quarta-feira, 20 de março de 2024

Reorganização do setor e palestra motivacional antilimpeza [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Creio já ter comentado aqui que o chefe do setor, preocupado com “a evolução pessoal” dos seus subordinados, promove todo mês uma palestra motivacional com algum convidado que ele julga especial. A única coisa boa, segundo os colegas, é o lanche que ele leva - realmente ele gasta do salário para isso -, mas não me impressiona, dadas minhas mil chatices gastronômicas.

Assim como falar que a bola é redonda, sei que é um juízo analítico dizer que palestra motivacional é chata e perda de tempo. Quer dizer, pensando que os estadunidenses chamam de bola um trem em forma de carambola, acho que Kant está superado. Destarte, trago o que talvez seja novidade para alguns: palestra motivacional é chata e perda de tempo. O que não quer dizer que não haja palestras do gênero que são piores e as que são mais piores ainda.

Foi o caso deste mês. Mas, diante do que foi apresentado junto, nem foi tão ruim assim.



Nossa reunião mensal de ajuste da equipe começou com Duchas, um cabeça de planilha que chegou há dois ou três meses, metido a simpático, mas muito prepotente. Pelo visto, apesar de seu MBA em gestão por processos, ele é incapaz de fazer uma conta mais complexa sem apelar para o Excel (capaz de dizer que 2+5x0=0 e se achar esperto por ter sacado a pegadinha). Também parece não muito esperto para entender processos. Talvez se fizesse análise e entendesse um pouco os meandros de seu cérebro um tanto engessado, quem sabe ele pudesse palpitar em processos alheios, inclusive os visíveis. 

Após dois meses de análises pormenorizadas dos processos e funções do setor, ele apresentou o novo organograma e as novas funções de cada um. Simplesmente parece que ele deu um título a cada um dos números da roleta do Jogo da Vida, girou e pôs na planilha - salvo os de algumas pessoas, que esses ele encaixou com carinho (ou por necessidade) em locais chave. 

O Doutor Sabujinho, por exemplo, ficou também com a função de zelar pela reputação do setor e fazer uma espécie de Relações Públicas com os demais setores da empresa. Macedo perguntou (entre nós, é claro) como um engenheiro assediador de novinhas poderia colaborar na imagem do nosso setor. Carnegie acha que ele pode apagar os rastros dos assédios - o que muitos dos colegas de bancadas duvidaram, pois isso exigiria capacidades cognitivas que ele até agora não demonstrou ter. Eu sugeri que seus anos de Uber talvez tenham lhe dado algum repertório de falar platitudes, o que, aliado ao seu puxa-saquismo, permita passar uma impressão que o chefe e o Duchas crêem seja positiva.

No grupo das pessoas que tiveram suas novas funções escolhidas por necessidade, está Apolônia, que não é uma das mais antigas do setor, mas é das mais experientes. Podemos dizer que é quem mais sabe ali de como tudo funciona. E isso foi um detalhe quase insignificante para Duchas na hora de remodelar o setor. pois se pensou nela na hora de escolher sua função, não quis se rebaixar a perguntar a uma funcionária só com nível superior (negra, ainda por cima), como ele poderia ajeitar tudo. Foi dela que partiram as perguntas mais contundentes. Basicamente um “lembrou de combinar com os russos?”, mas em outros termos, para não fazer com que achem que haveria comunistas entre nós.

Diante da gagueira do sabe-tudo que só não sabe o básico, o chefe interveio, dizendo que esse tipo de detalhe (sim, o básico agora é detalhe) seria ajustado com o tempo, pois aquele projeto - como todos os do gênero - passaria por pequenas revisões conforme fosse implementado - o que fez com que eu me despreocupasse com minha nova função, pois certamente, após uma dessas pequenas revisões, seria a mesma com outro nome.

Mas essa parte ainda foi divertida, ver Duchas em calças curtas não sabendo responder o óbvio. Dureza foi a palestra motivacional que veio a seguir. Eu tinha o contrário no início deste texto, né? É que sempre que vou falar de um dos momentos da reunião, ela parece o pior, porque os dois foram sofríveis.

A palestrante começou com aquele papo de “não sou intolerante religiosa, tenho até amigos que não são cristãos” (faltou complementar: “eu só quero que eles sofram e morram agonizando”), mas que sua palestra se pautaria nos valores judaico-cristãos “que, afinal, são os valores do povo brasileiro”. Nessa hora já deu vontade de soltar um “Che, pelotuda, entonces me bê mi pasporte argentino; o puede ser de coreia, que dá fripas pra más países, che!”, mas óbvio que fiquei quieto - tento evitar que minha raiva ponha meu emprego em risco. 

Contou ela da sua vida pessoal anódina, que não dá nem para competir com Pollyana, de tão insossa - é de soçobrar qualquer motivação para se viver, talvez daí seu mérito -, de como era a louca da limpeza, até o momento em que sua filha avisou que ela não tinha olhos para outra coisa. Foi nesse momento que ela aprendeu a dialogar - e daí veio todo aquele blábláblá fértil como uma mula. Confesso que me surpreendi com esse ponto: imaginei que ela teria encontrado o deus judaico-cristão nessa hora, que lhe teria dito para pegar uma faca e partir para cima da filha, por ter questionado a autoridade materna, contra o que está na Bíblia, mas parece que esse deus (ao menos o judaico-cristão que ela se pauta) a abandonou e que foi bem sem graça mesmo tudo isso. 

Ao fim, me restou apenas a preocupação com o grau de sujidade que não deve estar a casa da palestrante depois de sua epifania judaico-cristã-motivacional antilimpeza.


20 de março de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

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