quinta-feira, 25 de setembro de 2003

Sobre o uso de cobaias

Animais há muito tempo são utilizados nas pesquisas científicas. Muitas das inovações da medicina se deram graças ao uso de animais não-humanos como cobaias: podemos citar, entre outras, a descoberta da insulina e a compreensão do funcionamento do nosso sistema imunológico. Poderia a ciência evoluir sem o uso de animais não-humanos? O que justifica o seu uso pelos humanos? Vale a pena o sofrimento causado? Essas são algumas das perguntas que o filósofo Peter Singer se põe no texto "Ferramentas de pesquisa", do livro Animal Liberation, de 1975, reproduzido no livro Vida Ética (editora Ediouro).
O que Singer propõe não é que se pare com todo e qualquer experimento com animais - ele reconhece a importância deles para muitos experimentos - mas sim que se leve em conta também o sofrimento que o animal pode sofrer para os resultados que o teste irá apresentar.
Quando estudante de psicologia na U$P Ribeirão, tive uma matéria chamada psicologia geral experimental em que cada aluno usava um rato para aprender na prática o que era ensinado na teoria. Primeiro ensinávamos o rato a pressionar a barra para beber água, depois desensinávamos o que havíamos ensinado, e ao fim do curso os 40 ratos eram sacrificados. O que aprendíamos com essas "aulas práticas"? A adulterar e forjar resultados, no máximo. De útil mesmo, nada. Não se trata de um exemplo tão cruel quanto os descritos no artigo, mas serve para ilustrar o descaso com a vida que desde o primeiro ano ensinam na universidade.
Descaso com a vida? Talvez eu esteja exagerando, dirão alguns. Provavelmente os nazistas diriam o mesmo àqueles que criticavam as câmaras de gás. Para Singer o especifismo - considerar a vida humana mais valiosa que a dos animais não-humanos - é um preconceito não muito diferente de qualquer outro. Os animais não-humanos utilizados nas pesquisas sentem dor, assim como os humanos; se não verbalizam, demonstram por outros modos. Talvez o fato dos animais não terem a capacidade de pensar e planejar o futuro justifique o seu uso. Mas Singer provoca: que tal um bebê humano, órfão (para não ter qualquer complicações com os sentimentos dos pais), com menos de seis meses? Ele também não consegue fazer planos para o futuro, nem tem quem faça por ele, qual a desculpa para não utilizá-lo? Somente o fato dele ser de uma espécie superior, a espécie humana? E se julgássemos - como já foram julgados - que os negros são uma raça inferior, poderíamos, nós brancos, fazer o que bem entendêssemos com eles?
Para o autor há certos experimentos em que o uso de animais se torna inevitável, e cujos resultados compensam as vidas e o sofrimento empregado. Nesses casos sugere: "uma experiência não pode ser justificável senão quando for tão importante que justifique o uso de um ser humano com lesão cerebral".
E a grande melhoria na qualidade de vida que o uso de animais trouxe? Segundo J.B. McKinlay, S.; M. McKinlay e R. Beaglehole, em obra citada no artigo de Singer, as intervenções médicas foram responsáveis por 3,5% da queda na mortalidade por doenças infecciosas (exceção feita à poliomelite), os outros 96,5% são conseqüência da melhoria da alimentação e das condições sanitárias. Se 3,5% é a contribuição total da medicina, imagine como não será irrisória a contribuição dos experimentos com animais.
Além do mais, nada prova que o que foi descoberto com o uso de animais não poderia ser descoberto sem eles. Talvez levasse mais tempo para certas descobertas, menos para outras, talvez se deixaria de haver certos avanços para ter outros, quem sabe o enfoque da medicina seria outro, mais preocupado em desenvolver fatores para uma vida saudável do que na cura de doenças. Quanto esforço, quanto recurso foram dispensados em experimentos com animais que não trouxeram, ao fim de trinta anos de experimento - como é o caso da depressão induzida citada pelo autor - qualquer proveito que justificasse tamanho sofrimento.
E "aqueles a quem genuinamente preocupa a melhoria do atendimento de saúde fariam, provavelmente, uma contribuição mais eficaz para a saúde humana se deixassem seus laboratórios e providenciassem para que nossos atuais recursos de conhecimento médicos alcançassem os que deles mais necessitam". Respeito a vida é uma questão ética das mais importantes, não importa a
espécie.

Campinas, 25 de setembro de 2003

sábado, 13 de setembro de 2003

Coerência

Parte do movimento estudantil na Unicamp, incluído aí o DCE, tem como uma de suas bandeiras a luta contra o imperialismo estadunidense. O DCE Unicamp tem, inclusive, uma bela camiseta contra a guerra em que aparece a estátua da liberdade empunhando uma metralhadora no lugar da tradicional tocha.
Fora essa há sempre faixas, camisetas e menções de repúdio à ALCA, à tomada da Base de Alcântara entre outros temas. Acho interessante que o movimento estudantil se interesse por temas que vão além da universidade, mas me parece que é dada uma ênfase muito grande a esses temas, deixando de lado temas mais ligados à defesa da universidade pública e a projetos realizados em Campinas. Pelo menos é essa a impressão que o DCE da Unicamp passa a alguém não muito por dentro do movimento estudantil.
E estava eu lépido e faceiro, ou melhor, mal humorado e carrancudo com meu irmão esperando pelo meu pf num restaurante de Barão Geraldo (25 minutos de espera para avisarem que o arroz tinha acabado), quando de repente sentaram-se numa mesa frente a nossa 14 seres humanos da espécie movimentus estudantilis (credo, foi pra isso que eu fiz latim?). Não tenho certeza se faziam parte do DCE ou de algum centro acadêmico, mas pelo menos três deles eu já tinha visto coordenando a assembléia dos estudantes durante a greve. Digamos que não foi uma bela surpresa tê-los em minha frente.
Nada contra eles, muito pelo contrário, admiro muito esse pessoal que participa do movimento estudantil ativamente, tentando fazer sua parte na construção de um país melhor (por mais que muitos achem que eles não saem do lugar, pelo menos eles tentam). Tudo corria bem na mesa em frente, que fazia seus pedidos de pf, para desespero do garçom que não conseguia anotar muito bem os 14 pedidos.
Enquanto isso eu tentava ler a camiseta de um dos cidadãos (um dos que eu havia visto coordenando a mesa da assembléia). Uma camiseta do DCE contra a ALCA. "Pátria livre, venceremos" e "'Fazer é amelhor maneira de dizer' José Marti" eram as frases que havia nas costas dessa camiseta. Fiz questão de anotá-las quando a mesa pediu as bebidas: duas Pepsi e uma Fanta.
Questão de gosto, dirão muitos. Se eles preferem Fanta e Pepsi, deixe que bebam. E foi o que eu fiz, afinal, que poderia eu fazer? Mas não deixa de ser contraditória a cena com a camiseta usada por um deles (e com a qual a maioria, se não todos, devem concordar). Camiseta contra os anseios imperialistas estadunidenses na América Latina e Coca-Cola Company em cima da mesa? Parece que eles nunca atentaram para a camiseta: "Fazer é a melhor forma de dizer". Esperar que grandes atos contra a ALCA e os EUA, marcados por palavras de ordem, façam com que eles se sensibilizem e pensem melhor o que querem fazer com o mundo não me parece muito frutífero se não for acompanhado do hábito de contestar todos os dias, nos pequenos gestos, a arrogância dos EUA. Aos que não acreditam que isso tenha algum efeito prático, circulou na internet há algum tempo um e-1/2 do Instituto de Defesa do Consumir (Idec) com exemplos concretos de boicotes que tiveram resultados. Boicotar os produtos estadunidenses é pouco, sem dúvida, bem menos que derrubar o World Trade Center, mas se todo mundo fazer esse pouco pode estar contribuindo pra que o mundo seja um pouco mais justo (fim de crônica manjado este, mas é verdade).

Campinas, 13 de setembro de 2003