Esta semana eu estava em um trailer de lanche, aqui perto de casa, e presenciei uma cena banal, que deveria, creio eu, ter me deixado revoltado, mas o máximo que consegui foi sentir tristeza – medo, talvez.
Um grupo de universitários, atendendo ao pedido de três crianças na faixa dos seus oito, dez anos, pagou um lanche a cada um. Cheguei no momento em que era feito o pedido. Um clima desagradável no ar, o rosto contrafeito do dono da lanchonete diante daqueles três moleques eufóricos e vestidos fora dos padrões da classe média que freqüenta o local. De qualquer forma, anotou o pedido e foi fazer os lanches.
Enquanto fazia, sem se incomodar que as crianças estavam perto, comentava com a garota do grupo que ficou de pagar a conta que a partir daquele momento eles iriam aparecer sempre e incomodar os clientes para que pagassem lanche para eles. A garota não respondeu nada, mas ao voltar à mesa comentou, agora ela contrafeita, o que lhe dissera o dono. Havia poucas pessoas no local, mas o clima desconfortável era evidente. As crianças sentiram, tanto que ao invés de comerem lá, optaram por levar o lanche e comer em outro lugar. Eu pensava ainda bem que o meu era para viagem desde o início, pois comer olhando para o dono seria indigesto. Sinceramente, se vivemos em uma ordem capitalista, pagando a conta e não agindo fora dos “bons costumes”, me parece que quem vende tem obrigação de não fazer distinção – segundo autores neoliberais, essa seria uma das grandes vantagens do sistema capitalista: fazer o bem sem olhar a quem, somente à carteira. Já presenciei naquela mesma lanchonete crianças que incomodavam bem mais do que aquelas três, de ficar derrubando cadeiras e passando de mesa em mesa; mas como estavam bem vestidas, acompanhadas dos pais, nunca vi o dono criar um clima chato para ver se iam embora. Todos pagaram igual, então por que a distinção?
Mas a cena que realmente me entristeceu foi quando os garotos iam embora. Um último ainda saía do lugar, quando uma viatura da polícia encostou em frente e um policial saiu de lá e se dirigiu ao trailer. Nesse trajeto os dois – criança e policial – ficaram frente a frente, e a criança ficou desesperada e começou a chorar. O policial se pôs um pouco de lado e falou, delicadamente, que ela podia passar, o que ela fez correndo e sem titubear. Não me pareceu que a cena tenha agradado ao policial.
Mas ao dono do trailer... Ele, depois, comentava, se divertindo, a cena, como que dizendo que tinha razão ao querer aquele tipo de gente longe, e arrematava: “quem não deve não teme”. Olhei para ele; mulato, mas com o sucesso do trailer, pôde comprar um carro bom, dar condições para que os filhos entrassem na Unicamp, não deve morar na periferia, e sua fonte de
informação não deve ir muito além do Jornal Nacional. Fiquei com vontade de perguntar o que deviam aquelas crianças, mas preferi pegar meu lanche e sair logo, para não perder de vez o apetite com mais comentários de um típico “homem de bem”.
Se o dono do trailer, sua postura frente as crianças e o comentário da cena, me deixou revoltado, a cena me deixou triste. Fiquei a imaginar que representação aquela criança (assim como seus amigos) não faz da polícia, e do próprio Estado que ela representa. Pela idade, muito
provavelmente ainda não foi abordado ou sofreu uma geral da polícia, mas a imagem de homens-besta os policiais já possuem. Imagem que eu, branco, classe média, bem remediado, nunca tive – pelo menos para mim, quando criança.
Está na Constituição, e normalmente as pessoas que não se enquadram nos “homens de bem” queremos um Estado justo para todos, o qual começa por tratar a ricos e a pobres de maneira igual (mas de forma alguma a justiça se encerra aí!). Mas é evidente que isso não acontece. Pior: com a imagem que a polícia possui, não será tão breve que o Estado realizará esse preceito constitucional de igualdade. A tarefa do Estado, que hoje luta com o estado paralelo que é o crime organizado, não é somente de adentrar a periferia (falo em adentrar sem uso da truculência policial), oferecendo serviços e proteção, mas revolucionar uma imagem que vem desde tempos imemoriais, de descaso, na melhor das hipóteses, ou de violência, a qual talvez o desespero da criança frente o policial tenha sido uma boa síntese. Aqui minha tristeza, mesmo meu medo: ainda que olhando de longe, não vislumbro aberturas de mudança para um futuro próximo. Teremos que presenciar ainda por muito tempo cenas desse tipo e comentários daquele calão? Que futuro é esse que nos espera?
Os donos do país dizem atacar o Estado-Leviatã, essa besta-fera que destrói a liberdade; os desde sempre oprimidos se defendem do Estado-monstro (ou bicho-papão, no caso da criança), que só traz destruição, medo e (mais) violência; os “homens de bem” da classe média ficam amigos dos policiais, pregam “quem não deve não teme”, a tolerância zero (que deve começar de baixo, claro, ainda que admitam que o mal exemplo vem sempre de cima, dos políticos, todos ladrões), e sequer me dão nota fiscal.
Campinas, 21 de março de 2008
Um grupo de universitários, atendendo ao pedido de três crianças na faixa dos seus oito, dez anos, pagou um lanche a cada um. Cheguei no momento em que era feito o pedido. Um clima desagradável no ar, o rosto contrafeito do dono da lanchonete diante daqueles três moleques eufóricos e vestidos fora dos padrões da classe média que freqüenta o local. De qualquer forma, anotou o pedido e foi fazer os lanches.
Enquanto fazia, sem se incomodar que as crianças estavam perto, comentava com a garota do grupo que ficou de pagar a conta que a partir daquele momento eles iriam aparecer sempre e incomodar os clientes para que pagassem lanche para eles. A garota não respondeu nada, mas ao voltar à mesa comentou, agora ela contrafeita, o que lhe dissera o dono. Havia poucas pessoas no local, mas o clima desconfortável era evidente. As crianças sentiram, tanto que ao invés de comerem lá, optaram por levar o lanche e comer em outro lugar. Eu pensava ainda bem que o meu era para viagem desde o início, pois comer olhando para o dono seria indigesto. Sinceramente, se vivemos em uma ordem capitalista, pagando a conta e não agindo fora dos “bons costumes”, me parece que quem vende tem obrigação de não fazer distinção – segundo autores neoliberais, essa seria uma das grandes vantagens do sistema capitalista: fazer o bem sem olhar a quem, somente à carteira. Já presenciei naquela mesma lanchonete crianças que incomodavam bem mais do que aquelas três, de ficar derrubando cadeiras e passando de mesa em mesa; mas como estavam bem vestidas, acompanhadas dos pais, nunca vi o dono criar um clima chato para ver se iam embora. Todos pagaram igual, então por que a distinção?
Mas a cena que realmente me entristeceu foi quando os garotos iam embora. Um último ainda saía do lugar, quando uma viatura da polícia encostou em frente e um policial saiu de lá e se dirigiu ao trailer. Nesse trajeto os dois – criança e policial – ficaram frente a frente, e a criança ficou desesperada e começou a chorar. O policial se pôs um pouco de lado e falou, delicadamente, que ela podia passar, o que ela fez correndo e sem titubear. Não me pareceu que a cena tenha agradado ao policial.
Mas ao dono do trailer... Ele, depois, comentava, se divertindo, a cena, como que dizendo que tinha razão ao querer aquele tipo de gente longe, e arrematava: “quem não deve não teme”. Olhei para ele; mulato, mas com o sucesso do trailer, pôde comprar um carro bom, dar condições para que os filhos entrassem na Unicamp, não deve morar na periferia, e sua fonte de
informação não deve ir muito além do Jornal Nacional. Fiquei com vontade de perguntar o que deviam aquelas crianças, mas preferi pegar meu lanche e sair logo, para não perder de vez o apetite com mais comentários de um típico “homem de bem”.
Se o dono do trailer, sua postura frente as crianças e o comentário da cena, me deixou revoltado, a cena me deixou triste. Fiquei a imaginar que representação aquela criança (assim como seus amigos) não faz da polícia, e do próprio Estado que ela representa. Pela idade, muito
provavelmente ainda não foi abordado ou sofreu uma geral da polícia, mas a imagem de homens-besta os policiais já possuem. Imagem que eu, branco, classe média, bem remediado, nunca tive – pelo menos para mim, quando criança.
Está na Constituição, e normalmente as pessoas que não se enquadram nos “homens de bem” queremos um Estado justo para todos, o qual começa por tratar a ricos e a pobres de maneira igual (mas de forma alguma a justiça se encerra aí!). Mas é evidente que isso não acontece. Pior: com a imagem que a polícia possui, não será tão breve que o Estado realizará esse preceito constitucional de igualdade. A tarefa do Estado, que hoje luta com o estado paralelo que é o crime organizado, não é somente de adentrar a periferia (falo em adentrar sem uso da truculência policial), oferecendo serviços e proteção, mas revolucionar uma imagem que vem desde tempos imemoriais, de descaso, na melhor das hipóteses, ou de violência, a qual talvez o desespero da criança frente o policial tenha sido uma boa síntese. Aqui minha tristeza, mesmo meu medo: ainda que olhando de longe, não vislumbro aberturas de mudança para um futuro próximo. Teremos que presenciar ainda por muito tempo cenas desse tipo e comentários daquele calão? Que futuro é esse que nos espera?
Os donos do país dizem atacar o Estado-Leviatã, essa besta-fera que destrói a liberdade; os desde sempre oprimidos se defendem do Estado-monstro (ou bicho-papão, no caso da criança), que só traz destruição, medo e (mais) violência; os “homens de bem” da classe média ficam amigos dos policiais, pregam “quem não deve não teme”, a tolerância zero (que deve começar de baixo, claro, ainda que admitam que o mal exemplo vem sempre de cima, dos políticos, todos ladrões), e sequer me dão nota fiscal.
Campinas, 21 de março de 2008
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