domingo, 23 de março de 2008

Esquecer para não sofrer

Fato tão banal no mundo: o término de um relacionamento. Daí a pergunta tão banal quanto: o que fazer? Banal, mas longe de ser simples. Em uma sociedade em que estar triste por mais de um dia é doença; em que não se sabe lidar com perdas ou com fins – a não ser quando final seja o do “felizes para sempre”, ou seja, um não-final –; o dia seguinte ganha, geralmente, proporções um tanto exageradas.
É curioso que tais proporções não atingem somente quem tomou o pé na bunda, mas, não raro, também quem deu o pé na bunda. Como diz Tanizaki: “o divórcio é uma experiência triste”. Creio que isso deva em parte por causa da dificuldade geral em lidar com qualquer fim, em parte por conta de certa preocupação e consideração pelo outro, em parte por certo narcisismo, em parte por uma concepção de amor romântico absurda mas amplamente difundida e defendida, como mostra o psicanalista Jurandir Freire Costa, por exemplo, em seu livro Sem fraude nem favor.
Independente das causas, está ali uma situação em que a pessoa, triste pela sua situação, precisa tocar a vida em frente. Mas como fazê-lo, se o peso do outro e do relacionamento recém-desfeito ainda impede os movimentos? Alguns vão se fechar na sua dor, “curtir um pouco a fossa”, como se diz comumente, fazer o luto, como se fala no jargão psicanalítico, para depois, já mais leves desse peso, porem a vida novamente na marcha desejada (se é que é possível a vida seguir na marcha que desejamos). Outros tentarão negar o relacionamento e a pessoa, em uma atitude bastante ressentida, no melhor estilo “ex bom e é ex morto”, como diz uma comunidade do Orkut. Haverá ainda aqueles que simplesmente descartarão o que acabaram de viver, como se fosse uma pilha já sem carga, e partirão para outro relacionamento, quase que instantaneamente. Em comum a todos esses casos, a necessidade de livrar o presente do espectro do outro e do relacionamento terminado. Porém, há uma sensível diferença entre fazer o luto e simplesmente esquecer. O filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, de 2004, dirigido por Michel Gondry, escrito em parceria com Charlie Kaufman e Pierre Bismuth, entra na minha lista de bons filmes que conseguem tratar do tema de maneira interessante.
No filme um tratamento permite que as pessoas apaguem uma paixão frustrada da sua memória, evitando assim toda a dor e sofrimento que sua lembrança possa trazer. Após o tratamento as pessoas saem limpas, puras, virgens (não vou lembrar bem os termos usado no filme, mas a idéia é esta) para seguirem com suas vidas. Eis o sonho de muitas pessoas: sem o cinismo herdado de cada amor, como já alertava Cartola, estarmos aptos a nos apaixonarmos de novo com todas as nossas forças, como se fosse a primeira vez. Quantas vezes já não ouvi elegias para o primeiro amor, aquele tão puro, sincero, verdadeiro e intenso? E olha que nem sou psicanalista, nem nada.
E, se ainda não existe qualquer tratamento que nos permita reviver a cada relacionamento o primeiro amor, creio que muitos ainda investem energias nesse sentido, como a tentativa de esquecer, ao invés de se fazer o luto. Vejo dois problemas principais dessa tentativa: primeiro que acredito que em 99% dos casos ela não funciona, pois o passado que não foi fechado não se torna passado, mas um fantasma que ronda à espreita, aguardando o melhor momento para reaparecer e perturbar o presente (A liberdade é azul, do Kielowski, é outro filme que aborda bem esta questão); segundo porque na impossibilidade de se voltar à pureza e à virgindade do primeiro amor, a única coisa que se consegue manter de semelhante é a imaturidade. E assim a pessoa está apta a quebrar a cara como da outra vez, e reforçar sua crença de que o que rege o amor é o cinismo. Com tal atitude, evita-se parar para refletir como foi o relacionamento, quais as expectativas e as possibilidades, quais os erros e os acertos, pois isso poderia fazer com que a pessoa admitisse que o que ela esperava estava muito além do que alguém poderia oferecer; que o amor talvez não seja um perfeito mar de rosas, mas um caminho pedregoso, confuso, complicado, com suas belezas e seus incômodos, em que é preciso, muitas vezes, ceder a troco de nada e sem achar que se trate de um ato heróico ou sublime, mas simplesmente de uma necessidade imposta pelo momento, em que optamos por aceitar. Enfim, teria de assumir a responsabilidade por seus atos.
Voltando ao filme. Ainda bem que, a despeito de todo o avanço da indústria farmacêutica, ainda não chegamos ao estágio do tratamento proposto pela Clínica Laguna: significa que ainda nos resta a esperança de sermos donos da nossa história e, quem sabe, das nossas vidas: uma porta para o amadurecimento que ainda permanece aberta. Agora, se o amor resiste a tudo, quando encontramos nossa cara-metade, ou estamos predestinados a alguém, isso fica por conta do clichê romântico que não conseguimos abandonar tão fácil, muito menos no cinema.

Campinas, 23 de março de 2008

sexta-feira, 21 de março de 2008

O policial-bicho-papão

Esta semana eu estava em um trailer de lanche, aqui perto de casa, e presenciei uma cena banal, que deveria, creio eu, ter me deixado revoltado, mas o máximo que consegui foi sentir tristeza – medo, talvez.
Um grupo de universitários, atendendo ao pedido de três crianças na faixa dos seus oito, dez anos, pagou um lanche a cada um. Cheguei no momento em que era feito o pedido. Um clima desagradável no ar, o rosto contrafeito do dono da lanchonete diante daqueles três moleques eufóricos e vestidos fora dos padrões da classe média que freqüenta o local. De qualquer forma, anotou o pedido e foi fazer os lanches.
Enquanto fazia, sem se incomodar que as crianças estavam perto, comentava com a garota do grupo que ficou de pagar a conta que a partir daquele momento eles iriam aparecer sempre e incomodar os clientes para que pagassem lanche para eles. A garota não respondeu nada, mas ao voltar à mesa comentou, agora ela contrafeita, o que lhe dissera o dono. Havia poucas pessoas no local, mas o clima desconfortável era evidente. As crianças sentiram, tanto que ao invés de comerem lá, optaram por levar o lanche e comer em outro lugar. Eu pensava ainda bem que o meu era para viagem desde o início, pois comer olhando para o dono seria indigesto. Sinceramente, se vivemos em uma ordem capitalista, pagando a conta e não agindo fora dos “bons costumes”, me parece que quem vende tem obrigação de não fazer distinção – segundo autores neoliberais, essa seria uma das grandes vantagens do sistema capitalista: fazer o bem sem olhar a quem, somente à carteira. Já presenciei naquela mesma lanchonete crianças que incomodavam bem mais do que aquelas três, de ficar derrubando cadeiras e passando de mesa em mesa; mas como estavam bem vestidas, acompanhadas dos pais, nunca vi o dono criar um clima chato para ver se iam embora. Todos pagaram igual, então por que a distinção?
Mas a cena que realmente me entristeceu foi quando os garotos iam embora. Um último ainda saía do lugar, quando uma viatura da polícia encostou em frente e um policial saiu de lá e se dirigiu ao trailer. Nesse trajeto os dois – criança e policial – ficaram frente a frente, e a criança ficou desesperada e começou a chorar. O policial se pôs um pouco de lado e falou, delicadamente, que ela podia passar, o que ela fez correndo e sem titubear. Não me pareceu que a cena tenha agradado ao policial.
Mas ao dono do trailer... Ele, depois, comentava, se divertindo, a cena, como que dizendo que tinha razão ao querer aquele tipo de gente longe, e arrematava: “quem não deve não teme”. Olhei para ele; mulato, mas com o sucesso do trailer, pôde comprar um carro bom, dar condições para que os filhos entrassem na Unicamp, não deve morar na periferia, e sua fonte de
informação não deve ir muito além do Jornal Nacional. Fiquei com vontade de perguntar o que deviam aquelas crianças, mas preferi pegar meu lanche e sair logo, para não perder de vez o apetite com mais comentários de um típico “homem de bem”.
Se o dono do trailer, sua postura frente as crianças e o comentário da cena, me deixou revoltado, a cena me deixou triste. Fiquei a imaginar que representação aquela criança (assim como seus amigos) não faz da polícia, e do próprio Estado que ela representa. Pela idade, muito
provavelmente ainda não foi abordado ou sofreu uma geral da polícia, mas a imagem de homens-besta os policiais já possuem. Imagem que eu, branco, classe média, bem remediado, nunca tive – pelo menos para mim, quando criança.
Está na Constituição, e normalmente as pessoas que não se enquadram nos “homens de bem” queremos um Estado justo para todos, o qual começa por tratar a ricos e a pobres de maneira igual (mas de forma alguma a justiça se encerra aí!). Mas é evidente que isso não acontece. Pior: com a imagem que a polícia possui, não será tão breve que o Estado realizará esse preceito constitucional de igualdade. A tarefa do Estado, que hoje luta com o estado paralelo que é o crime organizado, não é somente de adentrar a periferia (falo em adentrar sem uso da truculência policial), oferecendo serviços e proteção, mas revolucionar uma imagem que vem desde tempos imemoriais, de descaso, na melhor das hipóteses, ou de violência, a qual talvez o desespero da criança frente o policial tenha sido uma boa síntese. Aqui minha tristeza, mesmo meu medo: ainda que olhando de longe, não vislumbro aberturas de mudança para um futuro próximo. Teremos que presenciar ainda por muito tempo cenas desse tipo e comentários daquele calão? Que futuro é esse que nos espera?
Os donos do país dizem atacar o Estado-Leviatã, essa besta-fera que destrói a liberdade; os desde sempre oprimidos se defendem do Estado-monstro (ou bicho-papão, no caso da criança), que só traz destruição, medo e (mais) violência; os “homens de bem” da classe média ficam amigos dos policiais, pregam “quem não deve não teme”, a tolerância zero (que deve começar de baixo, claro, ainda que admitam que o mal exemplo vem sempre de cima, dos políticos, todos ladrões), e sequer me dão nota fiscal.

Campinas, 21 de março de 2008