sexta-feira, 5 de abril de 2002

Serão os índios humanos?

Minha intenção era hoje escrever sobre a crise na Venezuela. Estava, inclusive, enquanto esperava o ônibus na rodoviária de Ponta Grossa, lendo acerca do assunto. Foi aí que mudei meus planos. Tão somente se abre os jornais e é possível encontrar análises da esquerda, da direita, dos EUA, do Brasil, de Cuba e da própria Venezuela. O tema que abordarei é bem menos comentado e bem mais presente na nossa realidade de cidadãos brasileiros. Enquanto, como já disse, me debruçava sobre reportagens, análises, comentários e entrevistas sobre a Venezuela, uma criança índia que tinha, creio eu, três anos, me ofereceu uma cestinha, por dois reais. Eu havia, há pouco, repelido secamente outra criança, também índia, que me pedira esmola. Porém, como nesse caso não se tratava de esmola propriamente dita, recusei educadamente a pequena cesta que vendia. Na verdade disse "não, obrigado" com ar paternalista-comovido e um cordial sorriso. Eis minha "educação" (que, infelizmente, não é privilégio meu); uma frase polida, num tom de superioridade e um cínico sorriso: o único sorriso das classes abastadas, que pregam "dinheiro não é tudo", ao mesmo tempo que fazem tudo por dinheiro; o único sorriso de quem não passa e nunca passou necessidades e crê que basta sorrir para melhorar o dia dos outros, inclusive daqueles cujo estômago reclama e se retorce de fome.
Mas não é do cinismo das classes média e alta que quero falar. É sobre esse dejeto social que são, no Brasil e na América Latina, os índios. Voltando ao piazinho da cestinha. Já o tinha notado antes, quando brincava junto a outras três crianças (nenhuma delas aparentava mais de cinco anos). Observei-as por um certo tempo. Estavam (muito) mal vestidas, descalças, sujas, porém brincavam com uma ingênua e despreocupada alegria, rara ser vista nas amedrontadas crianças que brincam nos pátios murados e eletrificados dos prédios de classe média. Eu não sabia o que pensar da alegria daquelas quatro crianças. Seriam felizes? Ou seria aquele um raro momento em que riam, um intervalo na dor daquelas vidas que não serão vividas? E, caso fossem realmente felizes, teriam motivos para sê-lo? Até quando seriam? Uma índia adulta, que deles se acercou, respondeu-me a essa pergunta. Tão mal vestida quanto as crianças, porém sem os traços alegres delas. Será esse o futuro daquelas crianças? Está em voga a discussão de cotas e formas de acesso ao ensino superior para pobres e, mais especificamente, para negros. O respaldo para tais debates é a escravidão e o seu legado. E os índios, que tiveram seu "país" roubado e cuja lei os trata como crianças, incapazes, algo entre os animais e as pessoas, qual debate tem-se feito sobre seu acesso, não apenas à educação (primária), mas à cidadania? Que direito eles têm de fato sobre suas terras, seus costumes, suas crenças? Até quando os índios continuarão aceitando a idéia de que são inferiores aos brancos? E estes, até quando seguirão com o preconceito de que os índios são selvagens incapazes que precisam do auxílio dos brancos para tudo, inclusive para escrever crônicas falando da miséria indígena, sem, porém, a participação deles, sem sequer haver conversado com eles?
Outra vez me pergunto, qual o futuro daquelas crianças? Desço à plataforma. À minha direita, mais uma eloqüente resposta; crianças, adultos e idosos num canto, amontoados entre sacolas com roupas e com seu artesanato. Certa vez li num jornal sobre um índio que havia se formado em filosofia, numa faculdade particular de Palmas, Paraná. Que bom seria se esse fosse o futuro daquelas crianças que ali brincavam e dormiam. Entretanto, o jornal avisava, na mesma reportagem: tratava-se de um fato raro, excepcional, um índio com curso superior. O mais provável é que sigam sendo o dejeto social que sempre foram. Fui até aquele amontoado de pessoas, precisava de uma cesta de tamanho médio. Comprei por dois reais uma que, caso tivesse um selo "Made in China" e fosse vendida nas Casas Americanas, custaria quatro. A utilização que eu faria da cesta: lixeira para a escrivaninha. Isso poderia ser uma triste analogia da função do indígena na nossa sociedade mas, da forma como são tratados, a analogia se dá mais com o que vai dentro da cesta do que pelo seu uso.

Campinas, 05 de abril de 2002

domingo, 24 de março de 2002

Quem se adapta a quem

Estava eu, dia destes, a conversar com uma amiga, e ela me comentou de certa dificuldade que tinha em lidar com um objeto de uso quotidiano deste nosso admirável mundo novo. Já havia reprovado em um vestibular por causa disso, disse ela. Perguntei-lhe porque não trocava tal objeto por um outro modelo, mais moderno, de mais fácil leitura. A resposta que recebi foi-me um tanto desconsertante: "Eu que tenho que me adaptar ao mundo, e não ele a mim". Desconsertante tanto que somente hoje, quase um mês depois, consegui atinar um raciocínio a respeito.
É interessante notar como no mundo atual nós acabamos por nos adequar ao mundo, mesmo quando parece ocorrer o inverso. Por exemplo: lançaram o computador e o editor de texto, que permite que você, no seu texto, apague, recorte, cole, selecione, sublinhe. É a tecnologia servindo ao homem! E hoje, para escrever qualquer coisa, qualquer recado, você usa o super editor de textos de seu computador; que é totalmente dispensável caso você tenha à mão lápis e papel (com a vantagem que estes podem ser levados para qualquer lugar e não necessitam tomada nem para recarregar). Argumentar-se-á (ó!) que com o computador economiza-se tempo. Como contra-argumento, sugiro a crônica da psicanalista Anna Veronica Mautner "E o tempo corre", publicada na Folha de São Paulo do dia 24 de janeiro de 2002.
São inúmeros os exemplos de situações em que somos forçados a nos adaptar ao mundo que os homens constroem; e nos adequamos a ele com aquele sorriso, crente de que dominamos a situação.
Entretanto, a propaganda do Sistema de que devemos fazer o mundo se adaptar a nós não se refere ao mundo social, apenas às quinquilharias. Quando se trata de discutir as desigualdades, a pobreza, a ordem é aceitar as coisas como são (estão), é se adaptar ao mundo, sem reclamar, sem questionar. É o que a maioria faz. Aceita as injustiças como algo natural; impossível, inútil tentar mudar.
Acredito que nosso conformismo em nos adaptar ao mundo é devido, primeiro à impressão de que quem se adapta é o mundo, e segundo porque estamos habituados a isso: fomos desde pequenos condicionados a agir e pensar assim. Não seja impossível mudar tal hábito. O mais difícil é notá-lo. Depois é uma questão de disciplina para podermos ser outro no lidar com o mundo.

Campinas, 24 de março de 2002