quinta-feira, 28 de maio de 2009

O inválido

No século XVII Descartes já tinha posto Deus como fiador das suas sensações do mundo. Para quem outrora fora o Todo-Poderoso criador e senhor de tudo e de todos – os seres humanos aqui incluídos – não deixou de ser um belo d'um rebaixamento. Um tempo depois, Nietzsche anunciou que Deus estava e morto, e não me surpreenderia se descobrissem que o bigodudo enviou uma missiva diretamente a Ele com Seu atestado de óbito. A maioria achou exagerado da parte do filósofo alemão e garante que Deus segue bem vivo. Se eximem, contudo, de soltar um boletim dizendo em que condições se encontra. Porém, os sinais de sua saúde e seu poder são desalentadores.

Leio no jornal que o jogador do Barcelona Eto'o comentou no fim do jogo em que seu time venceu o Manchester United que “Deus foi justo”. Não que essa frase na boca de um jogador de futebol seja lá muito original, mas só hoje é que me baixou a inspiração para escrever sobre.

“Deus foi justo”. Ou seja, Eto'o não só conhece os desígnios de Deus em matéria de distribuição de justiça (breve parênteses, nos últimos tempos a moda estava mais na alocação e não na distribuição, mas enfim), como sabe que Ele comete lá suas falhas, e que por isso deve-se ser sempre vigilante, avisando-O dos seus erros, equívocos, falhas, lapsos. Não sei se há muito o que fazer depois de derramado o leite divino, além de chorar, mas ao menos Deus vai ganhando experiência para numa próxima não incorrer no mesmo erro. Espera-se.

Aproveitando do estado de invalidez do Senhor, não faltam piadas as mais cruéis e os mais descarados exemplos de deboche. Pior é que isso parte ostensivamente dos que se dizem crentes, e não dos debochadores de plantão, como o escriba. Dia desses vi um aluno da Unicamp com uma camiseta em que dizia: “Jesus, refresca até pensamento”. O filho do pobre coitado não só é comparado a uma cerveja (talvez porque embriague e ajude a aumentar o número de acidentes fatais?) como subordinado a um slogan publicitário de segunda categoria.

E resta a dúvida: Deus, que não faz nada diante de toda essa avacalhação consigo e da sua família, do que estará sofrendo? Sem dúvida deve estar muito inválido, sofrendo de uma doença degenerativa, ou da locked-in syndrome, como o cara do livro que li há pouco, Jean-Dominique Bauby. Mexe o olho esquerdo, e olhe lá. Talvez muitos pastores e padres de plantão saibam disso, e por isso gastem sua saliva falando mais do Diabo do que de Deus: sabem quem agora é o dono do pedaço e não perdem tempo em puxar seu saco, pondo-o como novo todo-poderoso, ainda que o processo de mudança de dinastia não possa ser feito de maneira muito direta e brusca, para não assustar velhinhas cardíacas.

De qualquer forma, um fim melancólico para o Criador. Não morreu, mas a que foi reduzido? Até eu sinto por Ele. Talvez seja hora de começarmos uma discussão sobre a Eutanásia.


Campinas, 28 de maio de 2009

terça-feira, 26 de maio de 2009

Cidade e memória (II)

Minha última crônica acabou adentrando em um rumo inesperado e no fim acabei por não escrever o que de início gostaria.

Falei algo da cidadezinha que me pariu, hoje conhecida nacionalmente por conta jogadores de futebol internacionalmente famosos, políticos corruptos de projeção nacional (teve até um que foi ministro do Collor) e uma personagem idiota de um programa de tevê boçal. Uma coisa interessante que por enquanto ainda resta na cidade e que sempre comento são os nomes das ruas do centro. Salvo duas, todas têm nomes indígenas: Tupi, Tocantins, Guarani, Ibiporã, Aimoré, Goianazes, Itapuã, e por aí vai, numa curiosa subversão do princípio republicano de dar nomes de notáveis às ruas e do princípios higienista de limpar estes tristes trópicos de quaisquer resquícios de certos “animais nativos”.

Fiquei um tempo a imaginar como não se chamarão essas ruas no futuro. 2070, estou de passagem pela cidade e fico sabendo de um evento interessante. Paro para pedir informações a um jovem, que me atende, muito solícito:

- O senhor está na av. Jornalista Roberto Marinho. Passando a praça Presidente Palocci, vire à direita, na rua Imperador Alexandre Frota. Três quadras e vire novamente à direita, na rua Carla Peres. Quando você passar pelo Centro Cultural Hebe Camargo, o senhor vira à esquerda, é a av. Ronaldo Brahmeiro. Duas quadras e você vai ver a escola Xuxa Meneghel, na rua Justiceiro Gilmar Mendes. Na outra esquina, com a travessa Senador Sarney, é o Campus Sandy, da Universidade Gugu Liberato, onde acontecerá o evento que o senhor quer prestigiar, em homenagem aos 50 anos da morte do ex-ministro da educação e da cultura, Di Gênio.

No meio do trajeto, quem sabe eu não me depare com uma estátua à dançarina de funk desconhecida, morta em alguma operação de assepsia social realizada pelos sucessores do Caveirão.


São Paulo, 26 de maio de 2009

Publicado em www.institutohypnos.org.br