segunda-feira, 24 de maio de 2004

A volta da política?

Já dizia o velho ditado, há males que vêm para o bem. Assim também é o caso da invasão do Iraque pelo “cute” Bush. Claro que os males não compensam nem de perto os benefícios, mas vale ressaltá-los.
Era percebido antes de Bush assumir um movimento nos países industrializados de questionamento da globalização, principalmente. Com a invasão do Iraque tivemos grandes manifestações de massa em vários países europeus, numa clara demonstração de que os governantes agiam contra o povo que deveriam representar, culminada com os ataques de 11 de março, as marchas contra o terrorismo, e a derrota do partido situacionista na Espanha.
As imagens das torturas nas prisões iraquianas feitas pelos soldados estadunidenses, apesar de não resultar em grandes manifestações como com a invasão, chocaram grande parte dos países do globo. Um dos países menos afetados pelas imagens foram os próprios EUA. Compreensível. O filósofo Peter Singer já alertava que o fato de não se dar um valor igual à todas as vidas (a vida humana vale mais que a dos demais animais), o que autoriza os humanos a realizar experiências desnecessárias com animais, estava a um passo de descambar para o nazismo ou uma ação semelhante. Eu acrescentaria que o valor da vida não está dividida somente entre vida humana e vida não-humana, mas, numa gradação, vai da vida humana de primeiro mundo, não-humana de primeiro mundo, humana de terceiro mundo e não-humana de terceiro mundo. Ou seja, a vida do prisioneiro iraquiano torturado até a morte vale menos que a do cachorrinho do “cute” Bush (o qual não me lembro agora o nome), que possui uma página na internet atualizada diariamente.
Não obstante o fato da vida dos cidadãos de países pobres valerem menos, a indústria cultural estadunidense, desde o fim do comunismo, reforça dia sim, outro também, a imagem dos árabes de destruidores da civilização. Nada mais natural (e justo) que um cidadão que não vale muito e que é malvado por natureza seja torturado ou morto sem qualquer remorso (como atesta a foto sorridente da soldada estadunidense Sabrina Harman ao lado de um prisioneiro morto). Apesar que a tortura de árabes não deveria ser tão chocante assim, afinal a prática era permitida por lei até 1999 no Estado de Israel.
De todo essa merda, eis que parece surgir um mundo mais politizado, pelo menos nas metrópoles. Exemplo disso é a vitória no principal festival de cinema do mundo, o Cannes (festival de cinema entendido como arte e não como indústria, como no caso do Oscar) do filme de Michael Moore sobre o 11 de setembro e seus desdobramentos (com cenas, inclusive, de torturas nas prisões iraquianas), e o filme de Walter Salles sobre a viagem do Che Guevara pela América do Sul, apesar de não ter ganho, ter sido muito aplaudido e considerado um dos favoritos.
As pessoas têm percebido que é preciso mais que as ações conscientes para uma grande mudança no mundo (apesar que sem estas qualquer mudança é impossível), e que devem se interessar pela política institucional, que bem ou mal ainda influencia muito as condições de vida no mundo.
Pena que num país atrasado como o nosso (e não é baixa auto-estima como diz nosso presidente), ainda estejamos longe de qualquer sinal de mudança, seja em relação às ações conscientes, seja em relação à política institucional, mesmo por parte mais ilustrada da população.

Campinas, 24 de maio de 2004

Duas conversas

A Unicamp esta semana continua no clima da passada, ninguém sabe direito o que há, e todos tem um palpite para dar. Primeiro a crise do ônibus da moradia, em que parte dos moradores da moradia estudantil, em apoio (ou seria com o apoio) da reitoria, resolveram excluir aqueles que não conseguiram auxílio moradia do circular interno (que é gratuito) para a universidade, que fica há uns três ou quatro quilômetros de distância. Deprimente pensar que a suposta elite intelectual do Brasil tenha capacidade de apoiar medidas segregacionistas como essa. Mais deprimente ainda quando se atenta para o fato de que os excluídos são do mesmo nível social que os favoráveis à segregação, tomam banho, usam desodorante e escovam os dentes tais quais aqueles que se sentem no direito de pegar ônibus de graça. Alguma idéia do que pessoas como essas fazem com aquelas que estão abaixo do seu nível social?
Outro zumzumzum que circula pelo campus é sobre a greve dos funcionários e professores, diante da proposta infame (na verdade infame é pouco) de 0% de reajuste agora e começo de discussão da questão salarial em novembro. A reunião tanto dos funcionários quanto dos professores é amanhã, e acredita-se que a greve acontecerá realmente. Greve não é algo que possamos dizer “que legal, greve!”, mas é um recurso necessário, um dos poucos que existem, para pressionar quem manda a atender um pouco os de baixo. No caso, a greve seria para tentar adiar por um tempinho extra o sucateamento ensino público superior.
O instituto que estudo, o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, é naturalmente o epicentro dos movimentos de greve, seja de professores, seja de alunos. Mas eis que estava eu no IFCH e acabo escutando uma conversa que corria ao meu lado: uma aluna da ciências sociais (um curso questionador e reivindicatório por natureza) me solta a pérola tradicional das engenharias e medicina: “não quero perder minhas férias por uma bobagem dessas”. A guria, que já não tinha muito meu respeito, perdeu toda e qualquer credibilidade comigo. Mas greve é assim mesmo, sempre tem aqueles que furam, por mais que se digam conscientes (pior são aqueles que furam greve e não admitem serem assim chamados, justificando que uma greve só tem legitimidade quando todos a seguem ou algo do gênero).
Essa conversa da moça da sociais teria acabado com meu dia se antes, no bandejão, eu não estivesse escutado um outro diálogo que transcorria o meu lado. Eram dois estudantes do Instituto de Artes, um piá e uma guria. Quando sentei ao lado deles, o rapaz falava da sua decepção e falta de maturidade: não tinha entrado numa universidade somente para tirar o diploma (de músico, no caso), percebia que a universidade tinha muitos problemas (um que ele assinalou era o fato de que o jovem tem que decidir muito cedo qual carreira seguir) e não queria sair dela sem ter melhorado alguns pontos que ele julgava necessário. Entretanto, lamentava a falta de maturidade para propor alguma ação, e mesmo para perceber certas falhas que estavam ao seu alcance e ele só percebia tarde demais. Na esteira da conversa, ela, já formada, comentava do concurso para professora de uma escola pública, no qual tinha passado para a segunda fase, mas que por causa de uma pós acabou desistindo do emprego, sem sequer ter feito a segunda fase. Estava muito decepcionada com isso, porque queria dar aula em escola pública, achava que levava jeito, gostava, e queria muito repassar o que havia aprendido na graduação, mas preferiu continuar na universidade, com medo de que caso quisesse fazer uma pós mais tarde não conseguiria.
Escutei por uma boa meia hora a conversa dos dois, bem que eu queria ter dito qualquer coisa para eles: “não desanimem”, mas fiquei com vergonha de me intrometer numa conversa particular. Fiquei feliz em ver aqueles dois conversando, querendo contribuir com a sociedade, indo além do mundinho pequeno e estreito da classe média; a vontade de mudar o mundo, a hesitação de algumas horas (será que meu trabalho isolado pode trazer alguma mudança?), típica de quem quer mudar o mundo a partir do quotidiano, sem dogmas, aprendendo junto com a prática. Nada de ficar esperando as condições anunciadas pelo profeta para começarem a agir exatamente como ele anunciou que deveria ser.
Sei que em todas as áreas – medicina, engenharia, economia, dança, química, arquitetura – existem pessoas dispostas a sacrificar o conforto para ajudar de alguma forma a sociedade, mas essas pessoas são minoria, e é sempre bom escutar uma conversa dessas de algum desconhecido ao seu lado, ainda mais quando esse alguém está disposto não somente a falar e a agir, mas a escutar e refletir.
Aos dois que estavam sentado ao meu lado só posso dizer: não desanimem, continuem com seus planos, seus ideais, vocês estão no caminho certo (mesmo que não saibam ao certo que caminho é que escolheram).

Campinas, 24 de maio de 2004