sexta-feira, 21 de março de 2008

O policial-bicho-papão

Esta semana eu estava em um trailer de lanche, aqui perto de casa, e presenciei uma cena banal, que deveria, creio eu, ter me deixado revoltado, mas o máximo que consegui foi sentir tristeza – medo, talvez.
Um grupo de universitários, atendendo ao pedido de três crianças na faixa dos seus oito, dez anos, pagou um lanche a cada um. Cheguei no momento em que era feito o pedido. Um clima desagradável no ar, o rosto contrafeito do dono da lanchonete diante daqueles três moleques eufóricos e vestidos fora dos padrões da classe média que freqüenta o local. De qualquer forma, anotou o pedido e foi fazer os lanches.
Enquanto fazia, sem se incomodar que as crianças estavam perto, comentava com a garota do grupo que ficou de pagar a conta que a partir daquele momento eles iriam aparecer sempre e incomodar os clientes para que pagassem lanche para eles. A garota não respondeu nada, mas ao voltar à mesa comentou, agora ela contrafeita, o que lhe dissera o dono. Havia poucas pessoas no local, mas o clima desconfortável era evidente. As crianças sentiram, tanto que ao invés de comerem lá, optaram por levar o lanche e comer em outro lugar. Eu pensava ainda bem que o meu era para viagem desde o início, pois comer olhando para o dono seria indigesto. Sinceramente, se vivemos em uma ordem capitalista, pagando a conta e não agindo fora dos “bons costumes”, me parece que quem vende tem obrigação de não fazer distinção – segundo autores neoliberais, essa seria uma das grandes vantagens do sistema capitalista: fazer o bem sem olhar a quem, somente à carteira. Já presenciei naquela mesma lanchonete crianças que incomodavam bem mais do que aquelas três, de ficar derrubando cadeiras e passando de mesa em mesa; mas como estavam bem vestidas, acompanhadas dos pais, nunca vi o dono criar um clima chato para ver se iam embora. Todos pagaram igual, então por que a distinção?
Mas a cena que realmente me entristeceu foi quando os garotos iam embora. Um último ainda saía do lugar, quando uma viatura da polícia encostou em frente e um policial saiu de lá e se dirigiu ao trailer. Nesse trajeto os dois – criança e policial – ficaram frente a frente, e a criança ficou desesperada e começou a chorar. O policial se pôs um pouco de lado e falou, delicadamente, que ela podia passar, o que ela fez correndo e sem titubear. Não me pareceu que a cena tenha agradado ao policial.
Mas ao dono do trailer... Ele, depois, comentava, se divertindo, a cena, como que dizendo que tinha razão ao querer aquele tipo de gente longe, e arrematava: “quem não deve não teme”. Olhei para ele; mulato, mas com o sucesso do trailer, pôde comprar um carro bom, dar condições para que os filhos entrassem na Unicamp, não deve morar na periferia, e sua fonte de
informação não deve ir muito além do Jornal Nacional. Fiquei com vontade de perguntar o que deviam aquelas crianças, mas preferi pegar meu lanche e sair logo, para não perder de vez o apetite com mais comentários de um típico “homem de bem”.
Se o dono do trailer, sua postura frente as crianças e o comentário da cena, me deixou revoltado, a cena me deixou triste. Fiquei a imaginar que representação aquela criança (assim como seus amigos) não faz da polícia, e do próprio Estado que ela representa. Pela idade, muito
provavelmente ainda não foi abordado ou sofreu uma geral da polícia, mas a imagem de homens-besta os policiais já possuem. Imagem que eu, branco, classe média, bem remediado, nunca tive – pelo menos para mim, quando criança.
Está na Constituição, e normalmente as pessoas que não se enquadram nos “homens de bem” queremos um Estado justo para todos, o qual começa por tratar a ricos e a pobres de maneira igual (mas de forma alguma a justiça se encerra aí!). Mas é evidente que isso não acontece. Pior: com a imagem que a polícia possui, não será tão breve que o Estado realizará esse preceito constitucional de igualdade. A tarefa do Estado, que hoje luta com o estado paralelo que é o crime organizado, não é somente de adentrar a periferia (falo em adentrar sem uso da truculência policial), oferecendo serviços e proteção, mas revolucionar uma imagem que vem desde tempos imemoriais, de descaso, na melhor das hipóteses, ou de violência, a qual talvez o desespero da criança frente o policial tenha sido uma boa síntese. Aqui minha tristeza, mesmo meu medo: ainda que olhando de longe, não vislumbro aberturas de mudança para um futuro próximo. Teremos que presenciar ainda por muito tempo cenas desse tipo e comentários daquele calão? Que futuro é esse que nos espera?
Os donos do país dizem atacar o Estado-Leviatã, essa besta-fera que destrói a liberdade; os desde sempre oprimidos se defendem do Estado-monstro (ou bicho-papão, no caso da criança), que só traz destruição, medo e (mais) violência; os “homens de bem” da classe média ficam amigos dos policiais, pregam “quem não deve não teme”, a tolerância zero (que deve começar de baixo, claro, ainda que admitam que o mal exemplo vem sempre de cima, dos políticos, todos ladrões), e sequer me dão nota fiscal.

Campinas, 21 de março de 2008

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