sexta-feira, 3 de outubro de 2003

Unicamp S.A.

Saiu no Jornal da Unicamp: os alunos passarão a usar um cartão magnético no lugar do tradicional cartão de RA (registro acadêmico). O jornal colocou, inclusive uma foto do "Cartão Universitário Inteligente": logomarca da Unicamp, foto do aluno, nome do aluno, logomarca do Banespa e da Visa. É a privatização da universidade pública saindo das bordas e chegando no recheio.
Alguns professores já haviam comentado com os alunos as novas diretrizes da Unicamp, quanto ao relacionamento dos professores com os clientes. CLIENTES! Agora estudante da Unicamp é cliente. Será que os professores também vão ter de ficar sempre com sorriso de atendente de McDonald's? Já não bastavam os cursos de extensão pagos (como de línguas e de esportes) e o projeto "Unicamp pernas abertas", como os alunos carinhosamente chamavam ao grande feirão que a Unicamp tem se transformado, com quiosque itinerante do banco Real, que caminha pela universidade vendendo conta bancária, e com revenda de carros no pátio da universidade.
Mas voltemos ao cartão. O "objetivo da troca [dos tradicionais cartões pelos magnéticos] é a facilitar o cotidiano de estudantes e funcionários". Afinal, o cartão, além de identificação servirá como cartão de débito e futuramente pode servir como cartão de crédito. Quem sabe não se possa pagar as mensalidades com ele? Além disso o cartão ajudará no controle dos alunos e funcionários (clientes?), ressalta o jornal. Ótimo. Primeiro repassam os dados dos clientes para um banco privado (tem gente que ainda acredita que o Banespa seja estadual), depois controlam (a palavra controle foi usada cinco vezes num texto de uma página) toda sua vida dentro do campus (se comeu no Bandejão, que livros tirou na biblioteca, quais xerox tirou) e fora dele (o que comprou no mercado, quanto gastou em passagens, etc). Coisa pra fazer inveja a 1984.
O custo, de R$ 2 milhões foi pago pelo Santander-Banespa, e não será repassado para a Unicamp ou para os alunos num prazo de cinco anos (depois disso, sabe-se lá o que diz o acordo firmado, algo que o jornal não traz à tona; pode ser que passe a cobrar taxa de manutenção ou qualquer coisa do gênero).
O jornal comenta que o cartão já foi implantado na Unesp e na Unisinos. Mas esquece que na Unesp de Araraquara (pelo menos é o que corre na boca dos alunos), os alunos tomaram o Bandejão por uma semana, auto-gerindo-o, em protesto contra o implantação do dito cartão.
Vamos ver se os alunos da Unicamp vão preferir continuar sendo alunos ou vão preferir ser clientes.

Campinas, 03 de outubro de 2003

quinta-feira, 25 de setembro de 2003

Sobre o uso de cobaias

Animais há muito tempo são utilizados nas pesquisas científicas. Muitas das inovações da medicina se deram graças ao uso de animais não-humanos como cobaias: podemos citar, entre outras, a descoberta da insulina e a compreensão do funcionamento do nosso sistema imunológico. Poderia a ciência evoluir sem o uso de animais não-humanos? O que justifica o seu uso pelos humanos? Vale a pena o sofrimento causado? Essas são algumas das perguntas que o filósofo Peter Singer se põe no texto "Ferramentas de pesquisa", do livro Animal Liberation, de 1975, reproduzido no livro Vida Ética (editora Ediouro).
O que Singer propõe não é que se pare com todo e qualquer experimento com animais - ele reconhece a importância deles para muitos experimentos - mas sim que se leve em conta também o sofrimento que o animal pode sofrer para os resultados que o teste irá apresentar.
Quando estudante de psicologia na U$P Ribeirão, tive uma matéria chamada psicologia geral experimental em que cada aluno usava um rato para aprender na prática o que era ensinado na teoria. Primeiro ensinávamos o rato a pressionar a barra para beber água, depois desensinávamos o que havíamos ensinado, e ao fim do curso os 40 ratos eram sacrificados. O que aprendíamos com essas "aulas práticas"? A adulterar e forjar resultados, no máximo. De útil mesmo, nada. Não se trata de um exemplo tão cruel quanto os descritos no artigo, mas serve para ilustrar o descaso com a vida que desde o primeiro ano ensinam na universidade.
Descaso com a vida? Talvez eu esteja exagerando, dirão alguns. Provavelmente os nazistas diriam o mesmo àqueles que criticavam as câmaras de gás. Para Singer o especifismo - considerar a vida humana mais valiosa que a dos animais não-humanos - é um preconceito não muito diferente de qualquer outro. Os animais não-humanos utilizados nas pesquisas sentem dor, assim como os humanos; se não verbalizam, demonstram por outros modos. Talvez o fato dos animais não terem a capacidade de pensar e planejar o futuro justifique o seu uso. Mas Singer provoca: que tal um bebê humano, órfão (para não ter qualquer complicações com os sentimentos dos pais), com menos de seis meses? Ele também não consegue fazer planos para o futuro, nem tem quem faça por ele, qual a desculpa para não utilizá-lo? Somente o fato dele ser de uma espécie superior, a espécie humana? E se julgássemos - como já foram julgados - que os negros são uma raça inferior, poderíamos, nós brancos, fazer o que bem entendêssemos com eles?
Para o autor há certos experimentos em que o uso de animais se torna inevitável, e cujos resultados compensam as vidas e o sofrimento empregado. Nesses casos sugere: "uma experiência não pode ser justificável senão quando for tão importante que justifique o uso de um ser humano com lesão cerebral".
E a grande melhoria na qualidade de vida que o uso de animais trouxe? Segundo J.B. McKinlay, S.; M. McKinlay e R. Beaglehole, em obra citada no artigo de Singer, as intervenções médicas foram responsáveis por 3,5% da queda na mortalidade por doenças infecciosas (exceção feita à poliomelite), os outros 96,5% são conseqüência da melhoria da alimentação e das condições sanitárias. Se 3,5% é a contribuição total da medicina, imagine como não será irrisória a contribuição dos experimentos com animais.
Além do mais, nada prova que o que foi descoberto com o uso de animais não poderia ser descoberto sem eles. Talvez levasse mais tempo para certas descobertas, menos para outras, talvez se deixaria de haver certos avanços para ter outros, quem sabe o enfoque da medicina seria outro, mais preocupado em desenvolver fatores para uma vida saudável do que na cura de doenças. Quanto esforço, quanto recurso foram dispensados em experimentos com animais que não trouxeram, ao fim de trinta anos de experimento - como é o caso da depressão induzida citada pelo autor - qualquer proveito que justificasse tamanho sofrimento.
E "aqueles a quem genuinamente preocupa a melhoria do atendimento de saúde fariam, provavelmente, uma contribuição mais eficaz para a saúde humana se deixassem seus laboratórios e providenciassem para que nossos atuais recursos de conhecimento médicos alcançassem os que deles mais necessitam". Respeito a vida é uma questão ética das mais importantes, não importa a
espécie.

Campinas, 25 de setembro de 2003