segunda-feira, 8 de abril de 2019

Uma criança brinca na cidade plúmbea

Nos últimos quatro anos, com o passar do tempo que parece que não passa e o suceder das crises que não se resolvem, apenas são suplantadas por novas crises, o Brasil vai lentamente se desenhando com as cores do Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago. Zanzar por Ésse-Pê prestando atenção às insignificâncias da cidade é ver emergir um cenário pós-apocalíptico enquanto ainda se espera pelo apocalipse. Talvez o Metrô seja onde isso possa ser visto com mais clareza. O meio de transporte que meia década atrás emulava a imagem idealizada da Europa, com seus trens limpos e frescos e seus usuários bem vestidos, é hoje um micro retrato do país - e de projeto de país, ou melhor, de destruição de.
Em meio a atrasos e interrupções da rede - parte por causa do sucateamento promovido por Alckmin-Doria Jr, parte por usuários dando cabo à própria vida embaixo de um trem -, ambulantes interrompem o anúncio de seus (sub)produtos de cinco reais para brigar entre si sobre quem teria o direito de vender naquele vagão, mulheres clamam misericórdia feito leprosos na Idade Média europeia, crianças disfarçam de prata o preto de sua pele e se exibem algo como um Chaplin imberbe e precocemente envelhecidos em sua desesperança, artistas tocam músicas animadas e deixam escapar seu presente despedaçado - todos em busca de qualquer esmola, uma moedinha, um alento para sobreviverem até amanhã e recomeçarem sem pensar que depois de amanhã o futuro será igualmente claustrofóbico, tal qual um Sísifo míope e mutilado. Nos corredores das estações, violinistas do Titanic, arautos do fim do mundo, balas de côco por um real, guarda-chuvas com sotaque francês-africano, pessoas que dormem cobertas com o que têm à mão, enquanto outras ficam paradas em posições estranhas, olhando para o nada, catatônicas - as primeiras esperam a chuva passar, as segundas parecem esperar que o tempo passe, tão somente, até que chegue o nada. Me lembro que cada sociedade produz seus tipos específicos de "loucos" - quais serão os dos próximos anos?
Na estação República, vejo uma cena ao mesmo tempo bonita e triste. Talvez a tristeza não exista, seja projeção minha, de quem ignora a realidade - assim como a beleza que enxergo também é o aflorar de clichês de minh’alma. É um menino negro, cerca de doze anos, roupas simples - mas que indicam que não mora na rua -, uma coroa de princesa na cabeça e uma boneca loira (estilo Barbie). Está muito entretido, os olhos brilham, tem um sorriso sincero de quem realmente se diverte. Brinca alheio aos adultos que passam encharcados de chuva, pressa e angústias (passado a catraca parece haver espaço seguro para que se brinque ou se perca, sem ser perturbado por estranhos ou seguranças). Na sua mão a boneca voa como um super-herói para logo em seguida rodopiar feito bailarina. A beleza está nessa alegria pueril, despreocupada, centrada apenas em brincar. A tristeza que me bate é imaginar quais preconceitos e empecilhos o garoto não teve que enfrentar para poder vestir uma coroa e brincar de boneca, desde o menino não brinca de boneca até a própria dificuldade em adquirir uma, chegando à mais atual: poder ser a criança que desejava apenas já pré-adolescente, quando o esperado seria negar, ao menos em público, que se é criança. Me parece significativo que seja numa estação de metrô, anônimo, e não em um ambiente de família - e emblemático que a poucos passos do Museu da Diversidade. Tanto tempo esperando por um prazer simples.
Reflito um pouco menos melancolicamente a cena vista. Que haja idade certa para viver começar a ter experiências, não discuto, mas que não se possa voltar e fazer coisas que não são consideradas da idade, isso é tão absurdo quanto o quotidiano claustrofóbico dos miseráveis e dos funcionários do Metrô. A criança com coroa de princesa que brinca com a boneca, apesar de já um pouco além da idade que se brincaria assim, talvez seja uma prévia para o que vem depois da epidemia de cegueira, um ensaio sobre a lucidez que, se insistirmos com nossa luta, lograremos encontrar, um pouco fora do tempo certo, mas ainda no tempo de ser aproveitada.

08 de abril de 2019

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