quinta-feira, 29 de março de 2018

Só sobreviverá quem não reagir? Alckmin e os próximos passos do golpe

Ouso dizer que Alckmin é um dos principais personagens a ser observado para entender os caminhos que o golpe desenha para o futuro - para além dos que estão na ribalta. Sua declaração inicial sobre o atentado ao ex-presidente Lula, durante a caravana no Paraná, não parece ter sido um mero "escorregão", como classificaram alguns jornalistas. Teria sido se as eleições de 2018 fossem correr em condições normais - livres com tentativas de golpes brancos. Não é o caso. Por isso a fala de Alckmin pode sinalizar um cálculo político além do eleitoral.
Alckmin, é evidente, é o nome do establishment - econômico, midiático, judiciário-policial, político. Reparem que falo "nome" e não "candidato": ainda que tecnicamente lhe caiba a condição de candidato, de alguém que almeja um cargo, falar em candidatura daria a falsa impressão de normalidade democrática, com eleições livres e disputa aberta entre concorrentes. Ele é o nome porque já foi escolhido para assumir o Planalto em 2019, falta apenas achar um jeito de dar um verniz legal a essa escolha das elites.
Em novembro de 2017, quando Alckmin mostrou tirou do páreo Dória Jr, ficou clara a estratégia para dar legitimidade ao escolhido pelos donos dos poderes, ao emergir como o moderado, diante dos extremistas Bolsonaro e Lula (?!). Houve até aproximação desse político santo com a esquerda (?!) do seu partido - sinal a ser interpretado como altamente positivo, mesmo sendo evidente toda sua hipocrisia: nestes tempos em que o fascismo avança e esquerda se torna não apenas palavrão como condição suficiente para violência "legítima" contra o outro, fazer o papel de político aberto a dialogar e ouvir todos os lados é um exemplo de avanço civilizatório.
Mas, ao que tudo indica, esse avanço civilizatório é dispensável para os rumos que se pretende impôr ao país, e Alckmin pôde dar vazão a uma persona mais autêntica, ao dizer os tiros de ruralistas-fascistas contra a caravana de Lula eram a colheita daquilo que o líder popular plantara. Alguém que não tem apreço pela vida de uma pessoa não precisa de esforço para não ter apreço pela vida de mais outra. Alckmin, redundante dizer, nunca demonstrou maior respeito pela democracia (fora dos pleitos) e pelos direitos humanos, ao legitimar assassinatos extra-judiciais, por parte de seus subordinados, de pessoas inocentes (lembrem-se que num Estado de Direito, até que se prove a culpa, a pessoa é inocente), desde que fossem pretos pobres periféricos. Dizer que Lula colhera o que plantou foi apenas uma nova apresentação para seu "quem não reagiu está vivo", ensaiado dois dias antes pela "jornalista" Eliana Cantanhede, quando esta expressou sua preocupação com a caravana estar reagindo aos ataques sofridos - ataques legítimos, pelo que ficava claro no não-dito da frase. Sobrou por parte de outros políticos, expressar o pathos democrático surgido do golpe desde Curitiba: quem provoca pode apanhar e levar tiro - e por provocação pode-se entender querer fazer uso do direito constitucional de ir e vir por vias públicas de acordo com as leis de trânsito.
Contudo, não creio ser apenas o desabrochar da crisálida tucana, há ali cálculo político. A ida e vinda, de se desdizer no dia seguinte, não deixa de ser majoritariamente positiva para o bom moço da Opus Dei. Dois cenários justificariam a frase de Alckmin - e seu recuo.
O primeiro, mais positivo, vamos dizer assim, o governador paulista faz um cálculo visando as eleições previstas de outubro: sem Lula no páreo e ainda sem força para encostar em Bolsonaro (supondo que este também não será impedido de concorrer, possibilidade factível para dar verniz de imparcialidade ao judiciário), sua frase mostra o abandono do corte de político de centro para um mais à direita, imaginando que a disputa seria com Bolsonaro - se não pela vitória, por uma vaga no segundo turno. Seu recuo posterior pode ser reinterpretado na temporada eleitoral como um ceder ao "patrulhamento ideológico" das esquerdas - num segundo turno contra um nome progressista. Ou pode ser usado - se for para buscar votos na esquerda - como um mero lapso, e melhor votar nele que em Bolsonaro.
O outro cálculo que o governador pode estar fazendo seria o de agradar não o eleitorado geral, mas de um possível colégio eleitoral. É certo que não há nada na lei que fale em eleições indiretas para presidente, entretanto tampouco há o crime de não possuir um imóvel, e isso não impediu a condenação de Lula por não ter adquirido um imóvel que um juiz e uma emissora de tevê queriam que fosse dele.
A frase de Alckmin tanto contribui para a construção da narrativa da prisão de Lula - necessária até para a segurança do ex-presidente -, como o gabarita para uma eleição via congresso ou senado - que se não for o atual, será tão ou mais conservador, ao que tudo indica -, e o legitima perante as forças repressivas que detém o poder de fato no país (judiciário, polícia, militares). Em suma e em conclusão: o "quem não reagiu está vivo" deve ser a palavra de ordem dos golpistas, com o ponto que quem define o que é reação são os reacionários - como reportagem sobre a caravana de Lula no Rio Grande do Sul, quem foi armado intimidar partidários do ex-presidente foram policiais da brigada militar [http://bit.ly/2Ijhxha], se um destes tivesse reagido, teria pedido... como pediu a democracia, ao reagir contra o 1% dando voz à população, reagiu: foi alvejada, e agora luta para não morrer. Bem feito.

29 de março de 2018




terça-feira, 20 de março de 2018

Escuta "policial" e reação estereotipada - um exemplo prático

Eu havia terminado meu texto anterior, "O que conseguimos escutar?", fechara o LibreOffice para deixar o texto decantar um pouco (João Cabral de Melo Neto dizia que para um poema deixava meses ele na gaveta, antes de retomá-lo; como escrevo crônicas, se muito deixo um dia, salvo quando esqueço), e ao entrar no Fakebook me deparo com uma postagem do professor Gilberto Maringoni muito próxima do que havia dito, apenas em tom altamente polemista. A começar que ao invés de pegar um tema secundário - greve dos Correios -, Maringoni foi usar justo o tema candente da semana - a execução da ativista e política Marielle Franco, do PSOL. A balbúrdia foi tanta que ele preferiu apagar seu comentário - por conta disso, não o reproduzo aqui, mas comento assim mesmo.
Na sua provocação, Maringoni leva ao paroxismo as reivindicações de primazia do discurso identitário, vinculando diversos assassinatos políticos da ditadura civil-militar de 64 e da democracia não à oposição ao regime ou aos interesses econômicos poderosos, mas pela questão de identidade - por ser negro, mulher, nordestino, mulher. Por fim, diz que não sabe porque outros haviam sido mortos, se eram do grupo opressor per se - homens, brancos, heterossexuais. 
As reações, desnecessário dizer, foram imediatas e majoritariamente raivosas - poucos questionavam o porquê daquela provocação ou se aquele seria um bom momento, além dos que apoiaram. E pode ser mesmo que o momento para tal provocação tenha sido infeliz, como de algum modo admitiu depois Maringoni: o ar sócio-político atual está mais que carregado, está envenenando - pelo Lula dirão os globoletes e seguidores patos, pelo fascismo estimulado por Globo e pato, dirão os minimamente informados -, com ânimos à flor da pele, o que ressalta ações reflexas ao invés de reflexivas. 
Ao começar a ler a postagem, eu mesmo achei muito estranha, estaria ele querendo dizer realmente aquilo? Ao fim, ficava evidente que não. Quer dizer, evidente após um pouco de reflexão - mas a internet é terra da reação imediata, e isso não orna com reflexão. Maringoni é do PSOL, não é um ex-comunista convertido (como Palocci, Jungman, Freire), não é do PSDB, MBL ou mesmo um obscuro dono de casa desempregado que entre um curso de iluminação e um de marcenaria, enquanto espera ser chamado em concurso, escreve crônicas eventualmente republicadas no Nassif On Line. Uma postagem como aquela com certeza teria algo por trás: ou ele sofrera uma pancada na cabeça, ou tivera a senha roubada, ou dizia muito além do que estava escrito. A postagem vinha sem maiores trabalhos argumentativos, o que já apontava o tom provocativo - pro vocar aquilo que está naturalizado. Análise de contexto, de trajetória do autor, de jogos de linguagem? Boa parte das reações foram como se se tratasse de Reinaldo Azevedo; e as respostas dadas pareciam ser robôs repetindo frases feitas, com pequenas variações: racista, machista, misógino. Isso apesar de não haver tom depreciativo às mulheres ou negros, ele apenas explicitava o que subjaz em certos discursos do ativismo identitário, que faz da trajetória formativa - sem dúvida importantíssima, vital no trajeto de militantes -, causa e consequência, início meio e fim de toda ação e reivindicação política, negando o contexto mais amplo em que se inserem, ou seja, negando o Estado de exceção (declarado ou por omissão) a serviço dominação capitalista, garantidor dos privilégios das elites predatórias do país. Marielle Franco não foi morta em emboscada por ser mulher negra periférica: negros, mulheres, periféricos, homossexuais e outras minorias são mortos aos borbotões todos os dias, sem maior alarde e sem maiores consequências que estatísticas. Marielle, mulher negra e periférica, foi morta por ser ativista contra um sistema no qual se insere o assassinato em série de negros, mulheres, periféricos, etc - teria sido morta mesmo se fosse homem branco.
Talvez realmente o momento de tal provocação tenha sido inoportuno; contudo a reação apenas evidencia aquilo que venho desde muito alertando: a escuta policial para quem está do lado, em busca do infiltrado ou de quem rompe com a pretensa pureza e perfeita harmonia (do movimento ou da sociedade); a negação do pensamento, da reflexão e da crítica; a divisão do mundo entre os do bem e os do mal (ou os do lado certo da história e os do lado errado da história), sem nuances, sem contexto, sem história; a separação bem delimitada e em clara verve de guerra entre aliados e inimigos (que não merecem a condição de humanos, ou seja, não merecem direitos, entre eles o de expressão), não é privilégio de fascistas ou dos que se deixam encantar pelo seu discurso simplista. As esquerdas e as forças progressistas e democráticas precisam urgentemente reagir e desbaratar essa forma de pensar, ou logo nossa escolha será entre mandar aqueles que escolhemos taxar como "bandidos" para o paredão ou para a câmara de gás.

20 de março de 2018.


PS: não que o combo 60 mil assassinatos/ano+polícia MILITAR+narcoestado+prisões brasileiras não possa ser considerado uma terceira via entre o paredão e a câmara de gás, ainda que em doses homeopáticas (não para quem sofre diretamente com toda essa violência, é certo) e sem enunciar claramente do que se trata.

domingo, 18 de março de 2018

O que conseguimos escutar?

Reconheço que foi inesperada toda a reação à minha última crônica, "Conseguimos ouvir o que fala quem diz 'bem feito aos carteiros'?". No Nassif On Line/Jornal GGN, foram mais de cinquenta comentários, a maioria me criticando e querendo ver os funcionários dos Correios se darem mal - Kassab, Meirelles e cia devem rir muito ao ver zé ninguém batendo em zé ninguém enquanto eles se lambuzam. Contudo, para além do ódio aos carteiros - que eu não entendo e me surpreende -, noto que pus a carruagem na frente dos bois, e não devia perguntar se somos capazes de escutar o outro, e antes, mais simples: somos capazes de escutar?
A ignorância não é fruto de falta de educação formal (isso contribui, mas não é condição necessária, muito menos suficiente), nem privilégio destes tempos pós-modernos. Entretanto, me pergunto o quanto a ausência a conversa "real" (em oposição à virtual) não tem deteriorado uma capacidade desde sempre pouco desenvolvida nestes Tristes Trópicos, que é a arte de dialogar. O quanto a ausência da voz numa discussão nos impede de escutar nuances do discurso do outro (um ceticismo receoso pode soar como uma recusa intransigente na internet), assim como a permissão de dizer o que quiser a qualquer momento que a internet nos dá, sem qualquer limite que não seu tempo e sua paciência, nos conduz ao paroxismo de impedir escutar o discurso do outro. 
Lemos um "textão" no Fakebook ou um artigo na internet caçando os 140 caracteres essenciais e logo despejamos o que está na agulha, sem pensar - um tiro não exige reflexão, exige no máximo reflexo. No exemplo que me cabe, só o título de minha crônica anterior já me toma 64 caracteres, as palavras-chave "greve correios defesa trabalhadores apoiaram o golpe", já me gastam outros 52, "pato ódio desfazer" levam os 24 restantes - telegramas talvez exijam maior capacidade de raciocínio que um twitter. Caçado um "twitter elementar" do texto, é hora de repetir o que se acha - na ilusão (ensinada pela escola) de que repetição seja pensar. E não é por repetir a si próprio que isso se torna reflexão: o fato de ter refletido uma primeira vez para se chegar a uma conclusão não implica que esteja pensando as outras 999 vezes que se repete, até porque, é de se imaginar, que interlocutores e contextos mudem, exigindo repensar a própria estratégia argumentativa, quando não o próprio núcleo do argumento, diante de novas réplicas.
Por uma questão de saúde mental e emocional, e para manter um mínimo de fé na humanidade, evito ao máximo ler comentários de internet, seja onde for. Exceção feita aos dos textos que publico, onde busco interlocutores, com retificações ou ratificações pertinentes; ou mesmo para tentar entender possíveis falhas de comunicação da minha parte. Boa parte dos comentários ao meu texto sobre a atitude para com os funcionários dos correios foi de críticas - o que em si não seria um problema -, porém feitas de uma forma tão crua que deixou evidente que as pessoas não eram capazes de "escutar", de compreender o que elas próprias escreviam - e não creio ser ingenuidade minha acreditar nisso e ao invés de crer que, na verdade, são pessoas da pior índole se fazendo passar de progressistas e/ou esquerdistas. Aquilo que eu havia alertado em meu texto foi exemplificado nos comentários: o ódio fascista, o desejo punitivista de sangue do inimigo a qualquer custo, o "se esteve contra mim sempre será meu inimigo". Curto, grosso, direto, bruto, tosco, ignorante. Mas de uma ignorância que não mobiliza para ampliar os horizontes, uma ignorância orgulhosa de sua própria limitação, que busca afugentar (quem sabe matar?) todo aquele que incomode seus seguros e estreitos limites (e antes que me acusem de neoplatonismo tosco, impressão que esta frase fora de contexto pode passar, sugiro ler meu texto anterior). Me vem a imagem de Bush, ainda que para os dias atuais ele seja um intelectual. Reconheço: quando escrevo um texto como "Conseguimos ouvir o que fala quem diz 'bem feito aos carteiros'?" meu desejo é que me provem o quanto estou equivocado, o quanto meu umbigo não permitiu perceber nada claramente; entretanto, os comentários foram iradas confirmações da minha análise: a forma fascista de (não) pensar está vencendo. E desconfio que as pessoas não estejam se dando conta disso. Logo, se são incapazes de escutar a si próprias, é demais pedir para que ouçam o outro. Resta a força bruta - o "cala-te ou te arrebento".
Três aspectos me chamam a atenção nas respostas recebidas: a ausência de nuances, a petrificação de posições (para a eternidade?) e um mal digerido cristianismo - talvez tendo como raiz uma profunda descrença no ser humano e na humanidade. Meu chamado para um "ouça, entenda, converse, acolha" trabalhadores explorados por um governo ilegítimo, que implica em um chamar aberto mas condicionado para a luta conjunta contra os golpistas, ao que tudo indica foi entendido como um perdoe e aceite tudo - o "dê a outra face" de Jesus. Mais: se uma parte dos funcionários dos correios foram favoráveis aos golpistas, todos os funcionários foram favoráveis, e uma vez que foram favoráveis, sempre serão favoráveis. É seu "locus naturalis", diriam os filósofos medievais: assim como um ex-presidiário sempre será presidiário, não importa que tenha cometido um crime num determinado contexto e pagado sua dívida junto à sociedade, não merece mais confiança, nunca. (Aqui abro um parênteses, não todo desprovido de propósito, para agradecer a educação dada por minha mãe e meu falecido pai: uma educação grandemente desprovida de pré-conceitos, sociais, étnicos, de gênero, ou o que for; nunca aprendi que um negro pobre da periferia seja "do bem", assim como nunca aprendi que um branco rico seja "do mal", nem que uma pessoa não possa mudar, para melhor ou para pior, com os anos, que o diga muitos ex-comunistas). 
Ouso a hipótese de que, para além da forma fascista de enxergar o mundo, a visão estanque de si e do outro possa ser consequência da nova tendência da esquerda, as pautas identitárias. Longe de desqualificar esse tipo de pauta, muito pelo contrário: é de extrema importância que os oprimidos ganhem voz para falar em alto e bom som que além dos aspectos econômicos salientados pelo marxismo, há, sim, questões fenotípicas, identitárias, que geram doses extras de opressão sobre determinadas populações. Contudo, ao se pôr tais pautas como figura de proa, desprovida de visão mais ampla dos jogos de forças que criam e oprimem tais identidades, não é preciso dois passos para incorrer em generalizações e em essencializá-las como estratégia para cerrar fileiras - como afirmar a sororidade acima de qualquer contexto social, como se a opressão à mulher fosse igual em qualquer caso, Carmen Lúcia, Marcela Temer, Marielle Franco e a faxineira negra do mercado que quer votar no Lula e achar um marido que a proteja -, até cair num narcisismo identitário, carente de sempre ter um inimigo bem identificável e da necessidade de reforçar sempre seu predomínio sobre todas as outras pautas.
A escuta passa a ser treinada, então, para encontrar o inimigo, o infiltrado. Assim como não se escuta quem se põe como crítico, cético ou antagonista (atenção! estou falando de gente comum, não de fascistas convictos, como os do blog de mesmo nome), perde-se a capacidade de escutar quem não repete exatamente sua cantilena, espantando possíveis aliados - e mesmo quem diz representar. 
Pior, essa escuta estritamente policial do outro (ou religiosa, do padre ou pastor em busca dos pecados alheios) se volta para si mesmo, porque se escutar pode implicar em dar espaço para discordâncias, fissuras com as generalizações identitárias, o que - dizem algumas correntes - seria o fim de toda a luta identitária e o retorno da opressão mais brutal. A isso se alia a repetição de ideias prontas, tornando assim desnecessário que se escute, uma vez que se sabe o que vai falar. Consequência até natural, uma vez que quem não sabe ouvir não será capaz de falar.
Realmente não era o ponto aonde eu esperava chegar ao iniciar esta crônica, mas temos, ao fim e ao cabo, aquele discurso ideológico da velha esquerda, sintetizado por Harold Rosenberg: "O comunista pertence a uma elite dos conscientes. É, portanto, um intelectual. Mas uma vez que toda a verdade foi-lhe conferida automaticamente mediante a sua adesão ao Partido, trata-se de um intelectual que não precisa pensar (...). Desde que somente ele possui a resposta certa, em toda parte o comunista tenta controlar a atividade dos outros". Por isso, repito o que falei em minha última crônica, com a mesma citação de Bernard Shaw: a necessidade da educação para a democracia: "Toda nossa teoria da liberdade de palavra e de opinião para todos os cidadãos repousa não na asserção de que todo o mundo tem razão, mas na certeza de que todo o mundo está errado nalgum ponto em que um outro tem razão". Porém me resta a dúvida: quantos estão dispostos a porem em risco sua identidade garantida pelo grupo, seus frágeis egos entrincheirados em generalidade heterônomas, e se pôr a escutar a si próprios, seus desejos e seus medos, e se abrir ao diálogo franco com o outro?

18 de março de 2018

quinta-feira, 15 de março de 2018

Conseguimos ouvir o que fala quem diz "bem feito aos carteiros"?

Vejo algumas postagens no Fakebook sobre a greve dos funcionários dos Correios. O tom geral era de "bem feito, quem mandou apoiarem o golpe?". Alguns tentaram chamar para a realidade: são trabalhadores se dando mal como todos. Outros rebateram, tentaram ilustrar o merecimento da categoria, dizendo que tiveram perdas durante os anos FHC, receberam dos governos petistas substantivas melhoras, mas foram mal agradecidos, e agora merecem pagar o pato. São pessoas que se consideram de esquerda ou progressistas ou críticas - talvez tudo isso. Vejo nesse discurso, contudo, o outro lado da mesma moeda dos que destilam ódio contra petistas e esquerdistas: trocam os alvos, não a forma de "pensar": com o fígado, com base no ódio, na intolerância. Provavelmente se amanhã uma falácia qualquer convencê-los de que o Mal veste vermelho, trocarão de lado nessa "guerra", e ainda terão sua decrepitude elogiada pelos novos pares - vide Lobão.
Se a grande mídia, o sistema escolar, os aparatos ideológicos paraestatais, e as nossas elites do atraso têm sua boa dose de responsabilidade por esse rebaixamento intelectual, a esquerda não pode ser eximida de responsabilidade. Da extrema-esquerda, que sempre tratou a política em termos bélicos - de inimigos e aliados -, à esquerda moderada, que se arrola um poder salvacionista mágico, passando, é claro, pela vanguarda do atraso, a esquerda acadêmica, produtora de discursos críticos importantes na análise e estéreis na prática; e em praticamente todas as vertentes, esse dom da esquerda tupiniquim de criticar o outro, fugir da autocrítica e sempre dividir, nunca unir. 
O "bem feito" para os carteiros é fruto desse caldo: uma educação para o sucesso individual, uma ideologia que pega do cristianismo um deus revanchista e a ideia de culpa (pecado soaria muito religioso), com a necessidade de purgar-se antes de voltar a ser aceito na comunidade das "pessoas de bem", na esquerda chamadas de "pessoas do lado certo da história"; a heteronomia do olhar para a realidade, que não permite perceber nesse outro um próximo - apenas com equívocos diferentes -, e nessa luta uma oportunidade de aproximação. Não há nuances: sempre o lado certo, inteiramente certo, é o meu.
Do argumento de melhora nos anos petitas, não fui atrás dos dados, e tomo como sendo verdade - é factível, dada a trajetória dos governos tucanos e petistas. Tinha um amigo que trabalhava nos Correios nos anos Lula. Lembro claramente do seu desgaste com mobilizações e greves: se houve melhoras, não foi fruto de benevolência petista, e sim de luta dos trabalhadores por seus direitos - aliado à uma maior abertura do PT, é certo. O fato de carteiros terem caído no canto do pato talvez não seja mal agradecimento contra um governo que só os favoreceu por causa de sua luta, e sim o conto do vigário de que com o golpe todos sairiam ganhando sem precisar de tanto desgaste. A deseducação para refletir estava dada, foi questão de ajustar o discurso goebbelsiano.
Assim, temos parte da plateia comemorando as dificuldades dos carteiros, ao mesmo tempo que a outra xinga professores por estarem reivindicando condições dignas de trabalho - como faziam os carteiros década passada. São bodes expiatórios do ressentimento de vidas pobres de vida - são também bodes na sala para distração das massas. Enquanto isso, Kassab, Meirelles e cia (como mostra reportagem da Carta Capital [http://bit.ly/2peYCNn]) são os que lucram com a empresa - até a hora que esse lucro for repassado para a iniciativa privada, para o lucro dos de sempre, e prejuízo também dos de sempre: trabalhadores e usuários dos serviços.
Um dos grandes pontos que nos cabe: como desfazer esse caldo de ódio, como desarticular essa rede de pequenos narcisismos que preferem romper com o próximo por ninharias a cerrar fileiras contra os graúdos, contra os deflagradores dos problemas? Ouso dizer que parte da resposta está em aguçar nossa escuta para o que estão falando, para o que estamos falando e para aquilo que falam a partir do que falamos. Recusar o diferente é entregar uma pessoa talvez com boa vontade, desejo de mudar, para o pato, agora sapo. Quão oprimido, quão odiado se sente alguém que precisa achar alguém para oprimir e odiar também como forma de sentir que existe? (Sim, Paulo Freire sempre vivo, apesar de esquecido pela esquerda). A partir dessa escuta, é preciso investir maciçamente na educação (formal e, principalmente, não-formal) para a democracia - democracia entendida muito além de eleições formais. Como diz Bernard Shaw: "Toda nossa teoria da liberdade de palavra e de opinião para todos os cidadãos repousa não na asserção de todo o mundo tem razão, mas na certeza de que todo o mundo está errado nalgum ponto em que um outro tem razão". E mesmo quando não tem razão, tem suas razões.

15 de março de 2018

segunda-feira, 12 de março de 2018

Boulos, o próximo impedido?

O PT tem reiteradamente falado que não possui plano B para caso Lula não possa disputar as (previstas) eleições - o que deve deveras ocorrer (ele não disputar; as eleições, isso ainda há sérias dúvidas). Certamente o partido faz seus cálculos. Contudo, há indícios, pela movimentação observável (não tenho contatos para saber o que se passa nos bastidores), da possibilidade do PT não disputar a presidência da república nas (eventuais) eleições de outubro. Fosse dois anos atrás, qualquer análise que falasse em PT não encabeçar uma chapa poderia ser descartada como estapafúrdia; os tempos sinistros em que vivemos, entretanto, tornam não somente factível não ser cabeça de chapa como sequer ficar com a vaga de vice.
Seria um ato simbólico importante para evidenciar o estado em que se encontra o Brasil: o maior partido do país, aquele que ainda é o partido mais forte do país, um dos maiores partidos de esquerda do mundo, não disputará a eleição presidencial, não por não ter um nome viável, e sim por não confiar no processo judiciário-eleitoral.
Além de não se estar ventilando nenhum nome do partido, o vídeo de apoio de Lula à candidatura Boulos, pelo PSOL, é uma sinalização nesse sentido. O líder do MTST, além de formação nas lutas sociais, tem também formação acadêmica - acusação feita contra Lula por dez entre dez ignorantes com diploma na parede -, e se é atingido pela rebarba da criminalização da esquerda, foge do foco principal da mídia, que é o PT - pode, inclusive, se utilizar desse discurso, caso posto contra a parede, de que o partido surgiu em resposta às falhas petistas. Pode ser o nome ultrapolítico contra o candidato antipolítico que deve correr pela direita - Bolsonaro, Huck ou algum outro -, e se conseguir decolar nas pesquisas, pode até mesmo trazer o debate um pouco mais para a esquerda (que ficaria pelo centro, dado a direitização atual), com boa distância das armadilhas moralistas - o que seria um avanço civilizatório.
Antes dos ataques da direita, a primeira tarefa será com os do próprio PSOL. Desde sua fundação tenho dito que o PSOL é um partido sem base social (além de responsável pelo retorno de Collor ao senado, em 2006), o que é um equívoco: sua base social é uma de meia dúzia de acadêmicos, que figuram entre os 3% mais rico da população. Ainda que parte da crítica do outro pré-candidato do partido, Plínio de Arruda Sampaio Jr, seja pertinente, seu esperneio me faz lembrar dos meus tempos de editor do Trezenhum. Humor sem graça., em que havia o "Prêmio Peter Pan de Resistência", dado o alienação social que a esquerda da Unicamp vive e a briga para recusar toda realidade em favor dos seus ideais. Plínio é professor da Unicamp, e à sua visão do Brasil como Terra do Nunca, soma-se um ego de enorme tamanho, bem ao gosto dos acadêmicos brasileiros. Longe de pensar no partido ou no país, pensa em seu desejo de ser candidato a presidência da república, como fora seu pai - ainda que renovar os nomes e manter os sobrenomes seja prática consagrada da direita brasileira. Resta saber o quanto vai aceitar ser instrumentalizado pela direita para prejudicar Boulos. 
Pela direita, o jogo promete ser duro, caso Boulos cresça nas pesquisas - por ser tomado como candidato do Lula, por exemplo. As acusações de incentivar a desordem e o crime serão de hora em hora. Reportagens e mais reportagens mostrarão exemplos isolados de contraventores penais ("bandidos") que compõem o MTST; ou boatos (hoje chamados de fake news, prática consagrada pela Globo e afins) de que, assim como ocupam prédios abandonados, com a vitória, Boulos obrigará as pessoas a dividirem suas casas com sem-tetos, ou outras pataquadas requentadas de 1989. Contudo, os tempos são outros, e se não bastar um calmante na água do debate e uma edição tendenciosa, Boulos tem tudo para ser preso, sob acusação qualquer - provavelmente terrorismo. Já falei em outra análise que Bolsonaro é boi de piranha das elites para a eleição prevista para outubro. Seu impedimento - possibilidade que ainda paira - seria uma tentativa de dar lustro de imparcialidade à justiça e permitir que ela cace todo candidato de esquerda ou progressista, cuja plataforma seja estancar e reverter o golpe. Sem Lula, talvez sem PT na disputa, Boulos é forte candidato não apenas ao segundo turno, como a uma nova arbitrariedade dos golpistas vestidos de toga e armados de concessões de tevê.

12 de março de 2018.

Lula (e o Brasil) em aporia

Fico a imaginar o tamanho do drama que vive Lula por estes dias. Sua prisão é certa: assim como o TRF-4 e o STJ, o STF é um teatro, não um tribunal, as falas já foram dadas de antemão - e não estão na constituição ou qualquer código do direito nacional. A demonstração de que o golpe não faz concessões ao populacho, com a encenação do TRF-4 em janeiro, mesmo com toda a pressão popular, teve o esperado efeito de reduzir essa mobilização. A insistência na narrativa das (previstas) eleições de outubro corroboram com a desmobilização: "perdemos agora, mas daremos o troco nas urnas". Duro que estamos sempre esquecendo de combinar com os russos, digo, com a elite brasileira. Com a rua limpa, mandar a polícia levar o ex-presidente, ainda que traga o perigo de uma convulsão social, seu risco é menor do que um ano atrás; e Lula na prisão não poderá ser cabo eleitoral de ninguém.
No fundo, cabe a Lula agora decidir se será preso ou resistirá, e se tal resistência será baseada na mobilização popular e num frágil escudo humano ou em um pedido de asilo político no exterior. Está numa aporia: qual seja sua escolha, arcará com perdas. Não vejo mais que essa três alternativas - por parte dele, nunca duvidemos de uma ainda maior radicalização das elites (Paulo Henrique Amorim já há um bom tempo tem alertado para ações mais drásticas da direita e seguidores fanáticos do Pato).
Preso se tornará um mártir, o Nelson Mandela destes Tristes Trópicos. Acontece que Lula não tem mais idade para ficar vinte anos na prisão e depois ainda retornar para ser presidente. Sem contar que estamos num estado de exceção. Sua prisão pode durar só até passarem as eleições, ou pode se tornar prisão perpétua: depois do triplex, o condenam pelos pedalinhos, pelo Instituto Lula, pelas greves de 79-80: não há prescrição de crime quando se julga um inimigo político em "tempos excepcionais", e não há lei que não possa retroativamente criar crimes (ou absolver criminosos amigos). Se preso, Lula não poderá fazer campanha para  seu candidato nas (imaginadas) eleições de outubro, ou seja, não poderia dizer qual será um dos nomes que estarão no segundo turno. Passará a mensagem de republicanismo, de respeito às instituições e às leis do país, mesmo que sejam injustas - assim como quando teve o passaporte apreendido. É uma mensagem pacifista, de crença na possibilidade da mudança por dentro, porém, ao mesmo tempo, uma exemplo de conformismo. E àquele jargão que muitos gostam: "a história julgará", não é mais que discurso dos que fracassaram e desistiram, pois a história se faz agora.
A possibilidade de resistir à prisão traz mensagem no sentido oposto: de que a um judiciário injusto (não se pode sequer falar em leis injustas neste caso) não nos resta outra coisa que a desobediência civil, o não cumprimento de suas ordens; de que a uma situação injusta se deve lutar por todos os meios. A possibilidade de permanecer no país e ser defendido pelo povo pode trazer grandes abalos sociais, mártires anônimos, mas com pouca possibilidade de reverter a prisão. No exílio, tentarão impingi-lo a pecha de covarde, a chance de convulsão social é menor, e a possibilidade de interferir nas eleições permanece.
Desconfio que Lula esteja pesando qual saída escolherá - bem gostaria que ele achasse alguma outra, mais alentadora. Ainda que seja um grande homem público, de aguçado faro político, Lula não é infalível, sendo que, sem dúvida, sua maior falha foi na avaliação das elites brasileiras, na qual baseou tanto sua política de acomodação política quanto sua política econômica: não é um Romanée Conti que te faz ingressar na elite tupiniquim, e sim a rejeição ao povo e a tudo o que é brasileiro. Pela dimensão que teve, e que ainda foi acrescida com toda a perseguição atual, Lula precisa abandonar o republicanismo e o respeito às instituições - se o próprio STF não cumpre a constituição, porque ele deveria cumpri-la, prejudicando de si próprio e a todo o país? Essa luta perdida (ao menos para agora), deve deixar para o PT, que é um partido institucional e deve pautar sua luta dentro da legalidade e dos princípios democráticos e republicanos - seja lá o que isso signifique no Brasil. No futuro, Lula estará entre os maiores da história da América, não resta a menor dúvida quanto a isso, o que precisamos é que ele permaneça ativo na história agora, antes de mártir, precisamos de sua liderança.



12 de março de 2018.

terça-feira, 6 de março de 2018

O meio sol amarelo de Biafra e o sorriso amarelo da civilidade pela metade no Brasil [Diálogos com a literatura]

Ganhei o livro de uma amiga, que o lera e gostara muito. Não perguntei sobre o que era, agradeci o presente e aceitei a indicação às cegas - como gosto de fazer muitas vezes, na esperança de uma boa surpresa. Os únicos dados que eu tinha antes de começar a leitura de Meio sol amarelo, da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, eram que a autora era nigeriana e que eu nada sabia da história nigeriana - salvo, por alto, algumas notícias recentes, time caneleiro na copa de 94, petróleo, desigualdade social, caos urbano de Lagos e Hoko Baram.
São quatro partes. A primeira, no início da década de 1960. Percebe-se o contexto de independência nacional, ainda que um tanto alheio, distante. Em uma cidade universitária, em um ambiente que me remeteu ao distrito de Barão Geraldo, onde fica a Unicamp, professores universitários - representantes de uma classe média com boa vontade e pouca autocrítica - discutem a libertação dos povos, a união africana, o fim do racismo, enquanto são servidos por serviçais desprovidos de quaisquer direitos, espécie de cachorros de estimação com a utilidade de limpar a casa, cozinhar e outros afazeres - aqui nestes trópicos conhecidos como a doméstica que não precisa de direitos, se for o caso, nem de salário, porque "é praticamente da família", e que o governo Lula corrompeu esse pilar da família brasileira de bem. Domésticos que apanham por furtar um punhado de arroz, ou escondem restos de frango assado nos bolsos da calça, enquanto na sala os patrões se enlevam em sua superioridade moral e bebem bebidas importadas. Num segundo plano, a alta elite nigeriana, dos negócios com o Estado e com os militares, na base dos dez porcento, com filhos a estudar na Europa, e um discurso não de todo longe dos professores universitários, contudo extremamente pragmático - farinha (pouca ou muita, não importa), meu pirão primeiro.
Até essa primeira parte, estava gostando do livro, contexto que me é algo familiar, mentalidade que lembra a brasileira atual, algum drama familiar se desenhando. Na segunda parte, que passa em fins dos anos 1960, ficou evidente minha ignorância em história recente e, mais que isso, o livro me sugou de forma tal que precisei de dois dias para ler as quase quatrocentas páginas restantes.
O pano de fundo passa a ser então a guerra entre Nigéria e Biafra, entre 1967 e 1970. O segundo golpe de estado nigeriano, as perseguições e massacre dos ibos, a declaração de independência de Biafra e a guerra que se seguiu, com a população do novo país sofrendo sobremaneira - enquanto seus líderes (políticos, militares e empresariais) mantinham relativo padrão de vida, até se cansarem e decidirem fugir para a Europa - com passaportes nigerianos. Procurando mais informações sobre essa guerra, fala-se em um milhão de mortos, ataques militares indiscriminados a alvo civis e bloqueio de ajuda humanitária - alimentos e medicamentos.
O livro não carrega nas tintas escatológicas, como Alá e as crianças soldado, por exemplo, nem adentra muito em um subjetivismo, como Os cus de judas (para ficarmos na África), porém é vigoroso na descrição do dia a dia de fuga e humilhação que a guerra implicou - e olha que os personagens principais, se não foram para os altos escalões de Biafra, tem alguma reserva de dinheiro, contatos importante e um carro, que muito facilita a vida deles. Numa guerra - ainda mais na África, onde a população atingida não é exatamente humana, dessas que geram comoção e revolta nos meios de comunicação de massa do ocidente, e sim negra - , fica claro, não há heroísmo, não há glamour, há apenas decadência - dos corpos e dos "espíritos", da humanidade - e morte - por bomba, tiro, doença ou fome. É um contraponto sensível e enfático ao enaltecimento e banalização da guerra feita pela indústria cultural estadunidense - via filme, jogos e séries, principalmente -, que, ao meu ver, é um dos principais ingredientes para o renascimento fascista neste início do século XXI.
O ritmo narrativo fez com que meu desejo fosse de terminar logo o livro, para que terminasse logo aquela guerra - que parecia sem fim. Não entro em mais detalhes do livro para não prejudicar a leitura de alguém, apenas traço alguns paralelos com a atualidade.
Se na primeira parte vi muita coisa em comum com o Brasil atual, na segunda, guardada as proporções, também vi. Claro, uma opinião baseada na minha posição de observador distanciado: sou branco, classe média, moro na região central - a guerra brasileira acontece nas margens das cidades, da sociedade, nas periferias, nas favelas, no morros, contra negros, "pardos", periféricos, movimentos sociais, etc. Ernst Junger, na década de 1920, um dos primeiros a falar em "democratização" da guerra, graças aos avanços técnicos: para atirar de um rifle no alto de um jipe não é preciso ter mobilidades das pernas, por exemplo. Paul Virilio, na mesma linha dos avanços da técnica, só que no fim do século XX, começa a dissecar ordem mundial atual como uma situação de guerra permanente, sem objetivo específico que não a manutenção da própria guerra. A exemplo do cerco a Biafra, nestes Triste Trópicos, à ação de guerra aberta da Polícia Militar (atualmente no Rio de Janeiro, com exército mesmo) soma-se estrangulamentos econômicos e de subsistência, uma propaganda que diz que a vitória está próxima, ao mesmo tempo que os retrocessos são cada vez mais palpáveis. Se os anos Lula permitiram que o cerco humanitário contra os pobres fosse levantado, os homicídios seguem em crescimento contínuo, e o golpe volta a usar a tática de crime de guerra, de matar a população civil na base das carências básicas. Nada tão ostensivo, claro: o Brasil parece ser um país adepto à homeopatia, ao menos nas questões sociais. Quer dizer, ostensivo, sim, mas não declarado: 60 mil mortes por ano, 78,1 mortes por 100 mil habitantes, como em Fortaleza, é índice de conflito bélico, de guerra - ainda mais quando sabemos claramente o perfil de 90% desses mortos em "combates". Os aplausos de endinheirados à proposta de Bolsomico de metralhar indiscriminadamente a favela mostram o estado da arte dos discursos de ódio ocultos nos ternos bem cortados de Bonner ou no pretenso esquerdismo de Datena.
A diferença essencial entre o cenário brasileiro dos anos 2010 e o de Biafra de 1960 é que lá havia um inimigo e um território delimitado, com um ponto a se chegar - a união nigeriana, com ou sem a população ibo que ocupava os campos petrolíferos biafrenses. No Brasil, territórios se imiscuem - o morador da favela trabalha no shopping dos bacanas, acaba por transitar nas mesmas vias principais - e as funções cumpridas pelas populações "inimigas" não seriam assumidas por "cidadãos de bem e de posses" - lixeiros, seguranças, porteiros, prostitutas, enfermeiras, faxineiros, etc -, de onde o impedimento de simplesmente soltar bombas onde moram e nos trajetos que frequentam essas pessoas "perigosas" que garantem o funcionamento mais elementar da sociedade - quer dizer, cabeças de planilha não conseguem sequer enxergar isso, tamanha sua estultice. Resta o que chamei de doses homeopáticas de guerra, o que também atesta claramente o lado confortável de onde falo: não sofro na pele com toque de recolher não-explícito mas efetivo (111 tiros em 5 homens negros, como canta Jé Oliveira em Farinha com Açúcar) e restrições no direito (teórico) de ir e vir, não tenho parentes assassinados pela polícia em autos de resistência (pelo contrário, parentes que defendem abertamente a tortura e aplaudem toda sorte de violação de direitos humanos e depois ainda vem com papinho de boas energias). Assisto indignado porém sem riscos ao estrangulamento da dignidade humana dessas "populações perigosas", até o ponto onde não aguentam e se revoltam, dando o ensejo esperado para serem abatidas, após ganharem o rótulo de "vagabundos" ou "bandidos". Se meu desejo era terminar logo o livro - que aquela guerra acabasse logo - imagino o que não passa com quem vive sob essa guerra (psicológica e real) brasileira permanentemente, desde que se entende por gente - não creio haver como se habituar a essa situação sem fortes efeitos à saúde mental. Imagino, pela leitura do personagem Odenigbo, que para quem está no meio do fogo cruzado, o presente é um tempo eterno, em que a ameaça de ser atingido não permite pensar em futuro, com tudo o que essa espera desesperançosa implica.
No fundo, a elite brasileira que se julga tão cosmopolita não passa de um arremedo das elites africanas da segunda metade do século XX, um misto de elites nigerianas com a elite sul-africana - preconceito, ódio, servilismo e um exército armado para lutar contra a população do território que julgam sua propriedade.

06 de março de 2018

PS: não sejamos também ingênuos em achar que Europa seja paradigma de respeito a direitos humanos e o que for: a guerra em Biafra ou o golpe no Brasil não aconteceriam sem o know-how e o apoio logísticos dos países autoproclamados civilizados.