quinta-feira, 4 de maio de 2023

Fernández e a estagiária [por Sérgio S., ex-Trezenhum Humor Sem Graça]

Nossa pequena fábula de hoje se passa uns andares acima, no setor de Fernández, funcionário do topo. Apesar de ser algo que os chefes não vêem com bons olhos, fomos hoje almoçar em um grupo diverso e sem nenhum doutor Sabujinho. Inclusive fomos a um lugar que não aqueles três que sempre costumo ir, conforme dito em crônica anterior. Do mesmo setor de Fernández estava Calzonelli - um manancial de boas histórias (menos para ela) que espero um dia conseguir trazer para estas mal traçadas linhas.

Desta vez a historieta é singela, sobre uma estagiária que chegou há um mês ao setor deles.

Primeira surpresa foi ter uma estagiária. Nosso setor há tempos não sabe o que é isso: há muito só entra gente parruda, já feita, formada, pós-graduada, mestrada (inclusive em D&D, que mais parece nome de loja de construção, mas isso foge ao nosso escopo), nada de estagiário, de pessoas que teríamos que ensinar algo e a quem atribuir todo tipo de tarefa, de buscar cafezinho a pintar mapas com lápis de cor para economizar impressora (como ocorreu no setor do Fernández, por sinal).

Lembro do meu tempo de estagiário, eu ainda na graduação. Naquela época havia um quê de quixotesco em fazer estágio: o estudante de triste figura, magricelo e cheio de espinhas na cara, mil planos e muitos anos de frustrações pela frente, crente que naquele estágio teria o primeiro grande insight da sua vida, e esse insight o transformaria numa sumidade em algum assunto qualquer que o transformaria no expoente da geração e mudaria a humanidade. Como alguém bem inserido em meu tempo (e classe), originalidade nunca foi algo que me acometeu. E o pior: como boa parte de meus colegas da faculdade, esse foi justamente o período mais fértil que tivemos, e não deixou de ser meio certo esses anseios do momento: foi justamente nessa fase que me veio o grande insight que tive na vida, onde condensei toda minha capacidade de observação com poder de síntese para soltar uma frase lapidar - até mesmo admirável pela pouca idade que eu tinha. Sim, o grande momento da minha vida intelectual e laboral se deu no estágio (se se excluir questões de título e monetárias), e isso não me fez ir além de uma nulidade, incapaz de alterar sequer minha vida, que dirá a humanidade (não foi uma observação útil para a empresa, então não era para ter mudado ela de qualquer modo). Ainda hoje sempre relembro em almoços de domingo ou encontros com amigos que estejam sem assunto dessa minha grande ideia, até para ter uma certa admiração tardia - é comum elogiarem minha espirituosidade com tão pouca idade para elaborar uma frase dessas (ok, não era tão pouca, ainda mais se comparado ao Mozart, por exemplo), assim como o momento seguinte vem aquela expressão de pena, quando notam que já faz vinte anos que tive meu grande momento, e ele não vale mais que uma citação rápida numa mesa de bar ou de almoço de família.

Já hoje, o estagiário já chega com crossfit em dia, a skincare feita, dentes de porcelanato e botox preventivo, é muito mais focado no que (dizem) de fato importa, dá toda a impressão de que bebe ritalina desde a época da mamadeira: não perde tempo com besteiras como grandes ideias, está ali para crescer na carreira, contribuir com a empresa e ganhar dinheiro (quando sair dessa condição de estagiário, claro), comprar um carro da moda, um celular bom, se o dinheiro não der para um carro, um relógio ok, se o salário também não der para um celular, ao menos umas férias em algum pacote barato no exterior pago em 22 prestações. Enfim, para esta geração estágio é o primeiro passo para ficar rico no futuro, não é para mudar o mundo - ainda que o estagiário siga basicamente com a nobre função de atender ao telefone, buscar um café na máquina ou um pão de queijo na cantina para os não estagiários.

Voltemos ao caso da estagiária do setor do topo. Mal nos sentamos à mesa e Calzonelli, com sua exuberância para contar causos com cores vivas, tratou de entregar Fernández: disse que a estagiária estava a fim dele, se pavoneava todo dia para seu lado, sem pudores, e todo o setor já comentava sobre isso. Fernández ficou constrangido em ser entregue assim. Respondeu sem graça que ela só era simpática, não havia segundas intenções. Calzonelli insistiu: ela era só atenção e sorrisos e bons dias para ele - ele, que era só mais um qualquer no meio da hierarquia, sem qualquer cargo de chefia (no máximo um salário mais alto que o da Calzonelli, afinal, ele é homem e isso basta, segundo vários deputados) -, para todos os demais ela vivia de cara fechada, malemal cumprimentava. Nós, claro, animávamos com a história proto-picante e, diante da torcida a favor do affair, Calzonelli já organizava um plano para Fernández tentar algo com a estagiária no mesmo dia.

Foi quando o nobre colega do topo foi um pouco mais enfático na sua defesa de que não havia nada demais entre ele e a moça: “Eu acho que você exagera na minha relação com a Ruth”. Calzonelli o mirou com a expressão fechada, como se não entendesse algo: “Que Ruth?” “Ora, a estagiária”. “A estagiária chama Ruth desde quando?” “Desde quando entrou, oras!” “O nome dela não é Rita?” “Não.” “Mas todo mundo chama ela de Rita, desde quando ela entrou!” “Eu notei, estranhei, mas no crachá dela está Ruth, e eu chamo ela de Ruth”.

Nosso ânimo arrefeceu e tivemos que dar razão ao nobre colega Fernández, de que a simpatia de Ruth não deveria ter nada a ver com segundas intenções, só com o fato de ele ser o único a chamá-la pelo nome, mesmo.

04 de maio de 2023

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

SP só para vips: a destruição da vida urbana pelas concessões dos espaços públicos da cidade

Quando a reforma do vale do Anhangabaú ficou pronta, em 2020, houve grande discussão sobre seu aspecto visual: muita gente não gostou da nova configuração do vale, criticaram a troca das pedras portuguesas e da referência ao modelo de cidade jardim e do projeto Bouvard que o projeto da década de 1990 remetia, por um vale feito de uma grande esplanada, num anódino pós-moderno que remete à cidade barroca caracterizada por Mumford, em sua ânsia de regularidade e velocidade, e que se encaixa no que me parece ser a proposta modernizadora das elites paulistanas após 1930 para a cidade, capitaneada por Prestes Maia e seu sistema de vias expressas e uso do leito de rios para construção de uma “cidade cenográfica” - a Chicago latinoamericana. 


Fora dessa questão estética - e mesmo de citações históricas -, uma vez inaugurado, a nova configuração do vale do Anhangabaú mostrou grande vantagem frente a antiga: frequentador assíduo da região desde que me mudei para a capital, em 2012, o antigo vale podia até ser mais bonito, mas era um local de passagem (e passagem incômoda, já que sequer permitia ir em linha reta de um lugar a outro), onde os únicos que ali se demoravam eram moradores de rua. Após a reforma, o vale foi adotado por skatistas - que costumo brincar dizendo que são os liquens de São Paulo -, a seguir atraindo uma ampla variedade de citadinos, se tornando parte do dia a dia de muitas pessoas, não mais apenas como passagem, e sim como um lugar para estar, de convivência entre diferentes - apesar de não ter árvores, apesar de não ter citações às aspirações das elites da primeira república ou mesmo da época colonial, apesar daqueles chafarizes patéticos, apesar dos defensores das paisagens que lembram a belle époque não terem gostado.

A mim, assumo que uma cidade bonita é uma cidade viva e plural, e não uma organizada pelo urbanismo, cheia de citações e canteiros bem cuidados, e estéril de vida, vazia de pessoas e encontros.

Ocorre, porém, que a empresa privada que ganhou a concessão do vale do Anhangabaú, em 2022, dá sinais evidentes que essa vivacidade que essa região do centro tem recuperado está em perigo - em nome da gentrificação e do lucro, claro.

Quem frequenta o vale tem se deparado seguidamente com circulação bloqueada em boa parte dele, para montagem ou desmontagem de estruturas de eventos. Assim, aquela ampla gama de usuários que se formava vai sendo impedida de utilizar um espaço público. Isso já não deixa de ser um problema: para eventos de uma ou duas noites, tem-se matado por duas semanas ou mais toda uma vida do dia a dia que se formava. 

Desde a semana passada, a intervenção no vale para evento ganhou uma nova dimensão: para a montagem de um grande evento de música, com quatro palcos, não apenas os frequentadores da região foram expulsos como a própria circulação está muito prejudicada - e cartazes avisam que vão piorar e durar até o dia 27. 

A situação, contudo, é muito mais grave: não se trata apenas de matar a vida no centro da cidade em favor de grandes eventos (e neste ponto tenho minhas críticas à ideia de virada cultural, porém isso fica para outro texto), mas de restringir quem pode frequentar esses eventos, excluindo do espaço público quem não tem dinheiro.

Se no ano passado, no ensaio dessa privatização do espaço público no vale do Anhangabaú, com a transmissão dos jogos da copa do mundo, havia uma limitação de pessoas que poderiam adentrar o espaço, por uma questão de segurança, ao menos qualquer pessoa que chegasse antes da lotação entrava - fosse rica, pobre, morador da Faria Lima ou morador de rua. Agora, a entrada é barrada a todos que não possuam dinheiro. E não é pouco dinheiro (mesmo que fosse R$ 10, isso já afrontaria o caráter público da rua e do centro). No início do mês uma festa da ESPM cobrava R$ 300 de entrada (ironicamente a festa se chama "Festa do Branco: singularidade", uma festa onde provavelmente havia gente branca padrão como se fosse produzida em série). Agora, um festival de dois dias tem as entradas a R$ 1.800 (inteira, incluídas as taxas do site; a entrada VIP fica em R$ 3.060).

Há, ademais, um terceiro problema: a reverberação do som pelo vale, em especial os graves, que incomoda (e muito) moradores de um raio de pelo menos 2 quilômetros de distância, como contou um amigo que mora no Bixiga e falou das janelas vibrando madrugada adentro, por conta do som da tal festa branca, digo dos brancos, digo festa do branco: singularidade.


O “novo vale” é apenas um exemplo. Mas a série de concessões de espaços públicos à iniciativa privada pela gestão Doria Jr-Covas-Nunes, sob a desculpa de economia (irrisória) de dinheiro público, tem tido vários eventos desse tipo, em que se exclui o caráter público de locais públicos abertos, e perturba toda a população do entorno. No início do ano foi uma rave no Jardim Botânico, o que prejudicava, inclusive, a fauna local, indo contra a própria lógica de um jardim botânico; mês que vem há um festival nas áreas abertas do Parque do Ibirapuera, com ingressos de até R$ 782 por dia (mas há ingresso social, por módicos R$ 667). Repito: não se trata de algo no prédio da Bienal, no Auditório interno, na Oca: são os espaços abertos do parque que estarão fechados a quem não puder pagar (deixo para falar mais do parque Ibirapuera em outra oportunidade - quer dizer, isso se não mudarem os “naming rights” do parque até lá, para Parque Lojas Americanas, Parque BTG ou algo assim).

E esses grandes eventos em espaços públicos concedidos à iniciativa privada acontecem como se não existissem vários locais privados (e mesmo público, porém de entrada restrita) aptos a recebê-los, com muito menos impacto social, ambiental e na vida da cidade.

Sorrateiramente - mas não muito - os espaços públicos de São Paulo vão sendo privatizados e boa parte da população da cidade vai sendo privada de ocupá-los. A cidade vai se desfazendo no que a caracteriza como cidade, que é a convivência e a troca entre pessoas dos diversos cantos da cidade, de diversas classes sociais, com diversos repertórios de vida. O próprio carnaval de rua é outro exemplo de tentativa dessa privatização, desde o início da gestão Doria Jr, e por ora represada por conta da luta firme e intransigente de muitos dos blocos, os que se negaram a entrar nessa lógica de restrição e lucro. 

Temo que ainda estejamos no início desse processo, e prefiro não imaginar até onde pode ir a destruição de São Paulo sob esse tipo de concessões, caso não sejamos capazes de nos organizar para barrá-la.


19 de abril de 2023


PS: pesquisando sobre as ações no vale, achei um site de aluguel de quartos no centro, sem nenhum CNPJ ou referência a quem seriam os responsáveis pelo site, apresentando o novo vale como grande chamariz para alugueis surreais, de R$ 3.000 por um “apartamento” de 30 m², por exemplo.

PS2: O podcast Prato Cheio, do Joio e o Trigo, está com um episódio intitulado "A cidade das marcas", que trata justo sobre essa penetração privada na lógica que deveria ser pública. Recomendo muito. Está em https://spoti.fi/3mYdWPv

PS3: Uma correção no que escrevi acima. Conforme me foi informado pelo skatista e multiartista Fernando Granja, o Vale do Anhangabaú já era um espaço utilizado pelos skatistas desde os anos 1990 (como essa região é muito ligada à cultura de rua, desde pelos menos a década de 1980). Inclusive, quando nessa reforma, se uniram para que se mantivesse as pedras de granito rosa, que se transformaram num memorial do skate, próximo à saída do metrô São Bento. Está no mini documentário "Pedra sobre pedra", disponível no youtube: https://youtu.be/waaX73obfxw . Talvez minha percepção de não muito frequentado antes da reforma, mesmo por skatistas, seja que eu tenha passado a frequentar a região quando a Praça Roosevelt havia sido recém inaugurada da sua reforma - e atraía grande número de skatistas. Ou talvez seja só eu tentando um álibi para minha percepção equivocada de antigamente.