quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Uma pregadora na praça do Correio.

São Paulo, praça do Correio, nove horas da noite. Uma mulher dotada de equipamento microfônico, gerador e uma bíblia prega barbaridades a um pequeno grupo de deserdados da sorte. Depois de ler um trecho do livro explica ao seu pequeno e seleto público: "se você não venceu na vida, se você fracassou nos seus sonhos, é porque você não quis aceitar deus". Depois mandou todos se levantarem para pedir perdão. O leitor ou a leitora, antevejo, traz aquela cara de "que há de novo nisso?". É uma cena banal, eu sei, mas o sadismo da pregadora divina ganhou contornos mais fortes diante dos cobertores genéricos cinza que protegiam os ouvintes do termômetro que marcava onze graus Celsius. A estratégia é batida mas eficiente: afunda mais quem já está chafurdado e depois alça ao mesmo ponto que antes e manda agradecer (e pagar o dízimo, claro!) por tê-la salvado do pecado. A vida de pobreza material se torna vida de pobreza humana - quando não de pobreza material e humana. O mal é sempre culpa sua, o bem, nunca seu mérito. É isso o cristianismo, o amor ao próximo por ele defendido: ser sádico diante do mais fraco e sujeitá-lo aos poderosos, a um sistema que o exclui e discrimina? Assim sendo, só me restar me orgulhar de ser ateu e não-cristão! O leitor ou a leitora mais afim à filosofia alemã do fim do século XIX já deve ter feito a mesma cara de fastio que fez há pouco; reconheço: li pouco e há muito tempo Nietzsche, e desconfio que não chego a falar o mais básico do bom bigodudo. E sei que a exegese (que falar em leitura é exagero. Deturpação?) bíblica da pregadora da praça do Correio, apesar de predominante - afinal, está embasada nos valores hegemônicos de uma sociedade excludente (que se auto-denomina ideologicamente de meritocrática) -, não é a única. Li não faz muito o teólogo Jung Mo Sung, adepto da teologia da libertação. Seu livro - Sementes de esperança - não me fez acreditar em deus (que eu decididamente parei de acreditar - e mesmo de questionar sobre sua existência - depois de ler um artigo do Frei Betto sobre a páscoa), mas não me deixou desanimar na minha crença nos homens - até mesmo os cristãos.

São Paulo, 14 de agosto de 2014.

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