quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Uma vitória à esquerda [Eleições 2014]

 Finda a eleição presidencial e a contagem dos votos (sem direiro a recontagem), pipocam as interpretações dos dados - nada mais natural. Infelizmente, natural também é o preconceito que norteia algumas dessas análises - não que seja aceitável esse tipo de mentalidade, muito menos o espaço que ela ganha na Grande Imprensa corporativa, mas antes esse grave problema escancarado a seguir acreditando no mito do brasileiro cordial. Também eu cá arrisco meus palpites do porquê da vitória da Dilma por tão estreita margem, também eles calcados em preconceitos - menos movidos a ódio, quero acreditar.
 A Grande Imprensa nunca foi imparcial e sempre jogou sujo para derrubar candidatos à esquerda, não seria diferente agora. A tentativa de Veja de interferir na votação com acusações sem provas contra o ex e a atual presidente da república foi só um último ato de uma campanha anti-PT de longa data, que busca imprimir ao partido a pecha de O partido corrupto, deixando na entrelinha subentendido que nos governos tucanos não foi e não é assim: casos como o mensalão do PSDB mineiro ou a corrupção nas licitações de trens e metrô nos governos Covas, Serra e Alckmin são sistematicamente abafados ou ganham, quando muito, uma pequena nota na parte interna de algum caderno, enquanto mensalão do PT e desvios na Petrobrás são mais divulgados que os números da tele-sena. Outra tática a la Goebbels dos nossos Berlusconis foi fazer de um protesto que dizia respeito às esferas municipal e estadual virar manifestações contra a presidente, numa partidarização, ou melhor, anti-partidarização das chamadas jornadas de junho de 2013 (porque não havia partido sendo defendido positivamente, mas os de esquerda, PT, PSTU, PSOL, eram fortemente atacados, inclusive com violência física).
Um aspecto que também creio ter influenciado no resultado apertado é que Dilma desta vez venceu com um discurso à esquerda, bem diferente do de 2010, quando, pega de surpresa pelo Serra nas questões dos costumes, acabou disputando com ele o eleitorado mais reacionário. Talvez principalmente pela mobilização da comunidade GLBTTS depois do pastor Feliciano presidir a comissão de direitos humanos da Câmara dos Deputados, houve uma leve mudança de mentalidade, o que pode ter feito com que Dilma se sentisse mais à vontade para defender a criminalização da homofobia e a não redução da maioridade penal, por exemplo. É pouco, mas para um país conservador como o Brasil (não falei que ia eu despejar meus preconceitos aqui?), contestar esses posicionamentos mais retrógrados,  que vêm ganhando eco com o crescimento evangélico, não deixa de ser um avanço. Aécio, que poderia ter posto a esquerda nos costumes (como era bandeira do PSDB, ao menos em tese, até pouco tempo atrás) como predominante no debate, demonstrou que a guinada reacionária tucana extrapola São Paulo. Nas relacões internacionais e na economia também tivemos um confronto mais aberto entre posições de esquerda e direita - o neonacional-desenvolvimentismo e o neoliberalismo -, com Aécio assumindo uma menor dubiedade que Serra (mas não de todo clara).
 E, claro, ponto de maior destaque nestas eleições foi o baixo nível do debate, em especial entre os apoiadores das campanha, principalmente os de Aécio Neves. Movidos por preconceito e ódio, os simpatizantes tucanos - auto-proclamados ilustrados, contra a turba ignorante do norte-nordeste - acreditavam em qualquer boato contra o PT, acreditavam até mesmo na Veja, e mostravam desconhecer as propostas do próprio candidato, que tinha como uma de suas propostas tornar política de Estado o bolsa-família, ops, "bolsa-vagabundagem", um dos motivos de maior revolta de certa classe média e elite tupiniquim. Perderam, e desolados com a vitória a quem culpavam de dividir o país, reforçam a impressão de que nunca se incomodaram com a segregação entre casa-grande e senzala.

São Paulo, 29 de outubro de 2014

domingo, 26 de outubro de 2014

Medo do porão

 Aproveitando o ensejo de Ciro dos Anjos, Rubem Braga escreveu "Receita da Casa", crônica com a qual tive o primeiro contato com ele, por quem me apaixonei à primeira vista (é certo que isso não é tão raro em literatura, como o provam Saramago, Mia Couto, Kawabata, Leminski, Kundera e tantos outros). A primeira providência para uma casa, segundo o escritor de Cachoeiro do Itapemirim, é que tenha um porão. Ele dá as devidas especificidades, as funções na formação da criança, e ressalta que "convém que as crianças sintam um certo medo do porão; e embora pensem que é medo do escuro, ou de aranhas caranguejeiras, será o grande medo do Tempo, esse bicho que tudo come, esse monstro que irá tragando em suas faces negras os sapatos da crianças, sua roupinha, sua atiradeira, seu canivete, as bolas de vidro, e afinal a própria criança". 
 A casa dos meus pais, em Pato Branco, não segue exatamente as sugestões do cronista, mas graças ao engenheiro responsável pela obra possui um porão - um porão moderno, com luzes e organizado, mas um porão. Nele acumulam cadernos antigos, dos pais e dos filhos que lá habitam (pouco importa que apenas alguns dias por ano, ainda é minha casa), alguns brinquedos que resistem, esperando pela visita com filhos pequenos que os tirarão dos armários, coleções ou partes de - como a minha de latinhas ou a de pedras -, ferramentas quase nunca utilizadas, outras - as de jardinagem - empregadas com freqüência, graxa em uma lata de achocolatado do início da década de 1980, enfeites de natal (minha mãe cogitava jogar fora, porém não teve coragem, e eu mesmo me interessei em revê-los), bolas há muito murchas, madeiras que sobraram da construção da casa (anterior à lata de achocolatado), marcas na parede de um conflito entre a antiga cachorra e a antiga gata da casa, caixas vazias esperando para serem preenchidas elas também por entulhos ou por memórias.
 Sempre tive medo não exatamente do porão, mas de toda a parte de baixo da casa (ela segue o declive do terreno). Medo de algum ladrão escondido no banheiro ou no escuro do grande quintal, cercado de outros quintais grandes e escuros, e sem ser percebido pela cachorra; de alguém como o anarquista búlgaro de passagem pela cidade da crônica de Braga (não exatamente um anarquista, que esses nunca foram temidos em casa, apesar que os búlgaros também não), de uma aranha enorme ou um rato a me atacar, me obrigando a ser levado às pressas ao hospital, tomar injeção para não morrer de alguma doença terrível; de algum fantasma, apesar de eu não acreditar em fantasmas. 
 Havia motivos muitos, mas pode ser que fosse somente medo do escuro, uma vez que eu só tinha esses medos à noite, em especial quando me punha a subir pela escada, como se o perigo estivesse me observando o tempo todo e na hora em que eu abaixaria a guarda, já quase seguro no andar de cima - onde ladrões, aranhas, ratos, anarquistas búlgaros e fantasmas não entrariam -, me atacassem. Pior, confesso: ainda que não subisse mais correndo, e soubesse que aquele meu medo era besteira, até ano passado sentia um frio me correr a espinha no momento em que ia fechar a porta para o quintal e me preparar para subir. 
 Contudo ano passado esse medo passou, e não teve o que fizesse retornar: nem o rato a saltar sobre minha mãe, a aranha a me fazer um agrado, o braço a tentar roubar a mochila do meu irmão, o barulho de algo batendo na porta do porão na hora em que o abri: nada, nem um pingo de medo. Não sei dizer exatamente quando isso aconteceu, mas desconfio quando foi - mais ou menos quando passei a querer acreditar em fantasmas. Algo da criança, que ainda flanava por brinquedos velhos, coleções interrompidas e lições esquecidas, se perdeu, foi tragada para fora do porão. E então o homem de trinta anos, ainda que preocupado com as rugas e a calvice, começou a se irmanar com o Tempo.

São Paulo, 26 de outubro de 2014.

 ps: para Patrícia M., Dejanir D. e Marilda G.