles: criança tímida, quieta, retraída, eu era tido como a boa influência por professores e pais de amigos, como se fosse positivo uma criança ser apática - e óbvio que nenhum deles desconfiava que quem dava as ideias das traquinagens inocentes feitas pelos amiguinhos e colegas, e que lhes custava sermões e castigos (e até mesmo a fama de má influências), fosse eu.

O que eu definitivamente não esperava era que depois de velho me transformaria em uma reconhecida má influência. E descubro que isso tem um agravante: com a idade que tenho, não há como atribuir apenas um estado momentâneo de má influência, cuja origem de fato seria de algum colega - até porque fazer esse tipo de ilação é de responsabilidade dos pais, e os meus já me conhecem o suficiente para não me defender em situações do tipo.

Quem me avisou desse meu novo estatuto foi Macedo, meu nobre colega, que tal qual uma criança com medo dos pais vetarem encontrar com um amiguinho tido por uma má influência, avisou que não contaria minha “aventura” para a senhora Maceda, sua companheira (sim, muitas aspas para essa aventura).

Tanto a senhora Maceda quanto Macedo, meu nobre colega, são duas pessoas muito organizadas e muito compenetradas no trabalho. Inclusive, Macedo, meu nobre colega, sempre foi visto como uma boa influência pelos chefes que já passaram pelo setor. Tentamos - eu e Meirelles, outra nobre colega cuja apresentação fica para uma outra crônica -, dissuadi-lo de todo esse rigor: explicamos que isto não é uma empresa japonesa e o método 5S estava um pouco démodé (mais, inclusive, que falar démodé); que trabalhar direito é uma coisa, mas quando se torna um golden boy para os chefes é sinal de que se está fazendo algo de muito errado. Ele se dizia tocado, mas não mudava - até apelarmos para as palavras do Capirotinho** e ele começar a entender como funciona a "desvida laboral" (ou seria antivida?).

Assumo que eu também tenho minha fama de organizado no trabalho: minha caixa de e-mail (corporativo) já arrancou suspiros de vários colegas, e meu SGBD para contatos do whatsapp chega a assustar pessoas desavisadas. Em suma: essa minha organização causa inveja (e preguiça) de meus colegas, inclusive do Macedo. E fiquei com a fama.

É quando chegou a hora de organizar minhas férias - esse momento em que, apesar de ser parte do trabalho, eu trato como se fosse pertencente a minha vida pessoal.

Estou eu cá, a uma semana de sair de férias e embarcar rumo ao exterior, quando comento com ele que preciso decidir o roteiro e comprar logo a passagem de volta, antes que aumente o valor. Ele me olha embasbacado: “você não viaja semana que vem?”. “Sim”. E explico que já tenho estresse demais no trabalho e me falta energia para arranjar esse estresse extra de planejar as férias em detalhes: sei quando saio, sei para onde vou (quer dizer, tenho algumas ideias de onde ir, talvez), preciso decidir quando volto. 

“Você vai sem planejar?”, ele quase se exaspera, larga os talheres para pegar o celular. Comento a definição do nobre colega Goreti, que achei muito oportuna: “é tudo planejado, mas com planejamento em tempo real”.

Do celular ele me mostra a tabela de férias que estão planejando (ele sai de férias quando eu voltar): uma linda planilha colorida, divididas quase que por horas, com tempos dos trajetos, pontos a serem visitados, o número das reservas dos vôos e hotéis. Agora é minha vez de me embasbacar: uma agência de viagens para classe média não tem nem 10% desse esmero - talvez uma empresa especializada em ricaços.

Se eu consigo entender o jeito dele, ele segue com dificuldades para entender o meu: “Você ao menos sabe que cidades vai visitar?”. “Planejamento em tempo real, Macedo! Nem ideia, por isso ainda não consegui decidir quando volto: se do sul eu for para o centro do país ou direto para o norte, duas semanas dão conta; se eu decidir passar por cidades das três regiões, seria bom ficar uma semana a mais”. “E as passagens?”. “Compro na hora que decidir”. “E que horas você vai decidir, se viaja semana que vem?”. “No momento oportuno”, respondo - e me foge usar o termo em grego clássico, καιρος, pra tentar dar um ar erudito (atenção, não confundam com o uso moderno do termo, com o qual a Maju despontou). Talvez esse verniz erudito tivesse feito ele repensar o que disse a seguir: “É... definitivamente é melhor eu não contar isso pra senhora Maceda”. O tom não deixou dúvidas: eu havia me transformado em uma má influência - e para além dos chefes. Ainda tentei consertar com uma tabela quase igual à deles, feito no final do horário de almoço, mas não fui convicente: sou oficialmente uma má influência, cujos companheiros e companheiras dos meus colegas fazem o lugar dos pais e me olham de soslaio, até mesmo duvidando que meu SGBD de whatsapp seja verdadeiro.



Reparem que minha tabela é muito mais colorida e bonita e prática



05 de abril de 2023


* Não estou sendo redundante, isto é influência (má, talvez) da língua de Sócrates (o filósofo, morto por ser uma má influência, ainda que o futebolista também tenha sido considerado como tal)

** Para isso usamos o Manifesto proletário.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.