domingo, 9 de fevereiro de 2014

Há tempos [memórias feitas de saudades]   

Me repito. Pode ser que haja quem esteja incomodado com este aparente mais do mesmo - sei que você não estaria. Não nos repetíamos: a cada dia construíamos novos jogos com as palavras, novas significações para velhas sentenças, novas camadas de entedimento mútuo, com a qual levávamos nossa amizade por outra dimensão, abrindo diariamente novos questionamentos recíprocos sobre velhos fatos - eu te questionar era questionar a mim mesmo, e o mesmo valia para você, tenho certeza. Semana passada, ao voltar da casa dos seus pais, resolvi dar uma arrumada na minha casa, jogar fora uma montueira de papel inútil - notas fiscais, rascunhos já transpostos pro computador, propagandas, recortes de possíveis crônicas que ficaram apenas como potência - e outras coisas. Lembro de ter te contado, quando eu ainda morava em Campinas, que esse ímpeto me surgia quando voltava da casa dos meus pais. Já pensei muito a respeito, sem conclusões: fechar o passado (que passado?), ao menos aliviar o acúmulo de lembranças e pequenas memórias, porque perdi o medo de esquecê-las sem prova material? Sei lá o porquê de me livrar de coisas velhas depois dessas visitas, mas me parece claro a semelhança entre as duas casas: há algo que foi perdido para sempre em ambas. A arrumação ia bem até eu me deparar com o cupom fiscal do mercado que fica perto da sua casa. Eu desconfiei do que se tratava - e tive razão. É do dia vinte e oito de agosto, oito e vinte e oito da manhã - desconfio que seu médico seria mais ou menos nesse horário. Está meio apagado, diferentemente das lembranças que eu e tantos outros trazemos de você. No cupom, o básico de quando íamos lá: pão, queijo, presunto, margarina, requeijão, um bolo pronto e, em sua homenagem, uma Coca-Cola. Você já havia partido, não há, portanto, cigarros. Trinta e sete e sessenta e sete. Tenho sentido tanto a sua falta. Queria te contar das boas novidades que tem me acontecido ultimamente. Queria você para desabafar desse desânimo que tem desabado sobre mim - apesar das coisas boas. Queria falar das minhas confusões - talvez mais confusas por não ter você pra me dar suas ponderações a partir de um ponto privilegiado detro do meu universo. E toca "Ando só", do Engenheiros do Hawaii, agora. Eu me lembro de "Há tempos", da Legião Urbana. E sei que você gostava mesmo de Roberto - foi com a camiseta dele que você se despediu de nós. Hoje, indo dar uma caminhada depois do teatro - este fim de semana assisti à trilogia Pirandello, teríamos muito assunto para depois de cada peça, além de você me perguntar "como assim" ao fato de eu não saber quem é o tal Cacá Carvalho -, vi um "morador de calçada" lendo um livro do Nietzsche. Pouco antes d'eu passar por ele, baixou o livro e ficou a olhar para o nada, refletindo o que lera. Será que você o conhecia? Seria um dos seus amigos da estação Tatuapé, que estavam montando uma biblioteca com sua ajuda? Na hora lembrei de nossas mensagens por celular, precisava te contar a cena - essa ainda mais do que a do homem que levava seus bichinhos pra passear na Paulista: um cachorro, uma calopsita e uma iguana. Parece que meu universo se estreitou sem seus sms com banalidades do metrô. Houve uma vez que disse aqui que não te pedia resposta. Nestes últimos tempos, gostaria tanto de um sinal seu - assim como das nossas gargalhadas, dos nossos choros, das nossas confissões ditas em voz alta porque não tínhamos vergonha um do outro. Porra, Misson! Dona Missoneta... Ontem, desanimado, fui outra vez mais passear pela Augusta, para dar meu abraço imaginário em você - acho até que esperava algo excepcional para me tirar desse estado. Além de ter dito o quanto sentia sua falta e gostava de você, te pedi em silêncio resposta - não sei se ouviu. Eu, ao menos, não te ouvi, não além do que ouço nas minhas lembranças - porque em meus sonhos sigo sonhando sua ausência.   

Para Patrícia Misson, que não tem como responder.   

São Paulo, 09 de fevereiro de 2014.

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