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domingo, 6 de janeiro de 2019

Euforia e ressaca com a ilusão neoliberal [Diálogos com a literatura]

As viúvas das quinta-feiras, da portenha Cláudia Piñeiro, retrata ascensão e queda do triunfo neoliberal na Argentina, em fins do século XX: o estreitamento mundo, reduzindo tudo a cifras e valores, acompanha o estreitamento existencial da vida entre muros, entre os pares, acerbando os narcisismos das pequenas diferenças (ao gosto dos subúrbios estadunidenses descrito por Lewis Mumford) e uma protocomunidade que não possui qualquer chance de se tornar comunitária de fato (tratei de, encerrado o livro, me embrenhar por Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros, do psicanalista Christian Dunker; ainda não terminei, mas ao que tudo indica, trata-se da mesma lógica do condomínio destes Tristes Trópicos). Se o Brasil se safou de queda igual à dos nuestros hermanos, foi por conta da resistência popular (desde a falecida Constituição de 1988) ter impedido o país de entrar com todo ardor no 171 neoliberal - algo que o atual presidente e seus super ministros prometem realizar.
O quotidiano do condomínio Alto de la Cascada descrito por Piñeiro é feito de normatizações abusivas, violências mudas, dores vivas e desejos insatisfeitos - tudo isso abafado, soterrado pela imagem de felicidade que todos são obrigados a ostentar. O desejo das classes mais abastadas de viver em segurança, dentro de um enclave murado, sob os olhares permanentes dos vigias: releitura pós-moderna neoliberal da velha comunidade de bairro, onde todos se conhecem e se ajudam - ao menos em aparências -, onde impera a moral e os bons costumes de um passado mítico.
Dos empregados das casas aos seus moradores, não parece haver espaço para alegria ou felicidade, oprimidos por uma série de exigências contraditórias, controladas de perto. Um baile de máscaras de mau gosto em um mundo que exige autenticidade mas condena todo desvio da norma.
É quase um sistema de castas - alguém não pode ser aceito plenamente se não for "puro sangue" - branco, cristão, endinheirado. Se for judeu e já estiver dentro, ignora-se o fato; se ainda não entrou, não entra - assim como coreanos, negros ou outros indesejados. O mesmo ocorre com os funcionários: uma vez funcionário, sempre funcionário, não importa que sua companhia tenha ajudado sua patroa a superar a depressão e só frequente os locais destinados aos moradores junto de sua - dona? Não pode, e as duas serão personae non-grata por isso. A harmonia de um condomínio não permite qualquer diferença significativa.
Ou então na criança adotada, destoante na cor da pele, e que ainda por cima já veio com nome - que os novos pais desgostam e por isso mudam, de Ramona para Romina - e para poder se apresentar, precisa escrever seu nome verdadeiro na areia, impedida de dizer quem de fato é.
Um paraíso artificial, os moradores do Alto de la Cascada vivem uma vida artificial: mantém seu padrão de gastos, seu estilo de vida, como se a crise que assola o país não tivesse vez dentro de seus muros, ocultando que perderam seus empregos e veem seus rendimentos minguarem - até o ponto em que serão obrigados a fugir do condomínio como proscritos por uma grande vergonha, uma grande humilhação, como se fossem leprosos dos tempos de antanho. Enquanto a fuga não se faz necessária, fazem caridade aos deserdados da sorte, que sobrevivem fora do muro graças a sua benevolência em empregá-los - caridade que não deixa de ser mais violência muda: a empregada que comemora a blusa da filha da patroa que será jogada fora e já vislumbra presentar sua filha, mas se vê frustrada em seu desejo de consumo de migalhas quando a patroa doa a blusa para um bazar beneficente - onde ela poderá comprar a preços razoáveis, se a blusa específica não tivesse sido dada pela organizadora do bazar à sua própria filha.
As viúvas das quintas-feiras mostra a euforia e ressaca com a ilusão neoliberal: a vida da mais pura platitude, sem preocupação que não o desfrute do que seriam seus prazeres miúdos hipertrofiados por anos de discurso ideológico em todos os meios possíveis. A vida boa numa casa de filme, num condomínio de publicidade. Uma vida de publicidade - estreita, sufocante, vazia, de aparências, na beira do precipício. E a próxima crise a jogar parte de seus moradores de volta ao mundo real.

06 de janeiro de 2019