segunda-feira, 17 de abril de 2023

O Brasil para aquém do Brasil [Diálogos com o teatro]

De um dos tantos conflitos e guerras civis suavizados e esquecidos do Brasil - o Cerco de Piratininga, em 1562 -, o Coletivo Estopô Balaio usa como mote para repensar o que foi e o que está o Brasil, e que devires podemos construir a partir daqueles que sempre estiveram às margens, a quem foram negados o estatuto de cidadãos - e mesmo de sujeitos.

Com o teatro documental que marca o trabalho do coletivo (como na excelente A cidade dos rios invisíveis, apresentada no bairro ao lado), Reset Brasil relembra o que muitos talvez sequer saibam, reelabora o que passamos por alto, resiginifca o que está cristalizado na história oficial. 

De um conflito aparentemente distante são puxadas outras tantas histórias, outros tantos conflitos e guerras suavizados e esquecidos no Brasil atual - principalmente esse conflito do dia a dia, banalizado por apresentadores de tevê, políticos e empresários oportunistas, que babam ódio em seus carros blindados e lucram com o sangue das periferias.

Contudo, para além dessas representações (quase abstrações, apesar de tão presentes e palpáveis nas suas consequências), Reset Brasil é feito antes de tudo de carne e concreto, e apresenta a quem estiver disposto a conhecer (levado pela mão, praticamente, já que vão buscar os espectadores na estação Brás) aquele pedaço da cidade e seus habitantes que os centrais, os cidadãos de fato, os mais próximos do sujeito universal (homem branco hetero cristão europeu ocidental*) não conhecem, seja pela distância, seja pelo preconceito, seja pelo medo, seja pelo não saber os códigos do lugar - e que muitos fazem questão de não conhecer, justo para poder manter o preconceito que os garante subjetivamente numa posição de moralmente valorosos e impecáveis.

A história do Cerco de Piratininga, da resistência indigena contra a ocupação pelos portugueses, apoiados por outros indígenas, do território em que hoje está São Paulo, serviu para que na construção do espetáculo pelas ruas de São Miguel Paulista os atores de ascendência indígena buscassem parentes pelo bairro, com quem possam reconstruir uma história de resistências e esboçar devires menos áridos. Descendentes de quem de fato ocupa esta terra desde tempos imemoriais, vindos de todos os cantos do país, mostrando aos brasileiros, aos paulistas e aos paulistanos sua condição de estrangeiros - do território, do solo, da própria história que reivindicam como a única. Uma espécie de “walking tour” por uma área da cidade relegada pelos poderes e pelos cidadãos de fatos, Reset Brasil conta a história de vida de gente tão banal quanto os espectadores - sim, somos banais e descartáveis como um morador da periferia, mesmo com nossa cidadania plena; assim como os habitantes dali são importantes e únicos, mesmo na sua condição de subcidadania.

A resistência desses sujeitos é apresentada na história das pessoas do bairro que emprestam parte de suas narrativas de vida, nas próprias ruas do bairro, nas vielas, nas casas que sobem contra o estado, reivindicando existência e cobrando a dignidade da cidadania que as paragens mais abastadas possuem: as mães de maio exigindo justiça pelos seus filhos mortos pela polícia, os moradores de ascendência indígena exigindo reconhecimento, homens e mulheres exigindo seus direitos - os básicos, de saúde, educação, moradia digna, alimentação, e os básicos-mas-não-tratados-como-tal, como diversão, descanso, qualidade de vida.

A crítica é direta, mas a forma como é construída, a partir do que é vivenciado por sujeitos periféricos (na cidade, na renda, na origem indígena ou negra) garante que o discurso não seja reduzido a jargões simplórios ou clichês de certa esquerda acadêmica (academicista).

Não por menos a peça nos convida a pensar e repensar que pátria é essa da qual tanto falamos em reconstruir, depois de seis anos de violências e de destruição ultra-liberal, militar e fascista-cristã: começar de novo a partir de onde? Dar o "reset" nessa nossa história de exploração e violências vai nos levar até que ponto? De onde seria esse recomeço para um país digno para todos?

Enquanto Haddad e a Faria Lima discutem o novo calabouço fiscal, as famílias milenares, que aqui vivem desde antes desta terra ser marcada pelo vermelho brasil da exploração e do sangue de milhões de pessoas, índios, negros e periféricos seguem resistindo - e suas demonstrações artísticas são momentos em que nós, os brancos colonizadores, conseguimos vislumbrar um pouco do que acontece para além de nossos horizontes limitados. É quando, deixando de lado nosso orgulho e nosso narcisismo, podemos vislumbrar que talvez as pessoas mais aptas a comandar o resgate do Brasil desse inferno tropical transformado pela cultura europeia nos últimos 523 anos não sejam os descendentes de quem fez esta terra ser regada de sangue para depois queimar até se transformar em areia e ódio.

O Cerco de Piratininga continua, com nativos (já confundidos em suas cores e ideias) dos dois lados disputando se seremos uma colônia, se buscaremos ser os novos colonizadores ou se seremos algo anterior a isso, anterior à europeia divisão mundial do trabalho e destruição da Pacha Mama. 


17 de abril de 2023


* Vale ressaltar que o sujeito universal pode ser incorporado por minorias, como tentativa (sempre incompleta) de se tornar um dos opressores - inclusive porque o Brasil não é parte do Ocidente.

PS: Sobre A cidade dos rios invisíveis ainda tenho esperança de um dia conseguir escrever sobre; infelizmente assisti à peça em momento de profunda crise da escrita.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

O fatídico colega Rivarola, o Doutor Sabujinho do momento [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Em minha última crônica, preciso confessar e me desculpar publicamente, fui injusto com Macedo, meu nobre colega. Havia dito que ele era o golden boy dos chefes. Nunca foi. Apesar de funcionário exemplar, compenetrado e produtivo, o funcionário do mês sempre ficou a cargo de algum puxa-saco - e isso Macedo passa a anos luz, mesmo quando um antigo chefe insinuou que ele se daria bem se fosse um “pouco mais flexível e imparcial".

Troca-se de chefia, mudam os colegas, contudo, desde que estou em meu atual emprego, sempre temos alguém no setor que é despudoradamente um Fagundes, personagem da Laerte - e a maioria dos chefes adora esse tipo de funcionário, ao menos num primeiro momento. Curiosamente, o perfil é sempre muito parecido: um doutor em sua área, fracassado conforme seus próprios parâmetros, disposto a compensar esse seu retumbante fracasso com elogios do chefe de turno, a quem serve de maneira constrangedora e sem preocupação se isso implica pisar nos colegas. Sempre me pergunto se esse tipo de pessoa acaba assim por falta de uma mãe para elogiar ou, no outro extremo, de uma mãe que tudo elogia e não conta que ele ser o filho perfeito para ela não implica em perfeição fora de casa - e que ele não precisa provar a perfeição que a mãe vê pra toda autoridade. Enfim, por conta desse perfil comum, esse colega acaba por ganhar a alcunha, ou melhor, o título honorífico de Doutor Sabujinho - e alguns comentários maldosos, digo, imparciais, para ficar no mesmo campo que o antigo chefe.

Que conste aqui, um medium scriptum para não ter que ficar no post scriptum: se acaso este texto aparentar que tenho algo contra os doutores Sabujinhos com quem já convivi em minha vida laboral, nunca foi além do trabalho e do pessoal; e ainda assim busquei manter o máximo de isonomia e imparcialidade com os fatos.

Claro, há pequenas nuances entre um Doutor Sabujinho e outro. O atual, o fatídico colega Rivarola (que não é nobre, que fique claro, e para ter direito a algum adjetivo, achei que fatídico ornava), tem em comum com os anteriores uma proatividade ostentatória, de quem pega todas as demandas para si - mas é esperto para logo em seguida despachar parte dessas tarefas para algum colega ingênuo de fato fazer por ele, que fica com a fama no final.

O Doutor Sabujinho anterior tinha como grande frustração não ser o professor de Harvard que ele se julgava merecedor. O atual, crente piedoso do empreendedorismo e do anarco-capitalismo-cristão (afinal, na Bíblia Jesus fala em “que atire a primeira pedra primeiro os clientes Prime e Personnalité com as mensalidades em dia”), foi injustiçado pelo mercado, digo, pelo Estado, que não permitiu que sua startup vingasse e ele se tornasse o Steve Jobs brasileiro. O mais próximo do sucesso como empreendedor digital que ele chegou foi ser motorista de aplicativo (e usuário do aplicativo de ajuda emergencial do governo), após abandonar a infrutífera busca de jobs na sua área, mesmo com doutorado. Umas horas penso que foi melhor para ele: como empreendedor de sucesso, não teria um chefe para puxar saco e não poderia desenvolver suas verdadeiras habilidades (que estão muito além de qualquer doutorado).

Como todo Doutor Sabujinho, Rivarola é um profundo conhecedor de... tudo. Na verdade, de tudo e mais um pouco. E ainda um pouco mais. Sem falar na sua área de doutoramento, onde o fatídico colega parece que não ganhou o Nobel somente porque perdeu a data de inscrição. Uma versão moderna do vizir da história de Nuredin Ali e Bedredin Hassan (“um homem prudente, sábio, penetrante, perito nas belas letras e em todas as ciências”). Da queda do nome do pai na psicanálise lacaniana à fabricação de microchips com cobres aniônicos (cuprate) de lantânio, hólmio e bário; de teoria econômica (todas as vertentes) aos grupos fuchsianos aritméticos; do factum da razão nos juízos a priori à influência das civilizações pré-axumita na arte contemporânea produzida pelos dissidentes neoístas pós festivais de apartamento em New York; dos verdadeiro desejos do verdadeiro deus ao manuscrito Voynich (que ele não deve ter ainda liberado a tradução ao grande público porque está em dúvida na tradução de alguns termos), Rivarola talvez só não saiba a cor da minha cueca do dia - talvez. Mas a do chefe, ele deve saber com certeza.

A grande diferença de Rivarola com relação ao Doutor Sabujinho anterior, é que este tinha um ar meio bobo que causava certa piedade (até nos depararmos com ele caguetando alguém para o chefe); já o atual tem mil ares: adora carregar nas expressões faciais e corporais - parece que fez o curso de atuação do Wolf Maya e aprendeu direitinho (poderia ter sido ator de Malhação, se fosse bonito). Ele tem sempre a expressão super expressiva para expressar o momento* de acordo com o que sente do chefe. Se é algo grave, ele incorpora a expressão fechada, o tom severo - parece um médico sério (são raros, mas existem) comunicando o estado terminal aos familiares -, mesmo que seja só um dado outlier que será excluído do relatório do mês; se é alegria o que o chefe espera, só falta dançar declamando poesias do Casimiro de Abreu (não confundir com o Casimiro Ferreira, por favor!
) pela sala. Não há piada do chefe que não mereça uma sonora gargalhada a ecoar pelos corredores, e não há nada sério dito pelo chefe que não lhe inspire o mais compenetrado olhar.

Novamente, me alongo na apresentação do colega e acabo sendo obrigado a deixar para uma próxima o episódio que queria contar.


13 de abril de 2023


* Reitero: não fui redundante, fui influenciado pelos grandes dramaturgos gregos, como Aristófanes. Inclusive em grego fica um simpático, veja: εκφραστική έκφραση εκφράζουν.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.