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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Cid Gomes e a coragem de enfrentamento

As instituições estão funcionando normalmente. Ninguém na minha bolha fala um disparate desses. Já sobre a atitude do senador Cid Gomes, de enfrentar militares encapuzados fazendo motim, minha bolha, via de regra, tratou de insanidade - os mesmos que anteontem reclamavam da “passividade bovina do brasileiro”. Esse pessoal precisa decidir: ou reclamamos que brasileiro não reage (o que é uma mentira, melhor seria dizer: não reage do jeito que queriam que reagisse) ou é maluco de reagir; ou estamos num período onde as instituições funcionam normalmente e não cabe medidas extremas, ou estamos num período extremo, no qual é preciso reações à altura.
Não sei se precisaria dizer minha posição: vivemos tempos temerosos, em que caminhamos para um nazi-fascismo revisitado com tecnologias ainda mais potentes que as do movimento original, e, logo, tempos extremos exigem medidas extremas, “amalucadas”; o que não pode é seguirmos agindo normalmente, em brigas de egos na esquerda e discutindo alianças eleitorais, como se os únicos fascistas do Brasil fossem os Bolsonaros e seu entorno - e ignorando que nesse entorno há militares de alta patente com uma série de subordinados.
Convém ressaltar o contexto mais específico na qual se insere a atitude de Cid Gomes: uma greve dos policiais militares, ilegal por serem militares - até aí, a greve dos petroleiros, ainda que seja um direito constitucional, foi tida por ilegal pela nossa justiça (sic). A questão não deveria ser essa (conforme parte da esquerda tem posto), antes que não se trata apenas de uma greve, mas algo entre motim e a milícia, com militares que não mantém um mínimo do efetivo, e se apresentam à sociedade encapuzados, armados e fazendo ameaças, inclusive a colegas que pretendiam trabalhar, ordenando comerciantes a fechar as portas - ou, em termos populares, impondo toque de recolher.
O ato de Cid Gomes foi extremo, e por seu desenrolar pode ser um divisor de águas no Brasil, antes que o fascismo se instale de vez e nos leve nos seus braços para a autodestruição que essa ideologia acaba por levar, pela sua própria dinâmica de necessidade de inimigos a combater e eliminar (petistas, comunistas, feministas, gays, mulheres, professores, políticos, militares que não coadunam com o que o mito diz, assim que forem eliminados será preciso criar novos inimigos). Claro, esse movimento foge da alçada do senador. Vai depender do governador do Estado, de outras lideranças políticas e sociais, da mídia, da mobilização popular. Vai depender de não aceitar a escolha de dois ou três bodes expiatórios entre os amotinados, nem com o simples afastamento do presidente, e atacar o fascismo onde ele aparece - no judiciário, no ministério público, na corporação militar, por exemplo, mas também em governadores que falam em mirar na cabecinha, que dizem que quem o policial não gostar e tachar de bandido vai direto pro cemitério.
É também um tapa na cara dessa esquerda que nos seus escritórios com ar condicionado (não raro em universidades) reclama da passividade do povo: primeiro porque nunca saem para a luta aberta, como fez Cid; segundo, porque se um senador da república, em um ato público, é alvejado dessa forma por policiais militares - um tiro de arma letal no lado esquerdo do peito -, imagina o que essa PM não faz com pretos periféricos? É fácil de certa esquerda cobrar ativismo dessa população sempre sob a mira do fuzil, como se pessoas pretas devessem morrer em nome de um futuro melhor (o ressentido Mino Carta, a despeito de seus méritos jornalísticos, é, para mim, o melhor exemplo dessa esquerda esnobe, prepotente e descolada das pessoas mais sofridas).
Por fim, o ato de Cid reabilita os Gomes, e pode projetá-lo, junto com seu irmão, no cenário nacional (nisso eu me contradigo, fazendo uma análise política-eleitoral, como se vivêssemos tempos normais). Cid pode ser alçado a grande nome da luta antifascista no Brasil, alguém que “não foge à luta” (e essa hora me lembro de quando ele perdeu o cargo de ministro da educação, no governo Dilma, seu discurso no Congresso, onde ao invés de se baixar a cabeça, reafirmou o que havia dito antes), e vai além de conversas de bastidores - como o PT tem feito atualmente, mesmo com Lula solto e Haddad desimpedido desde sempre. O gesto o apresenta com a firmeza que certa porção da população (e do eleitorado) tem se mostrado carente, que Bolsonaro soube explorar tão bem - e os mauricinhos leite com pera Doria Jr e Amôedo tentam imitar -, sem descambar para desrespeito aos direitos humanos. Ao mesmo tempo, Ciro pode ganhar um álibi para seu retiro parisiense no segundo turno de 2018: com o fascismo instalado nas instituições, e a tibieza do PT num enfrentamento mais vigoroso, a derrota de Bolsonaro serviria apenas para enraizar o fascismo no país (para mim, a ficha caiu no “dia do fogo”, ano passado, de que Haddad, se ganhasse, seria um presidente fraco e a todo momento testado e a qualquer reação atacado de antidemocrático).
Num momento em que parte da elite se mostra desgostosa com o fascismo bolsonarista, a coragem de Cid Gomes e o atentado por parte da PM (que não pode ser comparado à muy suspeita facada em Bolsonaro-necessitado-de-quimioterapia, durante as eleições), podem ser um ponto crítico na vida nacional. Que consigamos nos organizar para reverter o quadro atual!

19 de fevereiro de 2020

PS: Quinta pela manhã noto que o bolsonarismo sentiu o golpe, ao direcionar seus robôs da internet para o #CidGomesPreso

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

A esquerda não sabe mais o que é trabalho de base

2019 passou. O governo Bolsonaro, como era de se esperar, foi um desastre, um ataque diuturno ao trabalhador, aos mais desfavorecidos, à educação, aos serviços públicos, e o que se viu foram algumas poucas manifestações - muito aquém do que as medidas antipovo exigiam. Parte da dita elite progressista, em seus apartamentos em bairros centrais, em suas salas com ar condicionado, voltou a acusar o povo brasileiro de passivo - Mino Carta, na sua prepotência europeia, me parece o tipo ideal dessa esquerda que quer que o povo se revolte enquanto ela se ocupa de afazeres mais nobres.
Anos atrás também eu fui adepto dessa tese da passividade, até ter um pouco mais de noção de mundo, e notar que a recusa também é uma estratégia de revolta - assim como a alegria -, ainda mais num país onde a nação é feita a partir do território, não do povo, o que torna a carne negra ainda mais barata no mercado - e não adianta os "morenos" e os "mulatos" reproduzirem o pantone racial das elites, pois na hora da geral, a polícia militar sabe identificar quem é branco, quem é suspeito; na hora do emprego, o recrutador sabe ver quem é "mais bem apresentável" para a vaga.
Porém, se não tivemos manifestações nas ruas na medida que necessitávamos, não quer dizer necessariamente que nada foi feito. 2019 passou e aquele movimento iniciado com as eleições de 2018, em especial no segundo turno, com professores universitários organizando mutirões para discutir voto nas periferias pobres, com o pessoal classe média indo com um banquinho e uma placa conversar nas ruas sobre política, tudo isso se mostrou apenas uma ação fugaz em um momento de desespero, não gerou qualquer enraizamento.
É aqui que o ponto fica preocupante: vindo de anos de desarticulação de trabalho de base, é até lógico que manifestações em 2019 não tenham tido a força necessária: insistir nessa desarticulação, esperando pela "grande noite", apenas torna nosso desejo de mudanças profundas na sociedade um vago sonho idealista, desancorado da realidade - por mais que se baseie em pesquisas e dados e números sobre a situação do "brasileiro médio".
Em compensação, a direita, em especial seu braço mais reacionário - esse que tem dado suporte ao neofascismo de Bolsonaro, Doria Jr, Huck, etc -, esse assumiu a vanguarda no trabalho de base de modo inconteste.
Algumas das coisas que a classe média descobriu ano passado é que política não se encerra no voto, e que fazer política cansa: é preciso deixar de fazer o que se estava fazendo e ir para a rua, trocar o cinema ou a conversa com os amigos no bar por diálogos muitas vezes tensos com gente estranha - ou mesmo com conhecidos. Difícil fazer isso todo dia. Sem articulação, difícil fazer isso qualquer dia.
E essa conversa que se poderia ter tido com alguém até então cercado pelo monólogo repetido pelo pastor e pelo Bonner, poderia amanhã se multiplicar em mais uma pessoa, e mais outra e mais outra. Não como a certeza de algo, mas como uma dúvida desse mundo acabado e solucionado dado pela religião, pelo mercado, pela mídia. A ausência dessas conversas é a negação desse efeito multiplicador da dúvida.
A direita, em especial via igrejas evangélicas - com a retaguarda da sempre onipresente mídia -, faz esse trabalho de base com perfeição. Organiza não mutirões esporádicos em momentos de desespero (seu), mas mutirões permanentes para conversar com aqueles em momentos de desespero - na porta do presídio, no sopão na rua, no universitário perdido e acuado por veteranos agressivos; a conversa com dois hoje será reproduzida para mais seis amanhã, e assim por diante. Não é preciso que cada um vá para a rua todo dia, é preciso que a mensagem chegue todo dia na rua e circule - e quanto mais natural e organicamente circular, melhor.
Tudo isso me veio à mente por conta de um cartum do cartunista Batata Sem Umbigo. Diz o cartum: "Ela trabalha muito: madruga na porta das fábricas para conversar com os trabalhadores". Ora, ir todo dia para a porta de fábrica, por mera convicção, é algo muito difícil, ainda mais quando se tem a vida para levar, as contas para pagar, a casa para cuidar. Fiquei pensando: às cinco, seis da manhã, no caminho para as empresas, há vários vendedores ambulantes de café da manhã. É uma cena de São Paulo que sempre me atraiu - esse café na rua, que parece improvisado e ao mesmo tempo parece ter algum laço a mais que a mera circulação de dinheiro. Em volta da mesa dobrável com uma toalha simples se juntam, por algum momento, algumas pessoas. Certamente, além de falar de comida ou do tempo, devem conversar sobre algum assunto outro - um tema importante posto pela mídia ou um problema pessoal que assola. O vendedor de café está ali, ouvindo, respondendo, propondo soluções - outros clientes devem também palpitar eventualmente. Qual o repertório desse vendedor, dessa vendedora? A partir de que discurso ela apresenta suas propostas de soluções ao trabalhador anônimo que todo dia compra seu bolo? Será de algum pensador de esquerda? De algum conhecido mais "esclarecido" da classe média? Quando consigo captar algo dessas conversas, o que mais escuto é a voz do pastor - do pastor mais reacionário -, a delimitar o problema, apontar as causas e sinalizar as soluções.
Nós nos perdemos em nossas bolhas de internet, em nossas bolhas metálicas que circulam pela cidade, em nossos fones de ouvidos para ninguém nos incomodar no metrô, em nossos bairros relativamente assépticos, em nossos programas entre iguais (cuja discordância maior será Ciro Lula ou Boulos e não se prender preto em poste foi legítimo ou não); deixamos de conversar com as pessoas na rua, e passamos a ignorar quem nos serve o café. Enquanto isso, o trabalho de base segue sendo feito.

21 de janeiro de 2020

Batata Sem Umbigo no Instagram: https://www.instagram.com/batatasemumbigo/

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Vai pagar imposto!

Estou descendo a rua Itapeva, na Bela Vista, quando vejo um homem com um mala esbravejando contra um motorista ausente (imagino ter passado em uma poça e molhado o homem). Xinga alto e volta a xingar. Sobe alguns passos e vai até a esquina - onde, presumo, o motorista virou - e xinga mais. A cena é longa, mas o repertório é curto: os impropérios repetidos e repetitivos versam basicamente sobre o desejo de coito, a mãe do motorista, o ânus dela e o do próprio motorista. O homem volta a descer a rua, sempre xingando. Para poucos passos adiante e retorna novamente à esquina, quando a raiva acumulada e mal extravasada parece ter levado a um esforço intelectual incomum e ele pode, finalmente, esbravejar contra o espectro do motorista um vitupério definitivo: "vai pagar imposto, seu cuzão filho da puta!", e pôde seguir, então, seu trajeto sem necessidade de repetir os xingamentos em voz alta.
"Vai pagar imposto", foi esse o xingamento. Não foi desejar que batesse o carro, que tivesse o veículo furtado, a carteira apreendida por pontos, não foi um desejo de que o motorista pagasse uma multa, uma infração, foi o de que ele pagasse imposto, condição básica para a existência e funcionamento do Estado e possibilidade de vida em sociedade - isso enquanto não houver uma revolução que desabroche o novo que até agora somos incapazes de imaginar. Sei que a cena era excessiva, mas o pensamento não é isolado - e isso mostra o quanto as forças progressistas (incluídas as à direita) não souberam reagir aos ataques neoliberais e sequer acordaram para o quão defasados estamos na disputa ideológica.
Afinal, foi uma geração, 25 anos, em que os impostos foram apresentados como os grandes vilões da sociedade e das pessoas, que são roubadas por uma casta de parasitas - os políticos -, sem chance de reação. Era notícia diária, várias vezes ao dia, repetida de hora em hora: o quanto impostos são nefastos, o quanto o Brasil é caro por causa dos impostos, o quanto imposto tira a liberdade das pessoas usarem seu próprio dinheiro conforme desejarem - nem o pai castrador era tão castrador quanto o estado que cobra imposto de renda. Pior: diante dessa avalanche toda, as esquerdas foram incapazes de articular um contradiscurso minimamente combativo, quando não aderiram acriticamente às implicações desse mantra, como é o caso do PT, com Lula, Dilma, Haddad, Pimentel e outros, ou de Ciro Gomes (que, na minha visão, é progressista, mas não de esquerda). Sim, houve propostas sobre a questão tributária, projetos muito bem elaborados a partir de análises críticas robustas - uma recém apresentada na Câmara dos Deputados. Porém, se questões e abordagens técnicas são relevantes, elas são incapazes de mobilizar a opinião pública numa sociedade de massas - ainda mais num país de ensino (formal e não formal) bastante precário. Ouso dizer que a esquerda, deslumbrada consigo própria em suas densas elaborações teóricas sobre o tema foi incompetente em ouvir o discurso neoliberal em toda sua profundidade e incapaz de escutar a população e como ela recebe e processa esse discurso.
As pessoas simplesmente não sabem para que servem os impostos. Não adianta, como fez Gregório Duvivier em um programa muito elogiado na minha bolha classe média demi-crítica, explicar que os ricos pagam menos impostos, porque isso apenas reitera que é preciso, então, baixar os impostos de todos. A apresentação do estado pela mídia praticamente se confunde com o exercício do poder político, sendo que os políticos - quase sinônimos de corrupção - são pagos com o dinheiro dos impostos. Fechando o silogismo simplório num círculo completo, os impostos parasitam a sociedade para pagar uma classe de parasitas da sociedade. As pessoas não conseguem perceber que professores, médicos, policiais são pagos com dinheiro dos impostos; não faz sentido a elas que imposto ajude na redistribuição de renda; a classe média é tapada suficiente para achar que porque paga plano de saúde "sustenta" o SUS sem dele se utilizar, sem perceber os muitos benefícios indiretos, dentre eles o de que seu plano de saúde só tem o valor módico que tem hoje porque seus clientes podem recorrer ao SUS se a mensalidade for extorsiva por serviços de qualidade precária.
A ideia de que o imposto é um roubo é parte de uma longa cadeia ideológica que inclui o estado incompetente, o setor privado eficiente, o político corrupto. Foi por onde se adubou o terreno para antipolíticos da pior espécie vingarem: Doria Jr, Amoedo, Flávio Rocha, Huck tem enorme potencial porque seu discurso foi naturalizado e soa o óbvio, por mais falacioso que seja.
Reitero o que falei há tempos: ou a esquerda complexifica seu discurso, ou não será capaz de vencer essa direita, nem nas urnas, nem fora delas. Mais: precisa desde já fazer frente ao discurso hegemônico, se não quiser ficar refém do capital e de seus porta vozes midiáticos, se quiser reverter o xingamento de "vai pagar imposto". Qualquer vislumbre reformista precisa, necessariamente, assumir a bandeira de defesa de impostos e problematizar a partir do que temos e do que precisamos para nos tornarmos um país mais justo e menos desigual. Vamos pagar imposto!

09 de outubro de 2019

sábado, 31 de agosto de 2019

Talvez a vitória de Bolsonaro em 2018 tenha sido a melhor opção

Apesar de todas as críticas à psicologia do ego de Erich Fromm, admiro sua apresentação da ideia de liberdade, em O coração do homem: foi um marco na forma como passei a refletir sobre problemas que surgem. Grosso modo, diz ele que o último passo na tomada de um ato pouco tem de livre: há uma série de engajamentos prévios que tornam a desistência do ato, o passo derradeiro, de um custo tão elevado a ponto de ser difícil ao sujeito mudar de rota, uma vez que seria negar tudo o que foi feito até então e que levou até àquele ponto - contudo, o mais comum é nos atermos a esse último instante e acreditar que ali se tomou toda a decisão, que ali ainda havia plena liberdade de fazer ou não.
Fromm me veio à mente com o tal "dia do fogo", organizado e posto em prática por criminosos disfarçados de fazendeiros e ruralistas, apoiadores de Bolsonaro na Amazônia, com as reações grotescas do mandatário da nação, e com os alertas de "eu avisei" dos que mantiveram um mínimo de bom senso ano passado - o que exclui pretensos isentões do segundo turno.
O que ficou evidente para mim neste mês de agosto foi que, diante do que tínhamos em setembro de 2018, a vitória de Bolsonaro pode ter sido a melhor alternativa - claro, isso vai depender de como as esquerdas e as forças progressistas estão se organizando e vão se organizar. O ponto principal é que o clima de ódio provocado pelo consórcio mídia-PSDB-judiciário-ministério público e o estado de anomia no qual o país foi atirado pelo farsesco impeachment de Dilma foram instrumentalizados pelo ex-capitão e seus sicários, de modo que ganharam demasiado poder. Poder para além das urnas - e é o poder do estado que tem nas mãos que pode fazer com que desidratem.
Uma vitória de Haddad no segundo turno, além da hostilidade do congresso, teria que lidar ainda com oposição cerrada da mídia e constantes testes de autoridade por vários setores da sociedade, de organizadores do dia do fogo e milicianos a juízes e procuradores. Isso potencializado por crise econômica interna, boicote do empresariado, lawfare e crise comercial internacional. Dificilmente um candidato progressista - estou a incluir Ciro aqui, mesmo sendo de centro-direita - conseguiria encaminhar uma solução a todas essas crises: mais provável que o governo fosse uma tentativa de diminuir o caos estimulado por atores sociais importantes, com a mídia, o STF, Bolsonaro, sua família e suas milícias aumentando cada vez mais o tom do discurso e dos atos.
O "dia do fogo", arrisco dizer, aconteceria sim ou sim, fosse Bolsonaro ou Haddad o presidente. Se com o carioca aconteceu com beneplácito do líder, com Haddad as chances eram de que acontecesse para afrontar o presidente - eventuais prisões que impedissem o que foi feito na Amazônia seriam automaticamente vendidos pela mídia como "venezuelização" e arroubos autoritários, custariam muito de um sofrido apoio interno que ele pudesse ter.
A #VazaJato não teria a mesma repercussão e seria mais facilmente apresentada como "tentativa dos políticos corruptos do PT de impedir os arautos dos cidadãos de bens combaterem a corrupção dos políticos (do PT)". Qualquer sinalização de desmantelar a quadrilha que atua desde a República de Curitiba iria na mesma linha - e às favas o direito, a constituição, a humanidade. Seguiria o lawfare contra qualquer pessoa que pensasse diferente de Moro, Dallagnol e seus serviçais.
Esse clima de caos e desgoverno - ou de difícil governo - permitiria ao fascismo tupiniquim crescer sem oposição - talvez alguma amarra nos governos estaduais, uma vez que poderiam ser cobrados, mas governo estadual dificilmente tem o mesmo poder de ser teto de vidro que o federal. Bolsonaro pai poderia cometer seus festival de disparates sem nenhuma cobrança pela liturgia do cargo, já que não teria cargo oficial nenhum, nem nenhum confronto com a realidade, já que não possuiria poder efetivo nenhum. Seu poder seria paralelo, apoiado e estimulado por parte da mídia e do judiciário (sabemos agora, pela Lava Jato como um todo), no intuito de enfraquecer o PT e ainda crente de que conseguiriam domá-lo depois - uma espécie de Guaidó com mais respaldo. Isso permitiria um maior enraizamento das bravatas e do ideário fascista - com a complacência dos donos do poder -, e tenderia a dar uma enorme força e resiliência a esse espectro político em 2022.
Claro, o fato de Bolsonaro queimar parte do capital político da extrema-direita não anula todo o espectro. A vitória precoce do atual presidente incorreu no mesmo problema da extrema-direita europeia, onde tem sido um retumbante fracasso quando assume o poder, ainda mais sem o devido respaldo popular. É prepotência e incompetência. O Brexit talvez seja o melhor exemplo: é o putsch da cervejaria de Munique que deu certo e os bêubos tiveram que assumir sem ter a mínima ideia do que fazer ou de como o estado se organiza e funciona, daí tentarem recrudescer o golpe. O grande ponto: não tiveram tempo de se enraizar para além dos predispostos a abraçar o "movimento".
Não estou desculpando quem votou no capitão, ano passado, aceitando que era a melhor opção - não era. Estou aqui propondo que façamos nossas análises a partir de um pouco mais recuado, entender que o passo no abismo não foi dado na urna, em 2018, mas vem de antes, de uma série de fatores que foram negligenciados e/ou minimizados, que levaram ao ponto onde estamos. Seguir com essa de "eu avisei" é insistir no erro e achar que eleição é 45 dias de campanha mais a urna, e deixar a avenida aberta para o fascismo repaginado de um Doria Jr ou Luciano Huck tomar o imaginário popular e criar raízes na sociedade - além do que são mais vivos e tem total simpatia da mídia, poderiam atuar (como Doria Jr deveras atua) como tratores nas instituições democráticas sem serem confrontados ou incomodados.
Diálogo, mobilização e politização - se realmente queremos reverter o quadro político atual. Ou então vamos ficar esperando Godot, nos queixando aos astros e esterilmente gritando nas redes sociais "eu  avisei".

31 de agosto de 2019

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O Sesc e a oportunidade de estimular uma cultura democrática neste tempo que flerta com o fascismo

Por conta do artigo “Precisamos falar (criticamente) sobre o Sesc” [bit.ly/cG171010], que escrevi em 2017 e foi republicado na página do Luis Nassif, no Jornal GGN, recebi o convite para compôr uma mesa sobre “qual o papel do Sesc na promoção de cultura”, no Fórum Políticas Culturais, promovido pelo Centro Acadêmico Lupe Cotrim (CALC), da Escola de Comunicação e Artes da USP, dia 21 de agosto. Na mesa estaria também João Paulo Guadanucci, gerente de estudos e desenvolvimento do Sesc.
Surpreso pelo convite, uma vez que não sou estudioso ou especialista na área, pensara, de início, em fazer uma fala colada no que escrevera de 2017, salientando que muito daquilo não valia MAIS para 2019, visto que nele eu criticava o Sesc São Paulo dentro do que chamei de “sistema de financiamento, produção e circulação cultural do Brasil”, e não há mais nada parecido no Brasil de Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Malafaia e tantos outros inimigos de toda arte que não seja propaganda do poder. Seria uma fala para pensarmos quando a onda fascista passasse, se ainda sobrasse algo. Foi o questionamento de um amigo sobre o porquê de eu não abordar a questão da segregação e a da cultura democrática que me fez repensar minha fala: ao invés de falar do passado e em um futuro do pretérito, era mais conveniente falar de algo que ainda cabe no presente e permite devires: se chuvas são fenômenos naturais que fogem ao nosso controle, as partículas das queimadas da Amazônia que baixaram sobre São Paulo esta semana é antes fruto da ação humana e por isso passível de ser alterada.
Ao cabo, diferentemente do que imaginei, João Paulo não foi à mesa para tecer exclusivamente loas ao Sesc – assim como eu não fui para falar mal, ainda que estivesse lá para reforçar alguns aspectos negativos que geralmente passam batidos. O texto a seguir é baseado em minha fala.
Como o próprio João Paulo havia dito, o termo “cultura” é bastante amplo e aberto a diversas interpretações. Foi usando dessa abertura que desisti de falar especificamente do que gira em torno de bens culturais para falar de “cultura democrática”, visto que democracia não é só um sistema de votação, mas é um sistema valorativo de ações, uma cultura, que implica em certa forma de ver e estar no mundo, de se relacionar com o outro e com seu entorno, de se engajar no simbólico e no real.
Quando estávamos sob governos democráticos, o Sesc florescia graças à disfunção do sistema de produção cultural brasileiro. Florescia e o retroalimentava. Nesse sistema estavam Sesc, leis de fomento, editais, Rouanet, equipamentos públicos, tentativas autônomas de espaços culturais, grandes grupos, etc. O Sesc, com muito dinheiro e bom trabalho, conseguiu o que eu chamei de "padrão Sesc de qualidade": bons espetáculos a preços módicos, que forma um público cativo. "Se tá no Sesc é porque é bom", foi uma expressão que ouvi muitas vezes. Tentativas independentes, como pequenos teatros, ou dependiam de alguma forma de estímulo público, ou corriam o sério risco de serem experiências efêmeras, pois não tinham como competir com uma instituição que não depende de bilheteria [João Paulo comentou do artigo de André Barcinsky que trata especificamente desse ponto: www.j.mp/30Bc1QD].
Desde 2016, contudo, a cultura tem sido atacada impiedosamente pelo avanço fascista e fundamentalista religioso (cujas portas foram escancaradas pelo PSDB de José Serra). Quando falo de avanço fascista, me refiro não apenas a Bolsonaro, mas também a Zema, Witzel, Doria Júnior e outros - não esquecemos o horror que foi Doria-Sturm na prefeitura de São Paulo, um verdadeiro Bolsonaro com complacência da mídia; assim como não esqueçamos o que foi o Sérgio Sá Leitão, atual secretário de Dória, no governo Temer. Esses ataques dos fascistas à cultura tem buscado ou a destruição pura e simples de políticas públicas para a cultura, ou o aparelhamento de equipamentos públicos, editais, fomentos (aquilo que acusavam os petistas ou esquerdistas de fazer, sem que conseguissem comprovar, até porque nunca houve de fato). A própria iniciativa privada passou a ficar temerosa de patrocinar espetáculos, com medo do patrulhamento ideológico da extrema direita associada a religiosos, como o caso do Queermuseu, por exemplo. Dessa catástrofe uma das poucas coisas que tem sobrevivido sem maiores traumas é o Sesc. Que agora também está sob ataque do ultraliberalismo de Guedes. Se isso se efetivar, destruído todo o sistema de cultura, o que sobraria? Produção cultural evangélica (pois há dinheiro de sobra e sem qualquer controle) e musicais enlatados para entretenimento rápido e que não incomodam ninguém.
O Sesc, em alguma medida, tem seu pingo de responsabilidade na situação em que nos encontramos - como diversos outros atores sociais, inclusive os movimentos sociais, inclusivo aquele do qual eu faço parte. Um dos pontos que os usuários dos equipamentos culturais do Sesc mais gostam de se enganar é que ele é democrático e popular. Não é. Ingresso caro é elitista, mas ingresso barato não é necessariamente popular: há uma série de fatores que influencia que certos grupos sociais se sintam bem vindos ou não num lugar - por exemplo, seguranças engravatados olhando de alto a baixo quem entra. Já presenciei usuário do Sesc ser barrado na entrada, foi na Vila Mariana, porque não se encaixava no seu tipo padrão, e precisou apresentar sua carteira de comerciário para poder entrar. Isso é um muro. Um muro invisível para que não é barrado, um muro não-dito, mas um muro maldito para quem é "público-alvo". Não é exclusividade do Sesc, é toda uma cultura antidemocrática, antipopular que vigora no país – o Sesc talvez seja até um dos locais mais amenos nisso, perto de baladas, shopping centers ou mesmo parques públicos.
O Sesc 24 de maio agora diminuiu um pouco, mas quando a unidade foi inaugurada tinha muitos seguranças no térreo, num claro desconvite para que a população que ocupa aquela região não entrasse - o próprio Paulo Mendes da Rocha, numa entrevista sobre o prédio, deixou escapar que o público a ser atraído para ali não eram comerciários da região, mas detentores de capital cultural: universitários, classe média alta, brancos ou "embranquecidos". Nas últimas vezes que passei em frente, inclusive, notei que cercaram a marquise onde as pessoas se sentavam para passar o tempo – melhor grades a povo. Não sei se é temporário, tomara que sim.
A programação também acaba, muitas vezes, por reforçar esse caráter "elitista a preços populares" - ao menos até início de 2018. A unidade Pinheiros, por exemplo. Está numa região onde confluem engravatados da Faria Lima, universitários descolados, "meio intelectual, meio de esquerda", como dizia Antônio Prata (que escrevia para a revista do Sesc), e pessoas de classes mais baixas - tanto que o Largo da Batata, antes da gentrificação dos últimos anos, era um dos principais pontos do forró de São Paulo. Pergunto: qual é a proporção de shows de forró para shows de bandinhas de rock alternativo no Sesc Pinheiros? Ah, mas no Sesc Itaquera, no Sesc Interlagos... Sim, nas unidades da periferia, há uma arte condizente com o que o preconceito diz que a periferia gosta. Um reforço à lógica segregacionista do espaço - que esteve bem presente no governo Haddad-Bonduki, por sinal. Resultado: eu vejo pouca diversidade social. Se você for na Oswald de Andrade (sob ameaça de Doria Jr), na Casa do Povo, no CCSP (que sem explicação barrou a realização da CryptoRave quando Doria Jr. era prefeito), você vai ver um público bem diferente, mais heterogêneo, daquele que se senta nas poltronas do Sesc.
Aqui eu entro em outro ponto da defasagem democrática do Sesc: não apenas no público que atrai para suas unidades centrais, mas a forma como gere suas unidades. Nunca li em uma revista de programação, nunca recebi um e-mail, nunca soube de um conselho composto por moradores e trabalhadores da região, ou de quem for, que não seja programador do Sesc, ser chamado para decidir os rumos das unidades. Não digo as atrações específicas, mas as diretrizes do semestre ou do ano – que seja algo consultivo. Conforme João Paulo, há um conselho geral, com participação (minoritária) dos trabalhadores. De qualquer modo, as unidades funcionam funcionam no esquema empresarial, sem chamar a uma participação efetiva da sociedade – por mais que os técnicos de programação encontrem brechas para trabalhar democraticamente com agentes culturais.
Eu vejo esse déficit de participação na forma como o Sesc tem sido defendido na minha bolha de usuários do Sesc: avatares na foto de perfil do Facebook. Comparo com o que ocorreu na Vila Itororó, e seu Canteiro Aberto: uma participação efetiva da comunidade na decisão dos usos e rumos do espaço cultural. Tanto que quando o acordo com o Instituto Pedra foi encerrado, em meados de 2018, pela gestão Doria Júnior, muitos temeram pelo fim da experiência. Porém, o resultado foi um aprofundamento da proposta por parte da população, eles dobraram a aposta e houve uma maior gama de atividades e maior difusão. É uma experiência fantástica.
Se abrir a experimentos, experimentações, se abrir à construção democrática, pode pôr em risco o "selo Sesc de qualidade", que ele conseguiu imprimir a tudo o que aparece no seu guia de programação. É uma perda, sem dúvida. Contudo, diante do contexto atual, dos ataques que a cultura tem sofrido, talvez caiba ao Sesc repensar urgentemente sua inserção e sua forma de relação com a sociedade, não apenas para ser numa futura sociedade efetivamente democrática - de cultura democrática - um farol a guiar outras iniciativas, na área de cultura e fora dela, e sim para desde já contribuir para romper as trevas que nos tomam - junto com restos das queimadas amazônicas.

23 de agosto de 2019

PS: claro, resta saber o que resta do empresariado brasileiro ao talho de Simonsen e outros, ou se o que nos sobra é gente ao estilo "Véio sonegador da Havan".

segunda-feira, 29 de julho de 2019

As esquerdas precisam mudar (e complexificar) seu discurso (2)


Há pouco tempo falei da necessidade das esquerdas mudarem algo em seu discurso e incluírem, junto com a denúncia, a esperança [bit.ly/cG190611]. Construir esse discurso de esperança, contudo, não é algo simples e guarda várias armadilhas. Primeiro, deve ser construído desde aspirações vindas da sociedade como também a partir de análises mais acuradas das possibilidades objetivas de mudanças significativas em favor de uma qualidade de vida melhor (isto, em tese, seria papel da academia; mas esta, via de regra, dado seu distanciamento da sociedade que a financia, está longe de cumprir tal tarefa de modo destacado). Um dos grandes pontos é não criar (ou fomentar) esperanças infundadas, não transformar o desejo de mudança em um balaio onde cada um põe o que quer para se frustrar a seguir - como foi parte da estratégia de Bolsonaro para ganhar eleitores não fascistas em 2018 e, não fossem os escândalos e sua incompetência, seria um dos principais fatores que minaria o apoio a ele. A esperança deve ser trabalhada tanto numa chave utópica, ideal - no sentido kantiano do termo, de perfectibilidade nunca alcançável, mas nem por isso deixada de ser desejada e buscada -, quanto numa chave concreta, de pequenos ganhos viáveis e visíveis - algo próximo do que o PT foi em seu início, e que abandonou quando ocupou o Palácio do Planalto.
Isso implica em complexificar o discurso - e, por consequência, o pensamento e a compreensão da realidade. Sei o quanto é difícil esse processo: ser didático sem ser raso; como tornar um conceito, uma ideia, em uma formulação simples e não simplória, que não tenha apenas uma compreensão imediata, mas implique em uma mediação a mais no pensamento - mesmo daqueles que não estão familiarizados a filigranas intelectuais ou grandes densidades de dados e teorias. Aldo Fornazieri dá o exemplo do fracasso que tem sido a campanha Lula Livre - uma pauta, diga-se de passagem, que não é de grande complexidade, mas que foi reduzida a uma palavra de ordem que nem mobiliza quem a acha legítima, mas está parado, sequer pro-voca quem estava mudo [http://bit.ly/2Ge8Nu4].
Vejo dois fatores principais para a defesa dessa linha ‘complexificadora’. O primeiro de ordem prática: as visões simplistas souberam ser instrumentalizadas de maneira muito mais efetiva pela direita, em especial pela extrema-direita. O porquê disso dá várias teses, creio que uma primeira chave explicativa está na nossa subjetivação - que nos impõe necessidade de certezas - e na educação - formal e não formal, ainda mais num país dominado por uma mídia monocórdia e igrejas conservadoras. O segundo, de ordem programática, vamos dizer assim: se a esquerda realmente pensa em construir uma sociedade democrática, é preciso fortalecer o pensamento autônomo, de modo a conseguir não fanáticos a suas teses, mas pessoas capazes de ponderar, dialogar e agir de modo independente - e depois convencê-las de que suas propostas são as mais razoáveis.
Concomitante a isso, é preciso incluir não apenas minorias, mas recalcitrantes, aceitar os diferentes, desde que com alguma coisa em comum - parafraseando antigo slogan de cigarro e princípio implícito da extrema-direita -, com aquele tenso ponto de um limite a essa inclusão, deixando de fora, por exemplo, os intolerantes. Unir diferentes não significa criar uma identidade unitária, muito menos forçar uma identificação a partir do ódio - a diferença entre inimigo e adversário precisa ser sublinhada, assim como o limite para o convite ao diálogo e a sua possibilidade. Nisso, imprescindível começar complexificando a política, ou seja, tirar dela a aura de algo possível pureza: pureza em política, apenas as dos regimes totalitários mais sanguinários: toda democracia implica em ceder e aprovar pautas dos adversários em dado momento (a esquerda, sejamos sinceros, até o fenômeno neofascista recente (Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Amoêdo-Novo), era implacável e inigualável na sua cobrança de pureza, sendo que parte ainda continua); combater a corrupção, porém sem a fantasia de extirpá-la - não enquanto vivemos sob o sistema atual.
Complexificar muitas vezes é mostrar a proporção de certos números apresentados pela mídia - dar a dimensão de que aqueles milhares de reais que é muito para uma pessoa comum, é nada para um banco ou para o orçamento da União -; é não discutir conclusões, mas  atacar as premissas e deixar a cada um que conclua por sua conta, ainda que dentro de parâmetros razoáveis - e isto inclui uma utopia racional, de que a lógica volte a ser valorizada, minimamente que seja. Complexificar - e aqui a esquerda temos muita dificuldade - é saber conciliar o logos racional com o discurso que apela à emoção. Sim, a política é movida pelas emoções, mesmo quando tentamos racionalizá-las, seguem sendo emoções, paixões e ódios e pré-conceitos: é por isso que os grandes oradores desde sempre levantaram suspeitas por parte de democratas e ditadores (e nossa época vive uma instrumentalização tecnológica do discurso que tem prescindido (em parte) dessa figura, a disputa prometida e não realizada em 2018, entre a oratória e o “microtarget whatsappiano”).
Complexificar já é, em si, um ato bem revolucionário, pois vai contra as diretrizes do espetáculo (para usar o conceito do autor que estudei, Guy Debord); precisamos saber escolher alguns temas dentre os que despontam e aprofundá-los, esmiuçá-los, e não pular de “trending topic” em “trending topic”, posto pela mídia e pelos algoritmos das redes sociais, reforçando a lógica da superficialidade que favorece a crença sem lastro – princípio em que vingam as fake news e tudo que as envolve. Em tempos de meme e lacração, conseguir trabalhar um pouco mais uma ideia é um privilégio – e é também uma necessidade. Não se trata de abandonar as ferramentas que tem se consagrado na internet - coisa que a esquerda ainda engatinha no uso -, mas de utilizá-lo como um primeiro combate para chamar para um outro terreno, no qual seja possível ampliar a compreensão das linhas de força que atuam em determinada questão - dos memes levar a youtubers progressistas e, quem sabe, a textos analíticos mais profundos.
Denunciar injustiças, iniquidades; confrontar discursos lacunares, contraditórios (sem cobrar coerência, mas a assunção das limitações do humano, do político); propor políticas concretas para melhoras a curto e médio prazo, convidar para debates sobre alternativas, sinalizar possibilidades utópicas a serem construídas conjuntamente, tudo isso sem reduzir a fórmulas prontas ou a palavras de ordem. A tarefa é árdua, porém os demais caminhos, por ora, não apontam a construção de um mundo melhor.


28 de julho de 2019

quinta-feira, 11 de julho de 2019

A esquerda precisa mudar o discurso

A esquerda precisa repensar sua estratégia de comunicação, convencimento e mobilização social - constatação óbvia, contudo, que precisa ser repetida. Precisamos deixar para segundo plano a análise de como chegamos no ponto onde estamos e traçar estratégias para sair da rota na qual seguimos, e isso inclui a forma de comunicar e angariar simpatizantes e militantes.
Apelar para cenários catastróficos inexoráveis é eficiente se se está em posição de vantagem. Não é o caso das forças progressistas no momento. E ao pintar o pior dos cenários, e de uma forma tão definitiva, em um contexto onde a derrota é muito provável, a tendência é desanimar cada vez mais a militância, afastar pessoas que poderiam se sensibilizar em um segundo momento e se unir à nossa luta. A estratégia catastrofista lembra muito as propagandas de prevenção da Aids, no início da década de 1990, em que pintavam a doença como um atestado de morte e acabavam por minar o psicológico de quem havia sido contaminado, piorando sua qualidade de vida e dificultando a convivência com a doença.
Tomo o exemplo da reforma da previdência aprovada neste infeliz dia 10, uma reforma de interesse exclusivo dos plutocratas nacionais e internacionais, uma volta a mais no  parafuso de hiper exploração do trabalhador, iniciado com a reforma trabalhista. Os 379 votos favoráveis demonstram a força de "persuasão" do governo e dos patrocinadores dos deputados (como a emblemática Tábata Amaral e sua “convicção individual” que nunca se opõe à de Huck e Lemann). Pintar o inferno na terra, sem chance de remissão, é afastar a população de mobilizações futuras, caso não alcance o intento (como foi o caso): mobilizar para quê, se está acabado? Acaba se tornando um discurso indutor do conformismo mais resignado - e não adianta depois, como Mino Carta, dizer que o “povo brasileiro” é que é passivo.
Passamos os anos do PT no governo federal dormindo em berço esplêndido, não será de uma hora para outra que conseguiremos novamente mobilizar setores amplos das camadas populares. Nada mais lógico que as forças reacionárias avancem vorazmente diante da resistência tíbia e diminuta: quanto mais ganharem agora, mesmo que percam parte no futuro, maiores as chances de, ainda assim, saírem com saldo positivo - para eles, em detrimento da população mais necessitada. 
Manter a resistência agora é imprescindível, se servir para barrar esse tipo de medida, ótimo, se não, que seja para marcar posição e começar a reconstruir um trabalho de base - que não cabe mais ser nos termos que foi no século XX. Uma coisa, porém, é preciso retomar fortemente da década de 1960 (ainda acho que o cerne de nossas questões e parte das nossas respostas estão neste período) e seu legado: o devir histórico. O futuro, ainda que possamos fazer previsões e ainda que as possibilidades de mudanças sejam maiores ou menores a depender do presente, não está fechado, de forma alguma - a não ser para quem concluiu sua passagem neste mundo (e não há como não lamentar a perda do Paulo Henrique Amorim neste momento da nossa história). Enquanto os seres humanos estão vivos, a história também pulsa, também está viva, e o futuro, em aberto. É possível reverter no médio prazo essa maré que nos afoga; as reformas aí enfiadas goelas abaixo via um simulacro de democracia não são leis divinas e podem ser alteradas - é possível que os próprios donos do poder queiram revê-las em parte, num futuro próximo, dado o grau de catástrofe que prenunciam, e o que a esquerda fará então? começará a discutir o que fazer? De qualquer modo, se não vier de cima, é possível que pressões de baixo obriguem a sociedade a refazer seu pacto social, como foi feito em 1988 - não estava vivo na época, mas não creio que uma Carta como a de 1988 parecesse muito factível dez anos antes.
Um primeiro passo que as esquerdas precisam, junto com essa afirmativa do devir, é construir uma narrativa de planos, propostas, e não apenas de denúncia. Acolher e ouvir as pessoas, e a partir de então construir coletivamente possibilidades, devires, novas utopias - é curioso que a própria ação pastoral social da igreja católica também tem tido dificuldade em fazer esse movimento (falo por experiência própria, pois participo de pastoral social, apesar de ateu). Talvez o que falte à esquerda seja se reconciliar com a religião - as boas religiões, os bons religiosos -, redescobrir essa “dimensão religiosa”, de arauto de alguma boa nova - precisaria, para isso, descer do seu pedestal hiper racionalizado (estéril). Num contexto de desalento e desespero, pouca gente vai se dispor a somar num movimento, num partido, numa organização que não sinalize algum caminho positivo, em que não se vislumbre algum tipo de melhora, que não traga uma mensagem esperança. A esquerda precisa trazer luz, porque as trevas já nos cobrem.

11 de junho de 2019

PS: penso depois: talvez essa seja uma das chaves do discurso do Lula​, que persiste nas suas entrevistas na masmorra curitibana: conciliar denúncia e esperança assertiva.

sábado, 6 de julho de 2019

João deixa a porta aberta

Sobre a partida de João Gilberto, dois comentários me chamaram a atenção, não exatamente sobre o mestre da bossa nova, mas sobre o que são estes tempos - e quem somos nós. 
Bob Fernandes comenta que sua partida neste 2019 inglório é um epitáfio para nosso país, nestes tempos em que vaia de bêbado - rico - vale; vaia transformada em panelas, patos, camisas da seleção brasileira, rezas de pastores endinheirados e editoriais sisudos de William Bonner ou entrevistas descontraídas com o Ratinho. A vaia que cala a arte, a política, o amor, o futuro.
Um dos meus bons amigo de São Paulo, restaurador de móveis, conta no seu Instagram [https://www.instagram.com/luizhansted/] quando, no início dos anos 1980, com seus seis, sete anos, ouviu pela primeira vez João Gilberto, e se encantou com "Falsa Baiana". Estava na casa da tia, que saíra para comprar cigarros e deixara o disco tocando: “Eu não mexia na vitrola de casa, imagine na da casa dos outros. Mas fui até ela e, com muito cuidado e medo de riscar o disco, voltei o braço para o início da faixa. Ouvi muitas vezes até minha tia voltar. É curioso e belo como as artes agem na nossa vida”. Eu vou além: é revelador como a arte é algo que exige e insufla coragem. 
Fazer, contemplar, desfrutar a arte é algo impossível de ser feito sem sair do lugar. Toda arte digna de ser chamada assim tem algo que incomoda, que perturba, que desloca - uma obra que deixa tudo como está é publicidade, usa elementos artísticos, não é arte. E o fascista, o reacionário, é um medroso, um pusilânime, alguém em pânico que se recusa a sair do lugar, a rever quaisquer das suas posições e atitudes. Para esconder essa covardia toda é que grita, se junta em grupos e milícias, ameaça, é por isso que é tão visceralmente contra a arte: porque a arte é para os corajosos. 
O artista, diante da grosseria, da barbárie, não se intimida, não pede desculpas, ele afronta, ele retruca: “vaia de bêbado não vale” - seco e direto, sem poesia, se o momento exige. A partida de João Gilberto talvez não seja um epitáfio, seja um aviso: não esperemos salvadores, sejamos artistas!

06 de julho de 2019

quarta-feira, 19 de junho de 2019

#VazaJato: por onde vem, para onde pode ir?

O escândalo da #VazaJato, envolvendo judiciário, MP, mídia - enfim, setores das elites nacional e internacional -, traz aspectos inéditos para a correlação de forças nestes tempos ditos "da informação". Informar há muito não é apenas informar, é parte de estratégia de guerra, de desestabilização, tomada e perpetuação no poder. Houve tempo em que essa estratégia podia ser manipulada com o ocultamento da informação - como quando no golpe civil-militar de 1964 -, uma vez que a mídia corporativa e o estado detinham quase que integralmente a capacidade de comunicação de massa, fazendo com que as forças populares ficassem em desvantagem na contestação da verdade oficial e na construção de uma contranarrativa, por conta de seu tempo de difusão da reação mais lento. Não raro isso era trabalho para uma geração. Em tempos de internet, a força desse oligopólio diminui, sem necessariamente acabar - e sem necessariamente isso implicar em democratização. Ainda assim, a internet não tem mais permitido um controle do que é divulgado e do que é escondido, forçando outras estratégias de manipulação diante da exibição (ainda que apenas em potência) de tudo a todos. A extrema direita soube se aproveitar dos novos meios de comunicação e capturar suas possibilidades - com a complacência dos liberais esclarecidos do Vale do Silício, que não perdem dinheiro em nome de convicções políticas -, ao se aproveitar da avalanche de informações vindas de todos os lados para jogar com fake news e propôr a leitura da realidade em termos estritamente de convicções, sem provas - como dito pela própria Lava Jato, afim ao espírito do tempo, e não do espírito das leis -, sem se fiar em dados concretos da realidade - a tal da "pós verdade".
Glenn Greenwald e o The Intercept Brasil se mostram permeados pelo espírito de nosso tempo - a guerra híbrida, destacada por Piero Leiner, da UFSCar -, e sabem que jornalismo hoje não é apenas o mostrar, mas também como fazê-lo - ou então acaba como o Panama Papers, que foram divulgados, mas morreu rápido (até porque a grande mídia detinha o controle da narrativa e uma coisa é investigar, outra é se comprometer). O tempo da reportagem do The Intercept também foi extremamente oportuno: a reportagem despontou quando há uma onda virando contra o governo - não precisou ser ele a inaugurá-la. Tal onda é bem sintetizada nas três manifestações de rua no país ocorridas no mês de maio, duas contra e uma a favor do governo.
Se recordarmos as manifestações contra a Dilma, a direita sempre fazia a primeira manifestação - insuflada e inflamada por Globo e Moro/Lava Jato -, e a esquerda organizava uma em reação. Era uma disputa pela demonstração de força, em que a direita era evidentemente mais forte, e a esquerda tentava mostrar que não estava morta. Chama primeiro quem está mais forte: uma demonstração em resposta ao adversário (inimigo, no caso fascista) é mais fácil de mobilizar. Assim como se em 2015, 2016 a esquerda chamasse primeiro a manifestação, certamente seria muito menor e convidaria a uma reação que evidenciaria a força da direita, o mesmo ocorre agora, com sinais trocados: a esquerda chama manifestação, e diante do seu sucesso, os neofascistas chamam a sua, para mostrar que tem força, ainda que não tanto quanto (dia 26 não conseguiu sequer superar a do dia 30 de maio, e foi muito inferior à do dia 15). Além do descontentamento das ruas, uma vez que a promessa de paraíso imediato na Terra não se fez, o governo acumula dificuldade em lidar com o legislativo e desagrada aliados de primeira ordem. A revelação do The Intercept é uma pequena bomba nesse desarranjo. Vai forçar uma nova forma de tentar reordenar as forças de direita, porém não se sabe como isso se dará e quanto tempo resistirá.
Greenwald avisou que por enquanto foi apenas o começo, e o chumbo grosso ainda está por vir. Ele tem o controle da narrativa, conhecimento do espírito do tempo, paciência, e a direita batendo cabeça como quem entra numa roda de mosh/poga acidentalmente, temendo (ou talvez sabendo) o que o jornalista tem em mãos.
Os trechos soltos no domingo (09/06) são graves e serviriam para reforçar certas convicções, uma vez que apenas ressaltariam o que era evidente. Ao imitar o método de Moro e da Lava Jato, a VazaJato põe os críticos da República fascista de Curitiba em vantagem: não apenas temos convicção como temos provas. Porém, ao invés de negarem a veracidade dos diálogos, forçando um lance que a comprovasse, Moro disse que não havia nada de errado nos diálogos, enquanto Dallagnol esperneou sobre a pretensa ilegalidade do jornalista (do jornalismo?). O que seria um primeiro passo se tornou logo vários. Impressionante o grau de desespero e despreparo lavajatista (lembra a República de Salò de Mussolini, em 1943-45), porque não se tratou de um lance totalmente inesperado, visto que há duas semanas foi plantada a notícia de que o celular de Moro teria sido hackeado. Dois problemas dessa defesa preventiva: ao que tudo indica, as conversas vieram do Telegram do Dallagnol; segundo que Moro não conseguiu manter o discurso: ou hackearam o celular há duas semanas ou as conversas são antigas e por isso ele não as tem mais. Lógica porém é algo que não vale na pós-verdade.
As tentativas de reação estão na base de tentativa e erro. Negar a relevância e mudar o foco para o roubo das conversas e sua divulgação "ilegal" foi a tática primeira. Criar fake news para serem espalhadas como sendo parte dos diálogos entre Moro e Dallagnol, para depois deslegitimar tudo como invenção foi a segunda tentativa - em vão, porque a origem do material é bem específico e, portanto, na dúvida, basta ir até o Intercept ver o que é falso, o que não é. Forçou novamente a história do hacker, tentando estimular um sentimento de medo e de vulnerabilidade, como a sugerir que qualquer um pode ser alvo de hacker, e melhor então fechar com Moro. A estratégia parecia não estar dando certo, a ponto de Moro ter dito que parte foi inventada para prejudicá-lo, depois tentar nova estratégia, de bancar o que disse e relevar, dizendo que foi um “deslize”, até voltar, novamente para a história do "hacker criminoso" e do "não lembro, não gosto, logo foi inventado". A única estratégia mantida, e que tem tido algum respaldo, ao menos nas hostes neofascistas, é a de que isso tudo é uma reação dos corruptos por ele combater a corrupção.
E foi essa que o The Intercept começou a minar na quarta (12/06), com o "teaser" de Demori a Reinaldo Azevedo, se aproveitando do espírito do tempo, afim a teorias conspiratórias. O trecho do #InFuxWeTrust não insinua nada, mas deixa as portas escancaradas para as teorias conspiratórias soltas para virem com força. Não por acaso, na mesma noite eu já recebia textos “juntando os pontos” com o “com supremo com tudo”, de Jucá; e a morte de Teori Zavascki. Estratégia usada à exaustão pela Rede Globo durante o impeachment, e que pode fazer com que muitos apoiadores convictos da Lava Jato tenham um “insight próprio genial” de que algo de errado havia em Curitiba, e nisso baixar a guarda para o que mais virá.
Outro ponto interessante é como acusados e acuados estão tentando se organizar. Mesmo antes de ser anunciada, a Globo sabia que seria alvo próximo, e logo cerrou fileiras em defesa de Moro. Contudo, o governo Bolsonaro não cansou de dizer que “a Globo mente” e isso, além de dificultar a concatenação de ideias dos seus seguidores - incapazes de ir além do binário “bem x mal” -, também força a Globo a defender um governo que tem tirado suas verbas e favorecido a rival, se conseguir salvar Moro, atacará outros flancos do governo - caso salve Moro e caso Bolsonaro não aceite um acordo. Se Moro naufragar, Globo estará em grande risco e deve defender qualquer solução drástica que garanta seu poder - a ver como andam seus contatos externos. Parte da grande mídia, um pouco menos unha e carne com Moro e Lava Jato, talvez sem "batom na cueca" (para usar a mesma expressão dos doutores do Ministério Público), já tratou de pedir a cabeça do ministro - que se sair agora tem uma remota chance de se tornar o mártir da luta contra a corrupção para a porção fascista mais extremista, ainda que a cada revelação do The Intercept ele se complique mais e não há sinais que sua queda estancará as revelações.
O exército bolsonarista apoia Moro - na verdade repudia o PT e Lula, e na lógica binária destes tempos qualquer vitória de Lula é encarada como derrota total de Moro -, e está disposto a bancar o ministro e o capitão, como indica o general Heleno. Porém, a demissão do general Santos Cruz pode sinalizar algo mais que uma desavença com os filhos do presidente e Olavo de Carvalho. Mourão está ao lado, só observando e fazendo pose de democrata, provavelmente se articulando dentro das forças armadas. O exército teme sair queimado do governo Bolsonaro - já tinha esse risco sem escândalo, com o MoroGate fica ainda mais na berlinda - e perder a reputação que ganhou ficando quieto por trinta anos - ademais, a depender do tamanho dos equívocos que o exército se meter, pode fazer voltar à tona a verdade sobre os porões da ditadura que ele tenta esconder e negar que existe, apesar dos elogios do presidente.
Gilmar Mendes é figura ambígua nesse imbróglio. Convertido em garantista - ele que já defendeu a cassação do registro do PT -, talvez por ter percebido que o monstro que ele ajudou a criar fugiu do controle e agora lhe morde os calcanhares, aparentemente peita o exército e a mídia ao dizer que as conversas vazadas anulariam a sentença de Lula. Pode ser também mais lenha numa saída “heterodoxa”, de um fechamento do regime, de modo a evitar a soltura de Lula ao mesmo tempo que acaba com a Lava Jato e garante o grande acordo das elites de rapina do país, com supremo, com tudo.
O PSDB se afunda cada vez mais. Doria Jr segue aparecendo ao lado de Bolsonaro, e FHC, que foi um dos primeiros lumiares do partido a defender Moro diante da VazaJato, ganhou de presente de aniversário a comprovação da amizade e admiração de Moro-não-podemos-melindrar e Dallagnol-dar-a-impressão-de-imparcialidade. Quem pode herdar o discurso neofascista-neoliberal é João Amoêdo, o empreendedor que nunca empreendeu de fato (versão 2.0 do João trabalhador?), suas credenciais de nunca ter roubado dinheiro público (sic), uma verdadeira virgem com 20 anos de bordel, e sua defesa de pautas ultra conservadoras nos costumes e estado social zero.
Ao que tudo indica, se os primórdios da Lava Jato prometiam uma ruptura política, ferindo eleitoralmente de morte as esquerdas, em especial o PT - as eleições de 2016 seriam o primeiro sinal -, o erro na dosagem já havia enfraquecido a operação e reanimado o PT, a ponto de exigir um golpe menos branco e mais aberto em 2018, para evitar a vitória seja de Lula, seja de Haddad. A VazaJato, por seu turno, sinaliza a possibilidade de outra ruptura, porém do outro lado do espectro político, ou então uma ruptura aberta com a ordem democrática e o sepultamento definitivo do estado de direito - não por acaso, Greenwald passou a dividir o material recebido com outros jornalistas, de modo a forçar um escancarar da censura geral, sem possibilidade de individualizá-la a um "veículo estrangeiro", caso Moro e os neofascistas endureçam a perseguição ao veículo.

Parte da força narrativa da VazaJato é jogar na mesma moeda moralista da Lava Jato, uma vez que escancara a corrupção do judiciário (e logo mais teremos da mídia também). Infelizmente segue um discurso despolitizador. Ao The Intercept Brasil não cabe cobrar esse passo além - ao que tudo indica, eles escolheram seus alvos (a farsa da Lava Jato), tem suas metas (além da República de Curitiba e da Globo, não me surpreenderia em breve artilharia para cima do TRF4), e tem suas armas, que são limitadas -, cabe, sim, aos partidos políticos e seus quadros, movimentos sociais e demais forças progressistas: é urgente, a partir dessa narrativa, politizar o debate - quebrando, em especial, com essa ideia herdada do cristianismo de pureza nas ações sociais - e não se restringir a essa camada frágil do moralismo, facilmente capturável pela extrema direita. A esquerda não pode nem ir apenas a reboque nem errar na avaliação do que se passa e das alternativas que se insinuam. Vivemos tempos difíceis, porém a VazaJato abre possibilidades de mudanças significativas, se bem aproveitada - ou pode se tornar uma nova "jornadas de junho de 2013".

12-19 de junho de 2019

domingo, 16 de junho de 2019

Lula, o socrático

Ao assistir à entrevista do Lula ao Juca Kfouri e José Trajano, da TVT, dois aspectos ganharam nova dimensão para mim - questões secundárias, talvez, mas que ajudam a pensar o todo, a entender o principal.
Em certa altura, creio que trazendo uma pergunta de Frei Betto, o ex-presidente é questionado se se arrepende das indicações ao STF, e diz que não. Minha primeira reação foi fazer coro a parte da esquerda que o condena por não fazer uma autocrítica (a direita também faz esse tipo de condenação, mas é puro cinismo, porque ela o condena por tudo e por nada): "como assim não se arrepender de Dias Toffoli, 'Carmen Lúcifer' (como diz Igor Leone), Joaquim Barbosa, primeiro justiceiro televisivo de toga anti-PT?!" Ao invés de me achar com toda razão, tentei entender as razões que Lula poderia ter para dizer isso, além da evidente: se arrepender não resolve absolutamente nada, não desnomeia ninguém, e estamos falando de assuntos sublunares e não supralunares. Achei duas razões: a primeira, que sua liberdade está nas mãos do STF, e seus ministros, como espécimes exemplares do judiciário brasileiro, julgam não conforme a Constituição e as leis, e sim de acordo com desígnios secretos e subjetivos - a cor da roupa de baixo, se dormiu bem, o que o colega de academia vai pensar do seu voto, o que a tevê diz, o que ele ou ela enxergou na Bílbia na última epifania enquanto fugia do pecado do desejo da carne que o/a assomava -, logo, melhor não se indispor. A segunda é que, parafraseando Ciro Gomes, "o Lula tá preso, babaca", uma prisão arbitrária e indubitavelmente injusta, ainda assim, uma prisão, uma solitária. Destarte, o que lhe cabe é se afirmar de maneira positiva, até para mostrar a pequenez de quem o acusou e condenou, e não buscar suas falhas, porque isso não vai nem mobilizar quem cobra autocrítica nem demover quem tem convicção de sua culpa. Não que Lula não precise reavaliar pontos de seu governo, mas na prisão esse gesto soaria como uma capitulação aos seus algozes: assumir em tal situação que errou seria dar ensejo para fazê-lo assumir outras coisas mais, como o triplex, o sítio, a conta na Suíça, o atentado de 11 de Setembro. Por ora, a tarefa de crítica dos governos Lula e Dilma deveria ser feito pelo PT; porém o partido fica entre fazer coro uníssono ao Lula e tentar fazer o tempo girar pra trás e fechar acordos questionáveis como se o pacto de 1988 ainda vigorasse de fato.
O segundo ponto que me chamou a atenção está difuso pela entrevista, e mostra porque a elite e a classe média sem espelho tanto o odeia - e porque admira e idolatra Moro e Bolsonaro.
Lula não esconde sua origem, não se envergonha dela, não se acha inferior por isso. Mais, fora da lógica binária em alta no país (e no mundo) atualmente (e que não é privilégio da direita, parte da esquerda acadêmica é primária nesse aspecto há décadas), não se sentir inferior não implica em se sentir superior. O exemplo do não se levantar para o Bush é emblemático: não o fez por se achar superior, mas um igual. Além disso, Lula é uma pessoa ciente de e bem resolvida com suas limitações.
Costumo dizer, baseado em Sócrates, que há duas formas de se relacionar com a própria ignorância: ou você se orgulha dela e a utiliza como móbil da busca pela ampliação dos conhecimentos, ou você deliberadamente ignora o que não sabe, se imobiliza onde está seguro e se orgulha (ainda que pelo não-dito) da sua ignorância. Bolsonaro e seus seguidores, admito, abrem uma terceira alternativa: a pessoa que se sabe ignorante, se orgulha dessa ignorância e se orgulha ainda mais de insistir em ser ignorante - o ideal talvez fosse desaprender até chegar ao grau zero do entendimento e do conhecimento, mas é aquela metáfora do fruto proibido: uma vez mordido, não dá para voltar à completa ignorância.
Moro tem a soberba dos parvos deslumbrados com o elogio da própria mãe (o verdadeiro "idiota útil" que outro idiota útil viu nos manifestantes de 15 de maio), é o ignorante que quer destruir tudo (e todos) que aponta suas faltas, suas falhas, que contradiga a perfeição enunciada pela mãe. E dá sinais o tempo todo de quão mal formado é. Exemplo básico é o fato de não possuir sequer conhecimento da língua - sua e de seus chefes: é o "testo" de seu doutorado, o "conje" da sabatinada no congresso, os erros crassos de concordância toda vez que aparece falando mais que uma frase, seu patético inglês macarrônico. Tudo isso sempre escondido em sua face quase sempre séria, sisuda, quase sempre enfezada, de raros sorrisos comedidos e que não convidam a sorrir junto, sequer a querer saber o que teria despertado tal sentimento. Para quem se acha muito culto e erudito, é pecado mortal demonstrar tanta ignorância.
Lula, por seu turno, sabe de suas limitações e diante daquilo que não tem relevância, faz piada de si próprio: diz logo que só chama de Glenn porque pra pronunciar Greenwald iria dar nó na língua; mesmo na prisão Lula gargalha, transforma sua raiva em tiradas hilárias, como dizer que Dallagnol treinou bolinha de gude no carpete e a empinar pipa no ventilador (e mal sabe ele: sozinho, ainda por cima). É alguém que sabe que protocolos devem ser seguidos - e uma boa apresentação é parte do protocolo de um presidente -, mas também sabe o quanto eles tem de ridículo para serem levados excessivamente a sério, e que podem ser tensionados - sem ser ele o ridículo (como usar chinelo com terno). Lula é vivido, é alguém com leitura de mundo e contexto, é inteligente e fala em alto som de suas ignorâncias e de como tem tentado superar as lacunas importantes (saber sociologia, economia, história é importante, falar Greenwald ou advogado corretamente, não).
Tanto Lula quanto Moro/Dallagnol/Bolsonaro podem ser tidos como sínteses de elementos do país. Os neofascistas tem tanta admiração das classes média e alta (principalmente) porque elas vêem neles um reflexo de si próprias enaltecidas pela Globo: se reconhecem nas suas "qualidades" e se sentem elogiadas por William Bonner, Merval Pereira, Miriam Leitão e que tais. Já Lula é mais que uma síntese de uma democracia encarcerada para pilhagem do país e seu futuro, Lula é síntese do futuro que o país precisa: um país que reconhece e assume seu passado e que sabe que não pode ficar onde está - onde sempre esteve - e precisa se transformar, para desenvolver suas potencialidades.

16 de junho de 2019

quarta-feira, 15 de maio de 2019

15 de maio: a flor e a náusea (outras flores virão?)

Com atraso, muito atraso – três anos e um dia, desde a posse de Michel Temer, para ser mais exato -, as pessoas envolvidas com educação – professores, estudantes, gestores, pais, cidadãos – parecem ter finalmente conseguido se organizar e se articular minimamente para fazer frente o desmonte da educação no Brasil – em especial a pública, mas não só.
O mérito dessa organização cabe a Abraham Weintraub, ministro da educação (sic) do governo (sic) Bolsonaro. Pode ser que tenha sido um lance estratégico, dando ensejo aos protestos de hoje, os quais serão subvertidos pela narrativa (oficial) distribuída por WhatsApp, favorecendo o governo; mais provável é que seja só ignorância, incompetência e incapacidade do ministro (a exemplo de todo governo).
Os protestos foram bonitos, tranquilos – com a polarização violenta da sociedade estimulada pela extrema-direita (nisto inclui Globo e similares), temia certa quebradeira por pessoas ali postas para isso, ainda mais diante dos poucos policiais que faziam a proteção das pessoas – e grandes. Tive a impressão de que sequer no ato da Paulista em defesa da democracia e contra o golpe, pela permanência de Dilma, com o Lula, tinha tanta gente – talvez as duas manifestações estivessem pau a pau, inclusive numa certa “energia” que corria entre os manifestantes. Mais que isso, convém reparar na guerra de narrativas: eu chegava em São Paulo às duas da tarde, hora programada para o início do protesto na capital, e a rádio do grupo Globo girava o país comentando como estavam os protestos – uma narrativa “neutra”, que comentava da pauta da reforma da previdência e no grande número de pessoas, sem elencar os problemas para as pessoas que queriam passar de carro pela Paulista e não podiam. Sem comprar o discurso de fora Bolsonaro, sem chamar os patos para a avenida, porém sem também deixar para dar uma nota curta no jornal da noite, no curto exemplo que tive, a Globo se abriu ao jornalismo sério como disfarce para fustigar o governo – e isso não é pouco, dada a pouca fibra do presidente e dos seus, é bem possível que ele sinta a pressão.
Contudo, o que realmente chama a atenção é só agora acontecer uma reação de tal monta, sendo que elementos tem sido dados desde o segundo governo Dilma, mas em especial desde o golpe de 2016: a ponte para o futuro, desvinculação dos recursos do pré-sal para a educação, a PEC dos gastos públicos (que não com juros), a reforma do ensino médio – tudo isso justificado pela mídia, pelos especialistas a serviço da mídia, pelo ilustrado ministro Barroso. Única reação digna de nota foram dos estudantes secundaristas ao fechamento de escolas, em 2015, ainda antes da Blietzkrieg golpista da trinca judiciário-mídia-capital. Não apenas isso: a instalação de uma CPI na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 22 de março, por parte de Doria Jr e sua base, para investigar “desvio ideológico” nas universidades, é motivo suficiente para as estaduais paulistas estarem paradas, por ordem do reitor – que ou não entenderam a situação, e não perceberam que tem sua cabeça a prêmio, ou estão dispostos a agir a la Ernesto Araújo e em troca de poder para agora, entregam tudo (e todos) o que o chefe mandar. As universidades, porém, preferiram fingir que o ataque à sua autonomia não era com ela.
No plano federal, a inabilidade de Bolsonaro tem mostrado um tiro no pé das elites que o puseram lá, para afastar o sapo barbudo ou seu sucessor. Temer, político habilidoso, tinha deixado pronto o desmonte da educação pública de modo lento, gradual e seguro. Bolsonaro, ao acelerar o processo, articulou a reação e pode pôr tudo a perder. O corte de 30% nos orçamentos das universidades públicas, os cortes gerais na educação, as ameaça de fim de humanidades nas universidades, a ameaça de ensino residencial (homeschooling) são o escancaramento do que Temer tinha posto no horizonte, sem maiores reações. Primeiro com a PEC 95 (aprovada no dia em que caiu o avião da Chapecoense), que congelou gastos sociais por vinte anos – e entre tirar da saúde, segurança ou educação, é bem evidente que educação seria escolhido, por não ser algo de efeito imediato. A seguir, sua reforma no ensino médio, que tirou as ciências humanas – filosofia, sociologia, história – da grade obrigatória, e permitiu que parte das disciplinas fosse à distância (EaD). No médio prazo o que isso implicaria? A EaD diminuiria o mercado de trabalho para professores, diminuindo a demanda (e a sua necessidade, segundo a leitura dos cabeças de planilha) desses cursos. Os cursos de humanidades cuja principal ocupação é lecionar, sem a obrigatoriedade, tende a cair ainda mais (a concorrência em filosofia na Unicamp, por exemplo, foi de 5,1 candidatos por vaga em 1997, para 10,9, vinte anos depois, motivado, em boa medida pela abertura do mercado de trabalho nas escolas, durante o governo Lula); menos procurados, seriam cursos que poderiam ter suas verbas cortadas com “melhores” justificativas, de modo a acomodar a universidade no arrocho orçamentário imposto pela PEC. Ao cabo, primeiro os cursos de humanidades nas universidade públicas minguariam (nas particulares já são minguados), logo as próprias universidades – talvez os hospitais passassem para a pasta de saúde, como forma de garantir o funcionamento daquilo que boa parte da sociedade vê como único serviço prestado pelas universidades –, e isso, ao que tudo indica, sem maior alarde, sem conseguir mobilizar a população na sua defesa.
O ponto agora, uma vez que as pessoas preocupadas com a educação e com a educação pública no Brasil conseguiram se organizar, é manter a mobilização e levá-la para além de pautas reativas, de negação, incluindo no debate público problematizações e propostas positivas: a forma como a educação – tanto a básica quanto a superior – tem sido atacada e modificada, sem discussão com a população, com os interessados e com especialistas da área, e sem maiores reações da sociedade, mostra que há, sim, uma percepção de que algo não vai bem. Se acaso se centrar em voltar ao que era, este movimento iniciado dia 15 de maio não vai conseguir angariar apoio necessário para fazer uma contraofensiva aos desejos dos donos do poder (e não apenas dos ocupantes de turno do Palácio do Planalto). Assim como é urgente revogar os cortes nos orçamentos das universidades e retomar a vinculação das receitas do pré-sal à educação, é preciso propor uma discussão de ampla reforma da educação, repensar a função da escola (ainda faz sentido uma escola tão conteudista num tempo de internet? Melhor não seria centrar em aspectos de relações inter e intrapessoais?), o papel do ensino na vida de uma pessoa (é só meio para ascensão social, ou pode fazer sentido no momento presente do aluno?), a inserção da universidade na sociedade. É preciso que escolas e universidades se abram ao seu entorno (o projeto dos CEUs da Marta Suplicy é um bom exemplo), dialoguem com todos – dialoguem e não façam palestras -, entendam carências urgentes do grosso da população que não são contemplados pela universidade e conciliem isso com necessidades de médio e longo prazo de toda nação.
Foi aberta uma brecha, como a flor no poema de Drummond. "É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio." As forças democráticas e de esquerda da sociedade precisam aproveitá-la!

15 de maio de 2019

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Uma discussão banal

Esperando a importante discussão se a
bola é redonda ou triangular começar
Caminho apressado - estou atrasado para minha aula -, passo por dois ambulantes que discutem. A mulher que vende não sei que tipo de comida nega energicamente a fala do ambulante do milho verde: "não é de esquerda!". "É claro que é", responde o homem com a calma dos que não apenas acreditam na verdade como creem serem possuidores dela, "eles são do mal, os nazistas. Eles mataram seis milhões de gentes. Isso é coisa de esquerdistas". Eu sigo meu trajeto, a conversa segue às minhas costas, as palavras chegando embaralhadas em meus ouvidos tanto quanto as ideias expostas. Sei que é uma conversa banal para estes tempos surreais de diluição da verdade e da própria realidade, porém ganha uma simbologia extra pelo local onde ocorre: rua Itapeva, no portão da Fundação Getúlio Vargas - provavelmente são seus alunos, talvez alguns funcionários, que compram o que aquelas duas pessoas vendem.
É sintomático esse tipo de conversa acontecer na porta de uma universidade de elite - e elite não apenas porque nela estudam os filhos dos endinheirados, mas por ser uma instituição universitária de excelência, produtora de conhecimento, e conhecimento não na engenharia de materiais ou de microbiologia, mas de ciências sociais aplicadas: economia, administração, direito. É na porta dessa instituição onde ouço um homem afirmar o disparate do nazismo de esquerda: três passos fora de onde se produz pesquisas de excelência, a excrescência das ideias floresce feito mato, feito as saúvas nas terras de Policarpo Quaresma.
Há uma dose muito grande de responsabilidade por parte da academia para esse antagonismo: não aceita dialogar de igual com conhecimentos produzidos fora de seus limites, ao mesmo tempo que restringe quem serão os eleitos a adentrarem seus muros. Na base de todo este absurdo, a existência dos muros. Do que se defendem as universidades para precisar de guaritas nestes Tristes Trópicos? Vale ressaltar que se hoje os muros são palpáveis, feitos de concreto e vidro, é porque cercas mais sutis - como a distância de onde residem as pessoas "normais" - perderam eficácia. Que privilégios teme perder nossa elite intelectual para precisar afugentar dessa forma o povo? Medo de descobrir que o povo (preto pobre periférico, losers da meritocracia) que ela crê limitada é tão ou mais capaz que ela - como provaram as quotas nas universidades públicas, ou como atesta uma fala do Mano Brown frente 90% dos sociólogos tupiniquins?
Comentário de dia desses do historiador Fernando Horta sobre Olavo de Carvalho, astrólogo autoproclamado filósofo, é tão sintomático quanto à discussão que presenciei. Diz ele:
"Querem saber o motivo de todas as defesas de mestrado e doutorado serem públicas? De todos os artigos serem analisados 'pelos pares' e de toda a produção acadêmica ser livre, pública e necessariamente se submeter às críticas ao contraditório?
Para evitar que um idiota passe 30 anos dialogando consigo mesmo, sem nenhuma capacidade de crítica, se achando tremendamente inteligente e depois venha a se chamar de 'filósofo' e encontre um presidente que nunca leu um livro na vida que o chame de 'guru'."
Horta não está errado, de modo algum! Ocorre, porém, que esbarra no limite de crítica que a academia se põe: enquanto produz ciência excelsa é incapaz de dialogar com quem não cumpra seus requisitos, não é parte dos seus "pares" - uma espécie de religião laica (meio laica, vá lá) incapaz de se assumir como tal. Nisso, "um idiota sem nenhuma capacidade de crítica" é louvado pelo presidente da república, impõe um debate surreal à nação, e a academia trata de reagir se autoelogiando, reafirmando que dentro de seus muros tudo é melhor - e a culpa, fica subentendido, é do povo, dos ignorantes, boa parte deles que não puderam entrar e não entendem o que nunca tiveram a chance de aprender, e agora seguem o primeiro picareta capaz de ouvir suas queixas e dar respostas que as satisfizessem (é Olavo, mas poderia ser Silas ou Edir). E o pior: a academia não é capaz de perceber que os apoiadores de primeira hora, assim como os que até agora permanecem com o capitão são os egressos de suas salas de aula!
Se o pensamento racional é capaz de fazer avançar as ciências e as tecnologias a passos céleres, a política é capaz de fazer todo essa avanço retroceder ainda mais rápido - daí a necessidade de usar e valorizar todo o potencial humano e não apenas o racional-utilitário. Se a academia seguir insistindo apenas no discurso racional duro, pretensamente desapaixonado (a ilusão dos intelectuais frígidos), a extrema-direita seguirá ganhando corações e mentes - e eleições! -, insistindo nesse caminho do sucesso, bem resumido pelo atual ministro da educação: "quando você for dialogar, não pode ter premissas racionais". E a história nos mostra: a negação da razão não é a recusa de seus frutos tecnológicos, é apenas sua instrumentalização para a barbárie.

11 de abril de 2019

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Uma criança brinca na cidade plúmbea

Nos últimos quatro anos, com o passar do tempo que parece que não passa e o suceder das crises que não se resolvem, apenas são suplantadas por novas crises, o Brasil vai lentamente se desenhando com as cores do Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago. Zanzar por Ésse-Pê prestando atenção às insignificâncias da cidade é ver emergir um cenário pós-apocalíptico enquanto ainda se espera pelo apocalipse. Talvez o Metrô seja onde isso possa ser visto com mais clareza. O meio de transporte que meia década atrás emulava a imagem idealizada da Europa, com seus trens limpos e frescos e seus usuários bem vestidos, é hoje um micro retrato do país - e de projeto de país, ou melhor, de destruição de.
Em meio a atrasos e interrupções da rede - parte por causa do sucateamento promovido por Alckmin-Doria Jr, parte por usuários dando cabo à própria vida embaixo de um trem -, ambulantes interrompem o anúncio de seus (sub)produtos de cinco reais para brigar entre si sobre quem teria o direito de vender naquele vagão, mulheres clamam misericórdia feito leprosos na Idade Média europeia, crianças disfarçam de prata o preto de sua pele e se exibem algo como um Chaplin imberbe e precocemente envelhecidos em sua desesperança, artistas tocam músicas animadas e deixam escapar seu presente despedaçado - todos em busca de qualquer esmola, uma moedinha, um alento para sobreviverem até amanhã e recomeçarem sem pensar que depois de amanhã o futuro será igualmente claustrofóbico, tal qual um Sísifo míope e mutilado. Nos corredores das estações, violinistas do Titanic, arautos do fim do mundo, balas de côco por um real, guarda-chuvas com sotaque francês-africano, pessoas que dormem cobertas com o que têm à mão, enquanto outras ficam paradas em posições estranhas, olhando para o nada, catatônicas - as primeiras esperam a chuva passar, as segundas parecem esperar que o tempo passe, tão somente, até que chegue o nada. Me lembro que cada sociedade produz seus tipos específicos de "loucos" - quais serão os dos próximos anos?
Na estação República, vejo uma cena ao mesmo tempo bonita e triste. Talvez a tristeza não exista, seja projeção minha, de quem ignora a realidade - assim como a beleza que enxergo também é o aflorar de clichês de minh’alma. É um menino negro, cerca de doze anos, roupas simples - mas que indicam que não mora na rua -, uma coroa de princesa na cabeça e uma boneca loira (estilo Barbie). Está muito entretido, os olhos brilham, tem um sorriso sincero de quem realmente se diverte. Brinca alheio aos adultos que passam encharcados de chuva, pressa e angústias (passado a catraca parece haver espaço seguro para que se brinque ou se perca, sem ser perturbado por estranhos ou seguranças). Na sua mão a boneca voa como um super-herói para logo em seguida rodopiar feito bailarina. A beleza está nessa alegria pueril, despreocupada, centrada apenas em brincar. A tristeza que me bate é imaginar quais preconceitos e empecilhos o garoto não teve que enfrentar para poder vestir uma coroa e brincar de boneca, desde o menino não brinca de boneca até a própria dificuldade em adquirir uma, chegando à mais atual: poder ser a criança que desejava apenas já pré-adolescente, quando o esperado seria negar, ao menos em público, que se é criança. Me parece significativo que seja numa estação de metrô, anônimo, e não em um ambiente de família - e emblemático que a poucos passos do Museu da Diversidade. Tanto tempo esperando por um prazer simples.
Reflito um pouco menos melancolicamente a cena vista. Que haja idade certa para viver começar a ter experiências, não discuto, mas que não se possa voltar e fazer coisas que não são consideradas da idade, isso é tão absurdo quanto o quotidiano claustrofóbico dos miseráveis e dos funcionários do Metrô. A criança com coroa de princesa que brinca com a boneca, apesar de já um pouco além da idade que se brincaria assim, talvez seja uma prévia para o que vem depois da epidemia de cegueira, um ensaio sobre a lucidez que, se insistirmos com nossa luta, lograremos encontrar, um pouco fora do tempo certo, mas ainda no tempo de ser aproveitada.

08 de abril de 2019

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Petróleo, China e a hegemonia dos EUA em risco [Zeitgeist 2033]

Diante da visível desagregação da ordem liberal - econômica, democrática, das relações
internacionais -, os donos do poder, ao invés de tentarem reverter a situação, alterando algumas de suas bases, preferem acreditar que a ruína não será completa e preferem antes montar o tabuleiro para lucrar com as próximas ações - mesmo que isso implique em uma guerra e toda destruição que ela implica. Compreensível: ao invés de ceder os anéis para não perder os dedos, seguram tudo e a esperança é que na grande fogueira a queimar os escombros da civilização possam derreter os anéis e transformá-los em um colar.
Talvez eu esteja sendo alarmista, mas me parece haver sinais de que a terceirização da desgraça está batendo em seus limites, ou seja, adentrando os países centrais: se governos conseguiram socorrer os mercados e evitar um grande crash em 2008, salvar as empresas e a economia financeira não tem implicado em salvar (bons) empregos e permitir uma vida digna às pessoas.
Enquanto as economias centrais - EUA, Alemanha, Reino Unido, Japão e China - se encontram em situação de pleno emprego, o desemprego e o subemprego são uma constante nas franjas do mundo (nos países "em desenvolvimento", até 75% dos empregos são considerados precários, segundo a OIT [http://bit.ly/2Xa2SNy]). O esgotamento do modelo neoliberal chegou à Europa com a crise de 2008, porém o grosso de seus efeitos só se fez sentir recentemente, e pode ser posto na conta dos imigrantes que chegavam ao Velho Mundo, fugidos das chagas abertas pelos europeus em suas terras pátrias - transformada em terras párias.
Na política, o perigo do crescimento da extrema-direita tem sido minorado pela pretensa "estabilidade das instituições", enquanto a democracia liberal - nunca plenamente realizada -, é substituída por um simulacro de - que Rubens Casara denominou pós-democracia. Macron foi a mais recente tentativa de dar uma nova cara às velhas práticas e manter tudo como está - discurso cosmopolita, de respeito identitário às minorias e favorecimento econômico dos ricos e dos "empreendedores" em detrimento dos trabalhadores assalariados. Os coletes amarelos são a demonstração do fracasso dessa política "centrista", e seu pacote de endurecimento das leis, visando conter futuros tumultos do gênero [https://on.ft.com/2tkaIGL], é a máscara liberal que cai aterrorizada diante das pressões populares por dignidade - sequer exigem os ideais liberais que Macron diz almejar. Renzi anunciá-lo como timoneiro da Europa renovada é prova do descolamento da classe política da realidade [https://on.ft.com/2E7eTuF]. Na Alemanha, Annegret Kramp-Karrenbauer (conhecida como AKK), sucessora de Merkel no Partido Democrata Cristão, parece uma última tentativa de contornar a situação antes de ter que escolher entre a extrema-direita ou o "populismo" de centro-esquerda (toda política que não favoreça primeiramente os detentores do capital é tida como populista pelos neoliberais): AKK venceu Friedrich Merz na luta interna do partido com um discurso cosmopolita que flerta com bandeiras mais comuns à esquerda, como aumento do salário mínimo, fim da energia nuclear, aumento de impostos e quotas para mulheres (ainda que tenha cedido na questão da imigração, prometendo endurecer as regras de asilo); enquanto seu adversário falava em "lei e ordem", "identidade nacional", "valores tradicionais" e "reformas liberais". Vale lembrar que a social democracia europeia, desde que tropeçou na busca de uma terceira via entre a direita e a direita, é um espectro que ronda a Europa - mas espectro no sentido diferente do dito por Marx, no século XIX -, e cabe geralmente a alguma personalidade que desponta, como Corbyn ou Melechon, a construção de alguma alternativa de esquerda, ainda por se realizar. A geringonça lusitana é rara (e feliz) exceção.
Até aqui tentei entender a dinâmica do poder das "instituições estão funcionamento normalmente", em que ameaças como da extrema-direita soam como problema de discurso agressivo e não de encaminhamento para um conflito armado real. A questão ganha uma dimensão mais dramática quando se analisa os aspectos geopolíticos do derretimento liberal. O fim da história apregoado por Fukuyama parecia incontestável: uma superpotência a dominar o globo, com duas forças auxiliares - Japão e Europa ocidental -, e algumas lideranças locais subordinas ao Império, o qual expandia e garantia seu poder via "reformas estruturais" ditadas por organismos "internacionais" pretensamente neutros e apolíticos, como Banco Mundial e FMI. As crises podiam quebrar países periféricos importantes, mas não afetavam o coração da acumulação nos países centrais, suas grandes empresas. Os "neobobos" podiam espernear, mas a ordem estava dada e acabada, e nada sinalizava mudanças.
Mas as pessoas seguiam vivas, e com elas, a história.

A ordem neoliberal e a derrocada soviética
Guy Debord, em 1967, ao analisar o "capitalismo de estado" soviético vaticinara: qualquer abertura do sistema levaria ao seu colapso. Diante da crise econômica na Rússia soviética, a glasnost e perestroika abriram a cova na qual a experiência do (mal denominado) "socialismo real" se enterrou. Como crise geral do capitalismo, concomitante à crise soviética, havia a crise do capitalismo de mercado ocidental, e foi como resposta a esta que surgiram as reformas neoliberais, importantes não apenas para salvar as taxas de lucro, como para reforçar a ordem geopolítica de dominação estadunidense - feito na surdina, sem necessidade de ostentar a dominação de um Estado sobre os demais. A pretensa liberdade de mercados e capitais levou ao rearranjo produtivo no globo e à concentração de capitais, formando megaempresas, via de regra de países centrais - reafirmando a tese de David Harvey, de que o capitalismo tende ao monopólio ou oligopólio, se deixado às "forças do mercado", alterando apenas o território de abrangência desses monopólios, conforme avançam os transportes e as comunicações.

Hugo Chávez, independência frente os EUA, e o preço do petróleo
O mundo ia tranquilo: crise aqui, crise acolá, mas não se cogitava um 11 de setembro, e se repetia diuturnamente que a vida agora, diante do fim da história, se resumiria a (se) consumir até o fim da vida. É quando começam a despontar novos estrategistas no tabuleiro internacional.
O primeiro foi Hugo Chávez, na Venezuela: soube desarticular os arranjos das elites locais, atacando inclusive seu braço midiático, e soube aproveitar da principal riqueza do país, o petróleo - não soube fugir da dependência do ouro negro. Ao assumir, em 1999, a cotação do petróleo estava no seu nível mais baixo, cerca de dez dólares o barril. Chávez foi um dos responsáveis pela rearticulação da OPEP, quando esteve na sua presidência, inclusive foi o primeiro chefe de Estado a visitar Saddam Hussein desde a guerra do Iraque, em 2000 [https://bbc.in/2DWiVae]. O preço do barril passou a ficar sempre acima dos US$ 25, salvo nos seis meses seguintes ao 11 de setembro - valor que, desde o fim da segunda crise do petróleo, havia sido alcançado apenas na guerra no Iraque. Em 2008 chega a US$ 130. O preço cai com a crise desencadeada pelas subprimes, se recupera até próximo dos US$ 120 em 2012 [http://bit.ly/2BotcdL]. Ao compartilhar os dividendos do petróleo com a população e não apenas com os acionistas, Chávez diminui a pobreza e melhora significativamente os indicadores sociais da porção mais pobre do país. Com isso, se garante no poder, não dando chances para a vitória das elites tradicionais, pró-EUA. Não que o governo bolivariano em algum momento tenha deixado de fazer negócios com os EUA (até 2018), contudo, sua não subserviência aos interesses do grande irmão do norte sempre foram tratados como uma afronta pelo Tio Sam, que tenta retomar o controle do país por via direta ou indireta, desde 2002, ao menos - golpes de Estado, locautes, greves, atentados com drones bombas.

BRICS e o grupo dos independentes
A princípio era um acrônimo econômico, as possíveis potências do futuro. Levado a sério pelos países, o BRICS, apesar das diferenças entre seus membros, ao se articular, desde 2006 (formalizado oficialmente em 2009), se tornou um grupo geopolítico relevante, independente da influência imediata dos EUA e de suas forças auxiliares. Se Índia e África do Sul marcavam posição como potências regionais com grande potencial econômico futuro, a Rússia de Putin, a China de Hu Jintao e o Brasil de Lula-Amorim-Mantega aliavam potencial econômico com protagonismo mundial - quase uma versão mais pragmática do terceiro mundismo da década de 1960. Noam Chomsky, por exemplo, citava, em 2014, o Brasil como país mais apto a mediar uma solução verdadeira para o conflito árabe-israelense. A crise de 2008, acelerando a integração do BRICS e a derrocada do ocidente, fez acender o sinal de alerta nos EUA, que passaram a se dedicar intensamente à desarticulação do bloco.

Avanço da OTAN no leste europeu e a reação russa
O fim do fim da história, com os ataques ao World Trade Center, em 2001, teve como uma de suas principais consequências a "doutrina Bush", a guerra preventiva, a autoautorização do Império para atacar e invadir todo país que julgue uma potencial ameaça em algum futuro - sem requisitar para tanto o aval da ONU. A confiança no cumprimento dos acordos e tratados, que garantia a ordem internacional, começa a fazer água pela ação dos EUA. As relações do Ocidente com a Rússia começam a azedar aí, e a OTAN passa a avançar célere para os países do leste europeu - a reanexação da Crimeia pela Rússia é apenas a reação mais visível aos descumprimentos do pacto firmado em 1997. Putin é um político nacionalista de direita, extrema-direita, mas guarda uma grande diferença para seus colegas de campo no ocidente: é inteligente e capaz de pensar estratégias para o Estado, e não apenas para as eleições. Ganhando também com a alta dos combustíveis, investiu inicialmente na política interna, paulatinamente avançando na política externa, via indústria militar (nunca abandonada) e parcerias estratégicas, como o BRICS; a seguir, com a crise advinda da queda dos preços do petróleo, em 2014, e uma política mais agressiva por parte dos EUA, reagiu atuando de forma mais aberta na política externa - a aliança com a China, em especial com a Nova Rota de Seda, talvez seja esse ponto de inflexão, em que começa a se articular de maneira mais orgânica um polo de resistência à hegemonia estadunidense. As atuações militares, mesmo com o cerco econômico recente, fez o país assumir novamente papel de relevo no cenário mundial - em especial após a reanexação da Crimeia e a intervenção na Síria -, inclusive fazendo renascer o mesmo discurso de "perigo russo" da época da União Soviética. As acusações dos EUA de interferência nas suas eleições de 2016, sinalizam que o ataque à Rússia é real, e tal interferência do país eslavo seria uma reação "natural" aos movimentos de Tio Sam no país e seus arredores. O recado dado aos EUA quanto a uma possível interferência na Venezuela de Maduro mostra que pretende expandir sua área de influência - em parceria com a China - muito além das suas vizinhanças.

China, a nova potência mundial
Enquanto potência regional ascendente, com mão de obra intensiva barata e grande mercado consumidor potencial, a China, ainda que com ressalvas, era bem vinda ao sistema de produção internacional. Os avanços geopolíticos e a mudança da forma de inserção na ordem econômica mundial fizeram com que os EUA se preocupassem com seu avanço. No pós crise de 2008, a China foi responsável por manter a demanda econômica em níveis que evitassem maiores danos à economia do planeta. O problema foi que isso fez com que despontasse como potência e começasse a fazer frente aos EUA e suas forças auxiliares, em especial a Europa - com pesados investimentos em infra-estrutura na América Latina e na África. A ascensão chinesa não é de apenas um novo player global, é uma nova forma de organizar a economia e as relações mundiais, uma vez que seu modelo tem a participação evidente do estado na economia - e não apenas disfarçada, como no modelo de "livre mercado" apregoado por EUA e seus asseclas. A preocupação passou a crescer quando o Império do Meio, consolidado como principal parceiro comercial de muitos países-satélites das potências, passou a investir abertamente nos EUA e Europa, com aquisições de empresas dos mais variados ramos - informática, veículos, robótica, química, energia, etc -, afim à sua estratégica "Made in China 2025".

Tentativa de desarticulação dos países independentes produtores de petróleo (iniciada em 2011 e concluída em 2014)
Com a economia mundial se recuperando da crise de 2008, os preços do petróleo voltam a subir vertiginosamente, de US$ 40 para cerca de US$ 80, em 2010. Por coincidência, no meio desse trote para o alto, começam as primaveras árabes, em 2011; em 2012 haveria eleição presidencial na Venezuela; e um acordo nuclear com o Irã era costurado, prometendo acabar com o embargo ao país xiita. A turbulência no Oriente Médio acaba fazendo o preço do ouro negro disparar, chegando a US$ 116. Curiosamente, os principais aliados dos EUA na região, Arábia Saudita e Emirados Árabes, passaram incólume às manifestações. É somente com o apaziguamento do Iraque, em 2014, que o preço do petróleo passa a ficar entre US$ 40 e US$ 50. A baixa na cotação torna economicamente inviável o gás de xisto, que vinha ganhando impulso nos EUA - o que é bom para a Arábia Saudita. Também coincide com quando os EUA estão prontos para assinar o acordo nuclear com o Irã - rival da Arábia Saudita e também produtor de petróleo -, em 2015, levantando o embargo econômico ao país (acordo esse basicamente igual ao proposto por Brasil e Turquia em 2010, e aceito pelo Irã). É quando a Rússia, outra produtora de petróleo, dá um basta ao avanço da OTAN, com a reanexação da Crimeia. E é quando a Venezuela está sem seu estrategista, e Maduro se mostra bastante aquém do que seu cargo exige. É quando, na esteira de um movimento popular, começa uma mui suspeita investigação judiciária sobre corrupção no Brasil (após os EUA espionarem a Petrobrás e a presidenta da República o que, ao que tudo indica, municiou a primeira fase da operação [https://bbc.in/2Smuuva]), e a queda do preço do petróleo, aliada à Operação Lava Jato, acarretam numa óbvia perda de valor das ações, e permitem a construção da narrativa de que Dilma quebrou a Petrobrás, depois ampliada para Dilma quebrou o país com as pedaladas fiscais (remanejamento de incríveis 0,008% do orçamento). A estratégia de golpe parlamentar já havia sido ensaiado pela embaixatriz Liliana Ayalde em Honduras, em 2009, e no Paraguai, em 2012 - e o juiz "responsável" por desarticular a cadeia de óleo e gás do Brasil, devidamente treinado nos órgãos de segurança dos EUA [http://bit.ly/2HYDCX3]. O novo governo brasileiro, assumido pelo "vice-caução" [http://bit.ly/cG180509], de alinhamento automático com os EUA, ajudou a desarticular em alguma medida o BRICS - contudo, ao que tudo indica, o Brasil precisa mais da China que a China do Brasil.
Com esse movimento, a ordem liberal capitaneada pelos EUA abate alguns dos países que ameaçavam esboçar voos solos - como Venezuela, Síria e Irã - e, principalmente, atinge dois dos países do BRICS - Brasil e Rússia.
(Parênteses: a derrubada do Brasil petista pode ter sido um tiro no pé no projeto de hegemonia americana: ainda que tenha "recuperado" o petróleo e, pelo que se sinaliza, imposto uma agenda favorável aos seus interesses - privatizações e bloqueio chinês -, o Brasil já depende o suficiente da China para não poder barrá-la, sem mais; mas principalmente porque, ainda que de maneira independente, priorizando relações sul-sul, a diplomacia petista - principalmente Lula-Amorim -, era de reforço à lógica favorável aos EUA, de livre mercado - por mais que fosse minorado por políticas de Estado - e defesa de um mundo "multipolar" existente apenas enquanto desejo e ideologia).

Os tratados de livre comércio
O segundo ponto de ação dos EUA para retomar a hegemonia foi costurar novos tratados de livre comércio, de modo a isolar a China e garantir que os governos não participassem de maneira evidente do mercado. Tratados amplos que cercavam o Império do Meio: a Parceria Transpacífica e o Parceria Transatlântica. Sobrariam fora deles, grosso modo, além da China, Rússia, algumas repúblicas asiáticas, Oriente Médio, África, Brasil e Argentina.
Rússia é um calo no projeto americano - ou a justificativa para suas arbitrariedades, para ser mais exato -, as repúblicas asiáticas estariam "naturalmente" na órbita de China e Rússia, o Oriente Médio é em parte controlado pelos EUA, em parte é o caos; na África, os países mais importantes economicamente seguem colônicas de fato da Europa - eis a preocupação com a democracia no Congo, na Nigéria e o silêncio com a tentativa frustrada de golpe no Gabão -; Argentina teve a vitória do candidato "certo", graças ao golpe branco da mídia; e o Brasil com alguma dificuldade - um impeachment, um lawfare, uma ameça de golpe militar e a ameaça de mamadeira de piroca comunista - aprendeu a votar "certo". A China estaria, portanto, isolada, e começaria a definhar caso não aceitasse se adequar à boa governança - as reformas estruturais que Trump tem exigido abertamente.
Ao mesmo tempo, cria uma legislação que permite julgar quem usou moeda americana em transações suspeitas ou criminosas, se tornando, de fato, juiz do mundo, com um sistema judiciário totalmente enviesado para a defesa de seus interesses.

Trump e a mudança de estratégia
A vitória da extrema-direita nos EUA - uma extrema-direita boa de estratégia eleitoral (se jogam sujo é outra história), mas fraca (ao que tem demonstrado até aqui) de estratégia de estado, de poder, de geopolítica -, com Donald Trump, fez com que o Império do Norte abandonasse a estratégia de isolamento da China e partisse para a guerra aberta. Por ora ela é denominada de "guerra comercial", mas o guerra não é uma metáfora, e pode-se dizer que há prisioneiros de guerra, negociados em busca de acordos vantajosos - Meng Wanzhou é apenas a prisioneira mais importante. Aparentemente, a estratégia de Trump era de uma espécie de blietzkrieg, porém sem a eficiência alemã - e correndo sério risco de perder e ter que recuar. Isolamento chinês não mais por tratados comerciais, e sim por tarifas comerciais dos EUA, aliado a vetos abertos dos países aliados a empresas chinesas, sob a justificativa de ameaça à segurança nacional. Ocorre que há um limite do quanto os países aceitam perder dinheiro para se vincular a um lado. Se o "Brasil livre de ideologia" aceita entrar alegremente nessa guerra contra a China, na Argentina já se discute um downgrade na qualidade das exportações de soja, para ganhar a fatia americana no mercado chinês. Se o banimento da Huawei da internet 5G se justifica por conta da segurança, o UK National Cyber Security Centre apresenta relatório [https://on.ft.com/2tuHWTW] apontando a falácia do argumento, sendo possível o uso de equipamentos Huawei sem pôr em risco a segurança nacional - a questão de segurança despertada pela Huawei é, na verdade, de segurança geopolítica.

A Europa tenta se salvar
Em meio a esse conflito, com aliados fazendo jogo duplo e ameaçando desertar, a Europa aproveita que tem um pouco mais de margem de manobra e toma lado - da potência hegemônica -, na esperança de lucrar com a manutenção da ordem atual - sob o risco de se tornar toda ela uma grande Grécia, como único valor positivo a lembrança de ter sido (pretensamente) o berço da civilização ocidental.
A Alemanha é o caso a ser observado, por ser o país mais forte do bloco e por estar dando sinais claros da sua movimentação. De um lado, a tentativa de aprofundar o sistema global em curso, favorável ao capitalismo estadunidense e das potências auxiliares, com a criação de "campeões continentais", eufemismo para permissão de monopólios. O principal caso é a tentativa de união da Alston com a Siemens, no ramo de transporte sobre trilhos. Isso seria um passo a mais na "integração" europeia (integração econômica, azar das pessoas), dificultando separatismos posteriores - como no caso do Brexit -, permitiria ganho de escala para disputar com mais vantagens mercados (e azar das pessoas/consumidores) e, principalmente, permitiria evitar o avanço da chinesa CRRC - até então não se tinha alegado necessidade de conter empresa de um país em especial para mudar as regras de concorrência da União Europeia [https://on.ft.com/2EjfEC8]. A criação de competidores globais, que Altmaier (como Le Maire) defende, é a manutenção da ordem mundial atual, sob os auspícios estadunidenses, de exploração das periferias - inclusive as próximas, como os países do leste europeu - para garantir as taxas de lucro e os dividendos dos acionistas. É um caminho que mantem o status quo, pressupõe que as regras do jogo do mercado mundial seguirão - e, portanto, irá lucrar com isso -, e ainda consegue manter algo do discurso liberal, uma vez que o protecionismo não se faz em base nacional, mas continental, com objetivo explícito de barrar o adversário oriental.
O outro exemplo, também vindo da Alemanha, diz respeito à criação de um fundo para conter compras de empresas nacionais por estrangeiras [https://on.ft.com/2SOl2pG]. Houve quem visse nessa atitude do ministro da economia Peter Altmaier uma defesa da indústria nacional, um caminho que deveria ser seguido pelo Brasil. Vista rapidamente, a atitude é válida. Vista em detalhes, se mostra uma questão mais complexa. Primeiro porque salvar empresas alemãs não implica em salvar empregos na Alemanha. O protecionismo alemão não encontrou críticas a oeste porque, apesar de regra geral, seu alvo é bem específico: barrar as compras de chinesas, cujo modelo "economia dominada pelo estado" acarreta uma competição desigual com modelo de "competição aberta" alemão - em alerta desde a compra da empresa de robótica Kuka, em 2016. A recente compra da alemã Sonnen, do ramo de energia renovável, pela Shell não gerou nenhuma manifestação de preocupação ou crítica quanto a sua aquisição por estrangeiros [https://on.ft.com/2XkVZJB]. A proposta alemã não é nada muito diferente do que explicitado pelo governo Bolsonaro, apenas mais bem elaborado, e com outras significações, dada a importância relativa de ambos os países: barrar o avanço Chinês, custe o que custar. É uma aposta de alto risco, em especial para o Brasil. E o pior: caso ganhe a aposta, não há nenhuma evidência de que isso resultará em ganhos para estes Tristes Trópicos e sua população mais sofrida.

22 de fevereiro de 2019