quarta-feira, 8 de setembro de 2004

Comentário sobre o artigo “Uma outra sociabilidade”, de J. A. Giannotti

No caderno Mais! do jornal Folha de São Paulo do dia 5 de setembro há um interessante texto do filósofo da USP e do CEBRAP José Arthur Giannotti, intitulado “Uma outra sociabilidade”, em que o autor trata da relativização do que é legal e legítimo na sociedade atual. Um tema deveras muito interessante, abordado de maneira competente, mas que, a meu ver, desliza em alguns aspectos, os quais pretendo levantar aqui.
O exemplo que ele usa para ilustrar seu artigo é o de uma mulher que após interrogar às pessoas que caminhavam em certa praça se usariam a prancha de abdominais deita-se nela para ler um livro. Segundo Giannotti a mulher desrespeitou uma regra social ao deitar-se na prancha, visto que tal fim não lhe era propício. Mas ao haver questionado se alguém usaria a prancha, e sendo a resposta negativa, seu ato se tornaria (na visão da mulher) legítimo, pois não se sobrepôs à vontade de ninguém - se alguém pedisse a prancha para fazer abdominais a mulher cederia.
Giannotti se questiona: após a consulta a mulher adquire o direito (os termos são de minha responsabilidade) de deitar-se na prancha para ler? Apesar de ilegal, seria um ato legítimo? E se alguém quisesse usá-la para o fim destinado mas tivesse vergonha de pedi-lo? Continuaria sendo legítimo? Fala o filósofo: “No entanto, diante da pergunta a respeito de como seu ato se determinaria diante dessa dualidade, é quase certo que a moça responderia que não agiu legalmente, mas em vista de uma legitimidade que, invocada, não se apoiaria numa lei moral universal, mas numa universalização e validação de uma situação particular. Note-se que não reivindicaria para si uma exceção, que vem a ser, nos ensina Kant, fonte de imoralidade”.
Como o próprio autor fala, essa particularização das leis cria uma multiplicidade de alternativas no mundo que não cabe em um código de leis, e inclusive vai contra o princípio de universalidade deste, já que não há um paradigma a ser seguido, a não ser o de que cada caso é um caso único que deve ser resolvido conforme suas variáveis. Agir assim não é imoral, mas tampouco moral. Exemplos mais práticos e visíveis que seguem essa linha “relativista” enumeradas por Giannotti: a pirataria de produtos culturais, ONGs como o Greenpeace, o MST, e o caso de contrato informal de trabalho. Este último caso foi discorrido melhor, e é onde encontramos alguns equívocos que acabam levando o autor a uma visão parcial do problema por ele mesmo posto. Diz ele: “Quando o empregador e o empregado realizam um contrato informal de trabalho, a despeito de reconhecerem as leis trabalhistas, simplesmente não se vêem como exceção à regra, como se ela não devesse lhes ser aplicada. É por uma necessidade social que agem desse modo, pois, de outro, não poderiam sobreviver socialmente (...). Quando firmam um contrato de trabalho sem o amparo da lei trabalhista, não a renegam, mas, igualmente, não retornam ao nível da insociabilidade completa, da luta de um contra todos ou ainda do trabalho escravo” (grifos meus). Que o empregado aceite um contrato de trabalho à margem das leis trabalhistas entende-se perfeitamente o porquê disso ser feito por necessidade social, mas não compreendo a necessidade social do empregador agir assim. Há exceções, é claro, micro-empresas que possuem um ou dois funcionários e que não têm condições de bancar os encargos tributários; mas a regra é que o empregador age assim para aumentar seus lucros, recaindo, muitas vezes, no trabalho escravo, como no caso dos bolivianos ilegais em São Paulo noticiado há pouco, ou como ilustra o filme inglês “Coisas belas e sujas” (Dirty pretty things), de Stephen Frears, na cena em que a imigrante turca ilegal (interpretada por Audrey Tautou), super-explorada no trabalho, é obrigada a fazer sexo oral todo dia no dono da fábrica para que não perca o emprego nem seja dedurada à polícia.
Giannotti não percebe, mas há uma certa relação entre o pensamento político de Maquiavel e esse adaptar-se a cada situação (que ocorre dentro de certos parâmetros, é sempre bom frisar). Isso se tomarmos por política todo o ato em sociedade, e não simplesmente as ações restritas aos órgãos oficiais designados para tanto. Para o pensador florentino do século XVI na política (a política de estado, oficial, visível, a do príncipe) há certos parâmetros que norteiam as ações do governante. Norteiam para onde devem convergir as ações, mas não quais são essas ações: pode-se agir de formas opostas em situações equivalentes, e assim deve ser, já que o objetivo da política é atingir certos fins (daqui surge a equivocada máxima “os fins justificam os meios” e a idéia de que Maquiavel não possui ética). Claro que no caso da prancha de abdominal (ou no das ONGs) não se trata de razão de estado, mas de individualismo burguês, presente na obra do citado Kant, crescente após a segunda guerra mundial e hipertrofiado com o neoliberalismo - o que faz com que as idéias de Maquiavel para o estado não sejam transpostas para a sociedade civil sem as devidas adaptações. No caso da prancha de abdominal há uma ética de respeito ao direito do próximo que está além da lei formal, visto que a lei pode ser relativizada caso não interfira no direito do próximo, um caso particular que se sobrepõe ao universal: “Reconhece a validade da norma moral e jurídica, mas a aplica reformulada para que valha num universo particularizado, no contexto de pessoas sempre negociando entre si”. Como dito, a prática maquiaveliana de “cada caso um caso”, junto ao individualismo liberal da negociação entre sujeitos.
É claro que essa forma de agir da sociedade civil frente às leis estatais tem seus pontos positivos e negativos. Giannotti preferiu se deter em um ponto específico - não sei se por não considerar as demais conseqüências dessa outra sociabilidade menores, ou o que - a que chamou de “zona de violência difusa”. “Esse tipo de raciocinar e agir aumenta a incerteza, faz com que o medo e a violência espreitem nas zonas de interferência de cada esfera particular”. Giannotti vê isso negativamente, responsável por criar uma zona de violência difusa, que está se interiorizando, e a qual não sabemos ainda controlar (se alguém mais esquentado resolver dar uns sopapos porque a moça está lendo no lugar em que ele queria fazer abdominal, como reagir?). Na minha visão o termo “zona de violência difusa” poderia ser substituída por “zona de conflito difuso”. Essa zona, a princípio, tende a ser benéfica, desde que o conflito não decaia na violência.
Retomo Maquiavel e Nietzsche, autores que tem o conflito, o combate, como inerente à vida social-humana, em vista da própria dinamicidade e complexidade do mundo e das pessoas. Depois do enfraquecimento da utopia marxista da sociedade sem conflitos, vemos ruir a utopia dos conservadores de uma ordem pacífica e inviolável, graças aos ataques terroristas (a imagem de um avião bomba deitando abaixo um edifício é ilustrativa do agir terrorista), e a essa nova sociabilidade, que age como cupim nas estruturas do edifício.
Outro ponto que considero positivo dessa sociabilidade é o fato da sociedade civil passar a agir de forma mais efetiva, reivindicando direitos, agindo, se preciso, em oposição ao Estado: “Percebe-se que esse tipo de sociabilidade tende a ver a lei oriunda do contrato originário como necessidade vindo de fora, imposição”. Esses novos direitos adquiridos tendem a contemplar mais a sociedade civil e sua diversidade, visto que nasceram realmente dela, por uma pressão popular organizada.
Entretanto essa particularização da lei tem também seus contrapontos maléficos. Numa sociedade marcada pela divisão de classes e por poderes muito díspares entre estas, disparidades potencializadas pela globalização (falei sobre isso na crônica “Capital 1 x 0 Trabalhadores”), a possibilidade de capital e trabalho negociarem fora do guarda-chuva da lei torna os trabalhadores reféns do capital, compelidos a aceitarem tudo o que lhes for imposto, visto que a lei que diminuía essa diferença de poder entre as partes é reconhecida mas não aplicada. No Brasil temos como exemplo o projeto de flexibilização das leis trabalhistas.
É muito interessante a questão da nova sociabilidade e da zona de violência difusa ou zona de conflito levantada pelo filósofo, e ela merece ser melhor observada e trabalhada. Entretanto, creio ser um tanto quixotesco se pautar tanto em Kant para tratar dessa questão, como fez Giannotti. A utilização da Crítica da Razão Prática como livro acessório na abordagem do tema é importante, mas a ausência de um olhar mais acurado da relação de forças entre as classes sociais e os atores sociais acaba por levar a análise a um plano distante da vida quotidiana, chegando a conclusões que não condizem com o que temos observado no mundo atual.

Pato Branco, 08 de setembro de 2004

domingo, 29 de agosto de 2004

Vítimas sem voz, carrascos sem rosto

Não há palavras par descrever a barbárie cometida contra moradores de rua em São Paulo nos últimos quinze dias. É-me difícil de conceber que estamos nesse ponto e que ainda não chegamos ao extremo. Já temos em nosso país o que há de pior da África, temos nosso pequeno inferno, será que ainda chegaremos a ter nosso campo de concentração?
Não vou tentar aqui traduzir o que sinto, mas levantar alguns pontos secundários que têm me incomodado.
O primeiro é que a única falha que os “faxineiros da sociedade” cometeram foi a de atacar tantas pessoas (pessoas? exemplares da espécie biológica homo sapiens sapiens) de uma só vez. Sabemos que moradores de rua sofrem muitas agressões, mas não temos idéia de qual a dimensão delas. Lembro na ocasião do assassinato do índio em Brasília (que segundo nosso atual ministro da justiça não foi culpa dos meninos, que só queriam se divertir, e não matar o índio) foi aquele barulho: um índio! morto queimado! Dias depois começaram a surgir notas nos jornais comentando de moradores de rua que também tinham sido queimados enquanto dormiam. Duas semanas depois e ninguém lembrava mais do índio e não se lia mais notas de moradores de rua queimados.
Com o assassinato em série em São Paulo começam a surgir todos os dias notas de outros moradores de rua mortos em todos o país: Recife, Belo Horizonte, Sorocaba. No último caso temos a dimensão da cobertura que a mídia dá a esses crimes quotidianamente: um morador de rua foi assassinado numa construção abandonada no subúrbio da cidade, no mesmo lugar em que outro morador de rua havia sido morto dois meses atrás. Posso não ter percebido, mas não recordo de nenhuma nota falando do primeiro assassinato (fiz uma rápida pesquisa na página da Folha de São Paulo e não encontrei qualquer referência). O caso de São Paulo só foi notícia porque foram 16 agredidos em duas noites. Fosse em doses homeopáticas - um por dia -, no máximo, no máximo, depois da décima-sexta morte sairia uma nota no canto do jornal dizendo que brigas entre moradores de rua causava outra morte. De qualquer forma, podemos esperar que em quinze dias em nosso país reinará novamente a paz, sem nenhum morador de rua sendo agredido.
O outro ponto que me chamou a atenção é o das suspeitas levantadas assim que aconteceu a primeira chacina: briga entre moradores, grupo de extermínio contratado pelos comerciantes da região ou grupos intolerantes. A primeira e a terceira suspeitas são “naturais”: a primeira é ótima pra encerrar logo a conversa, são pobres, eles que se entendam, nós não temos nada a ver com isso. No máximo nos incomodamos quando sujam a calçada em frente ao nosso prédio com sangue. A terceira é algo que se deve sempre cogitar, pelo menos enquanto tivermos a lembrança do século XX bem fresca em nossa memória: grupos intolerantes (geralmente ligados à ideologia de extrema-direita) são um fenômeno que pode ocorrer em todos os países ocidentais capitalistas, independente do grau de “civilidade” dele, temos desde os exemplos da França, da Alemanha, dos EUA, de Israel aos do Brasil, da Argentina e das guerras “tribais” africanas. A segunda suspeita é que faz-nos pensar. Por mais que tal suspeita se comprove falsa, “absurda”, como os comerciantes a qualificaram, ela mostra a que nível chegamos. O absurdo não está em levantar a suspeita, mas na simples possibilidade da suspeita poder ser levantada. Para tornar mais claro meu raciocínio, é como se um dos suspeitos fosse a igreja católica: chegasse a esse ponto e teríamos a certeza de que a igreja vivia numa total decadência moral, por mais que a suspeita se mostrasse falsa (atenção, este raciocínio não vale para pessoas!). O filme “O homem do ano” trata do assunto de maneira bem direta: o apoio dado por doutores, empresários, policiais, delegados a grupos de extermínio, que atuam sob a fachada de empresa de segurança privada.
Hoje na Unicamp tive um exemplo de porquê o caso de São Paulo não nos surpreende realmente: realizávamos uma reunião do grupo de alfabetização do qual faço parte e um hippie se acercou e ficou por ali, enquanto discutíamos, intervindo vez ou outra. Demorou pouco para a segurança da universidade perguntar se era aluno da Unicamp (é sempre bom lembrar, para os próprios alunos, inclusive, de que a Unicamp é um local público, em que todos podem passear à vontade pelas áreas abertas) e o que ele fazia ali. Disse que estava conosco e foi “liberado”. Pouco depois sumiu e voltou com uma cana, foi a deixa para três seguranças chamarem-no para uma conversa em particular. Exigiram que ele saísse do campus, mas ele disse que estava conosco; os seguranças vieram perguntar-nos se era verdade, e dissemos que sim (podia não ser do grupo, mas estava ali conosco). Quiseram o aluno responsável pela reunião, mas dissemos que não havia. Foram embora prometendo voltar para tomar as atitudes devidas, felizmente não voltaram. Detalhe: os seguranças que exigiam nomes e documentos estavam sem identificação.
Exagero comparar os assassinos dos moradores de rua de São Paulo com os seguranças da Unicamp? Sem dúvida, mas guardada as proporções o princípio é o mesmo. Qual o meio para os moradores de rua - pejorativamente e erroneamente chamados de mendigos - exprimirem suas reivindicações? Quem da elite está disposto a escutar as reclamações dessas pessoas? Quem foram os assassinos dos moradores de rua de São Paulo? De que adiantou o hippie dizer que estava conosco se os seguranças só pararam de persegui-lo depois que nós, filhos da pequena burguesia branca e escolarizada, dissemos que estava conosco mesmo? E se nós não estivéssemos ali e os seguranças resolvessem usar a violência física contra o jovem, quem eram os seguranças para ele poder fazer queixa depois?
Ah esse nosso país de sombras e surdos...

Campinas, 29 de agosto de 2004