Quando somos crianças e adolescentes os pais sempre temem as temidas* más influências que nos cercam. Em geral, escolhe-se por má influência alguém próximo: um amigo, um vizinho, um primo, um colega - ainda que atualmente estejam ampliando esse círculo e incluindo professores, esses comunistas que querem receber salário, ao invés de trabalhar por amor -, o que me faz pensar que é muito mais a busca de um bode expiatório, de um judas para malhar, que de fato de uma má influência.
Curiosamente, para os pais nunca a má influência é o seu próprio filho - no máximo ele está uma má influência temporária por influência de uma verdadeira má influência, cujos pais negam a condição de má influência verdadeira e vão atribuir a filho de outrem, e assim até chegar ao primeiro motor do mundo, se formos levar às últimas consequências (o que soa até razoável, se se pensar friamente).
Meus pais, claro, nunca acharam que eu fosse uma má influência. E não só eles: criança tímida, quieta, retraída, eu era tido como a boa influência por professores e pais de amigos, como se fosse positivo uma criança ser apática - e óbvio que nenhum deles desconfiava que quem dava as ideias das traquinagens inocentes feitas pelos amiguinhos e colegas, e que lhes custava sermões e castigos (e até mesmo a fama de má influências), fosse eu.
Quem me avisou desse meu novo estatuto foi Macedo, meu nobre colega, que tal qual uma criança com medo dos pais vetarem encontrar com um amiguinho tido por uma má influência, avisou que não contaria minha “aventura” para a senhora Maceda, sua companheira (sim, muitas aspas para essa aventura).
Tanto a senhora Maceda quanto Macedo, meu nobre colega, são duas pessoas muito organizadas e muito compenetradas no trabalho. Inclusive, Macedo, meu nobre colega, sempre foi visto como uma boa influência pelos chefes que já passaram pelo setor. Tentamos - eu e Meirelles, outra nobre colega cuja apresentação fica para uma outra crônica -, dissuadi-lo de todo esse rigor: explicamos que isto não é uma empresa japonesa e o método 5S estava um pouco démodé (mais, inclusive, que falar démodé); que trabalhar direito é uma coisa, mas quando se torna um golden boy para os chefes é sinal de que se está fazendo algo de muito errado. Ele se dizia tocado, mas não mudava - até apelarmos para as palavras do Capirotinho** e ele começar a entender como funciona a "desvida laboral" (ou seria antivida?).
Assumo que eu também tenho minha fama de organizado no trabalho: minha caixa de e-mail (corporativo) já arrancou suspiros de vários colegas, e meu SGBD para contatos do whatsapp chega a assustar pessoas desavisadas. Em suma: essa minha organização causa inveja (e preguiça) de meus colegas, inclusive do Macedo. E fiquei com a fama.
É quando chegou a hora de organizar minhas férias - esse momento em que, apesar de ser parte do trabalho, eu trato como se fosse pertencente a minha vida pessoal.
Estou eu cá, a uma semana de sair de férias e embarcar rumo ao exterior, quando comento com ele que preciso decidir o roteiro e comprar logo a passagem de volta, antes que aumente o valor. Ele me olha embasbacado: “você não viaja semana que vem?”. “Sim”. E explico que já tenho estresse demais no trabalho e me falta energia para arranjar esse estresse extra de planejar as férias em detalhes: sei quando saio, sei para onde vou (quer dizer, tenho algumas ideias de onde ir, talvez), preciso decidir quando volto.
“Você vai sem planejar?”, ele quase se exaspera, larga os talheres para pegar o celular. Comento a definição do nobre colega Goreti, que achei muito oportuna: “é tudo planejado, mas com planejamento em tempo real”.
Do celular ele me mostra a tabela de férias que estão planejando (ele sai de férias quando eu voltar): uma linda planilha colorida, divididas quase que por horas, com tempos dos trajetos, pontos a serem visitados, o número das reservas dos vôos e hotéis. Agora é minha vez de me embasbacar: uma agência de viagens para classe média não tem nem 10% desse esmero - talvez uma empresa especializada em ricaços.
Se eu consigo entender o jeito dele, ele segue com dificuldades para entender o meu: “Você ao menos sabe que cidades vai visitar?”. “Planejamento em tempo real, Macedo! Nem ideia, por isso ainda não consegui decidir quando volto: se do sul eu for para o centro do país ou direto para o norte, duas semanas dão conta; se eu decidir passar por cidades das três regiões, seria bom ficar uma semana a mais”. “E as passagens?”. “Compro na hora que decidir”. “E que horas você vai decidir, se viaja semana que vem?”. “No momento oportuno”, respondo - e me foge usar o termo em grego clássico, καιρος, pra tentar dar um ar erudito (atenção, não confundam com o uso moderno do termo, com o qual a Maju despontou). Talvez esse verniz erudito tivesse feito ele repensar o que disse a seguir: “É... definitivamente é melhor eu não contar isso pra senhora Maceda”. O tom não deixou dúvidas: eu havia me transformado em uma má influência - e para além dos chefes. Ainda tentei consertar com uma tabela quase igual à deles, feito no final do horário de almoço, mas não fui convicente: sou oficialmente uma má influência, cujos companheiros e companheiras dos meus colegas fazem o lugar dos pais e me olham de soslaio, até mesmo duvidando que meu SGBD de whatsapp seja verdadeiro.
05 de abril de 2023
* Não estou sendo redundante, isto é influência (má, talvez) da língua de Sócrates (o filósofo, morto por ser uma má influência, ainda que o futebolista também tenha sido considerado como tal)
** Para isso usamos o Manifesto proletário.
PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.
Sem comentários:
Enviar um comentário