Quando a reforma do vale do Anhangabaú ficou pronta, em 2020, houve grande discussão sobre seu aspecto visual: muita gente não gostou da nova configuração do vale, criticaram a troca das pedras portuguesas e da referência ao modelo de cidade jardim e do projeto Bouvard que o projeto da década de 1990 remetia, por um vale feito de uma grande esplanada, num anódino pós-moderno que remete à cidade barroca caracterizada por Mumford, em sua ânsia de regularidade e velocidade, e que se encaixa no que me parece ser a proposta modernizadora das elites paulistanas após 1930 para a cidade, capitaneada por Prestes Maia e seu sistema de vias expressas e uso do leito de rios para construção de uma “cidade cenográfica” - a Chicago latinoamericana.
A mim, assumo que uma cidade bonita é uma cidade viva e plural, e não uma organizada pelo urbanismo, cheia de citações e canteiros bem cuidados, e estéril de vida, vazia de pessoas e encontros.
Ocorre, porém, que a empresa privada que ganhou a concessão do vale do Anhangabaú, em 2022, dá sinais evidentes que essa vivacidade que essa região do centro tem recuperado está em perigo - em nome da gentrificação e do lucro, claro.
Quem frequenta o vale tem se deparado seguidamente com circulação bloqueada em boa parte dele, para montagem ou desmontagem de estruturas de eventos. Assim, aquela ampla gama de usuários que se formava vai sendo impedida de utilizar um espaço público. Isso já não deixa de ser um problema: para eventos de uma ou duas noites, tem-se matado por duas semanas ou mais toda uma vida do dia a dia que se formava.
Desde a semana passada, a intervenção no vale para evento ganhou uma nova dimensão: para a montagem de um grande evento de música, com quatro palcos, não apenas os frequentadores da região foram expulsos como a própria circulação está muito prejudicada - e cartazes avisam que vão piorar e durar até o dia 27. A situação, contudo, é muito mais grave: não se trata apenas de matar a vida no centro da cidade em favor de grandes eventos (e neste ponto tenho minhas críticas à ideia de virada cultural, porém isso fica para outro texto), mas de restringir quem pode frequentar esses eventos, excluindo do espaço público quem não tem dinheiro.Se no ano passado, no ensaio dessa privatização do espaço público no vale do Anhangabaú, com a transmissão dos jogos da copa do mundo, havia uma limitação de pessoas que poderiam adentrar o espaço, por uma questão de segurança, ao menos qualquer pessoa que chegasse antes da lotação entrava - fosse rica, pobre, morador da Faria Lima ou morador de rua. Agora, a entrada é barrada a todos que não possuam dinheiro. E não é pouco dinheiro (mesmo que fosse R$ 10, isso já afrontaria o caráter público da rua e do centro). No início do mês uma festa da ESPM cobrava R$ 300 de entrada (ironicamente a festa se chama "Festa do Branco: singularidade", uma festa onde provavelmente havia gente branca padrão como se fosse produzida em série). Agora, um festival de dois dias tem as entradas a R$ 1.800 (inteira, incluídas as taxas do site; a entrada VIP fica em R$ 3.060).
Há, ademais, um terceiro problema: a reverberação do som pelo vale, em especial os graves, que incomoda (e muito) moradores de um raio de pelo menos 2 quilômetros de distância, como contou um amigo que mora no Bixiga e falou das janelas vibrando madrugada adentro, por conta do som da tal festa branca, digo dos brancos, digo festa do branco: singularidade.
E esses grandes eventos em espaços públicos concedidos à iniciativa privada acontecem como se não existissem vários locais privados (e mesmo público, porém de entrada restrita) aptos a recebê-los, com muito menos impacto social, ambiental e na vida da cidade.
Sorrateiramente - mas não muito - os espaços públicos de São Paulo vão sendo privatizados e boa parte da população da cidade vai sendo privada de ocupá-los. A cidade vai se desfazendo no que a caracteriza como cidade, que é a convivência e a troca entre pessoas dos diversos cantos da cidade, de diversas classes sociais, com diversos repertórios de vida. O próprio carnaval de rua é outro exemplo de tentativa dessa privatização, desde o início da gestão Doria Jr, e por ora represada por conta da luta firme e intransigente de muitos dos blocos, os que se negaram a entrar nessa lógica de restrição e lucro.
Temo que ainda estejamos no início desse processo, e prefiro não imaginar até onde pode ir a destruição de São Paulo sob esse tipo de concessões, caso não sejamos capazes de nos organizar para barrá-la.
19 de abril de 2023
PS: pesquisando sobre as ações no vale, achei um site de aluguel de quartos no centro, sem nenhum CNPJ ou referência a quem seriam os responsáveis pelo site, apresentando o novo vale como grande chamariz para alugueis surreais, de R$ 3.000 por um “apartamento” de 30 m², por exemplo.
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