terça-feira, 1 de abril de 2008

As pessoas-camundongo

No ônibus da moradia, dia desses, um rapaz e uma guria - creio que do Instituto de Artes, mas isso pouco importa - conversavam. Peguei a conversa com o rapaz enunciando uma série de brindes que havia ganho: xampu da marca tal, sabonete qual, loção de barba outra, outras tranqueiras do gênero e R$ 150,00 em vale compras no shopping. De início achei que ele havia ganho em algum sorteio, mas não. Diante da empolgação da guria com os brindes, arrematou: ganhava tudo aquilo e não precisava fazer nada, só provar uns produtinhos.
A garota seguia empolgada: "é tão legal ser cobaia humana". O rapaz concordou. Mas ela queria mesmo ser cobaia de remédio. Chegou a lamentar não ter uma doença para poder sê-lo, mas o rapaz disse que não precisava estar doente e falou que tinha contato para isso também. Procurou nas suas coisas a carta de recomendação, mas só achou a de produtos de beleza. Entregou-lha e reiterou que valia a pena; que, caso não fosse selecionada, dariam a ela cinco reais, o que já era lucro. Falou como se esses R$ 5,00 dessem para fazer grandes compras (e não só para pagar o ônibus até lá), e que fossem realmente a troco de nada.
A garota agradeceu a carta e a conversa encetou pela de cobaia de remédio. Para mim, o uso de cobaia humana, ainda que indignante, não é novidade - longe disso, já até saiu na imprensa, há alguns anos, reportagem sobre. Por um tempo tive razoável contato com estudantes de medicina, e sei o quanto estes não fazem um dinheirinho extra emprestando seus organismos à "ciência". Trata-se de algo sempre ocultado - óbvio -, mas que nos deixa alarmados, quando ficamos sabendo: se um estudante de medicina, que corrido seis anos será "doutor", não vê problemas em tomar remédio mesmo não tendo comprovadamente nada, não verá problemas em receitar remédio para qualquer dor de cabeça que diagnostique.
Minha ingenuidade foi a de imaginar que essas cobaias eram recrutadas prioritariamente nas faculdades de medicina e farmácia. Ingenuidade mesmo, e grande! Se hoje tomar Prozac é sinal de status, algo a ser alardeado com orgulho, e como se isso não fosse sinônimo de doença (curioso que nunca vi ninguém orgulhoso de estar tomando remédio para vermes ou hemorróidas. Acho que isto dá uma boa crônica), por que alguém vai achar ruim em tomar um comprimido qualquer, e ainda ganhar R$ 800,00 ou mais em um final de semana?
Talvez minha grande perplexidade na conversa das duas pessoas-camundongo tenha sido essa vontade de ser cobaia, de emprestar o corpo e a saúde para ser prova de testes. E fazê-lo não por certo ideal, por amor à ciência, por certa esperança em um remédio que é prometido como revolucionário, por amor à humanidade, ou mesmo que somente pelo dinheiro. Essa vontade de ser cobaia me parece antes um desamor ao próprio corpo, um desdém à própria saúde. Vivemos em uma sociedade que não titubeia em negar a saúde em nome de um corpo visualmente "bonito", por que, então, não emprestar as entranhas em troca de uma bolada que vai me permitir comprar roupas de marcas que vão me deixar "bonito" (talvez não por acaso que as duas pessoas que serviram de móvil a esta crônica fossem tão ligadas a marcas)? Não deixando marcas ou cicatrizes visíveis, e pagando bem (ou R$ 5,00, já está valendo), que mal tem? Não diz o ditado, "o que os olhos não vêem, o coração não sente"?


Campinas, 01 de abril de 2008

domingo, 23 de março de 2008

Esquecer para não sofrer

Fato tão banal no mundo: o término de um relacionamento. Daí a pergunta tão banal quanto: o que fazer? Banal, mas longe de ser simples. Em uma sociedade em que estar triste por mais de um dia é doença; em que não se sabe lidar com perdas ou com fins – a não ser quando final seja o do “felizes para sempre”, ou seja, um não-final –; o dia seguinte ganha, geralmente, proporções um tanto exageradas.
É curioso que tais proporções não atingem somente quem tomou o pé na bunda, mas, não raro, também quem deu o pé na bunda. Como diz Tanizaki: “o divórcio é uma experiência triste”. Creio que isso deva em parte por causa da dificuldade geral em lidar com qualquer fim, em parte por conta de certa preocupação e consideração pelo outro, em parte por certo narcisismo, em parte por uma concepção de amor romântico absurda mas amplamente difundida e defendida, como mostra o psicanalista Jurandir Freire Costa, por exemplo, em seu livro Sem fraude nem favor.
Independente das causas, está ali uma situação em que a pessoa, triste pela sua situação, precisa tocar a vida em frente. Mas como fazê-lo, se o peso do outro e do relacionamento recém-desfeito ainda impede os movimentos? Alguns vão se fechar na sua dor, “curtir um pouco a fossa”, como se diz comumente, fazer o luto, como se fala no jargão psicanalítico, para depois, já mais leves desse peso, porem a vida novamente na marcha desejada (se é que é possível a vida seguir na marcha que desejamos). Outros tentarão negar o relacionamento e a pessoa, em uma atitude bastante ressentida, no melhor estilo “ex bom e é ex morto”, como diz uma comunidade do Orkut. Haverá ainda aqueles que simplesmente descartarão o que acabaram de viver, como se fosse uma pilha já sem carga, e partirão para outro relacionamento, quase que instantaneamente. Em comum a todos esses casos, a necessidade de livrar o presente do espectro do outro e do relacionamento terminado. Porém, há uma sensível diferença entre fazer o luto e simplesmente esquecer. O filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, de 2004, dirigido por Michel Gondry, escrito em parceria com Charlie Kaufman e Pierre Bismuth, entra na minha lista de bons filmes que conseguem tratar do tema de maneira interessante.
No filme um tratamento permite que as pessoas apaguem uma paixão frustrada da sua memória, evitando assim toda a dor e sofrimento que sua lembrança possa trazer. Após o tratamento as pessoas saem limpas, puras, virgens (não vou lembrar bem os termos usado no filme, mas a idéia é esta) para seguirem com suas vidas. Eis o sonho de muitas pessoas: sem o cinismo herdado de cada amor, como já alertava Cartola, estarmos aptos a nos apaixonarmos de novo com todas as nossas forças, como se fosse a primeira vez. Quantas vezes já não ouvi elegias para o primeiro amor, aquele tão puro, sincero, verdadeiro e intenso? E olha que nem sou psicanalista, nem nada.
E, se ainda não existe qualquer tratamento que nos permita reviver a cada relacionamento o primeiro amor, creio que muitos ainda investem energias nesse sentido, como a tentativa de esquecer, ao invés de se fazer o luto. Vejo dois problemas principais dessa tentativa: primeiro que acredito que em 99% dos casos ela não funciona, pois o passado que não foi fechado não se torna passado, mas um fantasma que ronda à espreita, aguardando o melhor momento para reaparecer e perturbar o presente (A liberdade é azul, do Kielowski, é outro filme que aborda bem esta questão); segundo porque na impossibilidade de se voltar à pureza e à virgindade do primeiro amor, a única coisa que se consegue manter de semelhante é a imaturidade. E assim a pessoa está apta a quebrar a cara como da outra vez, e reforçar sua crença de que o que rege o amor é o cinismo. Com tal atitude, evita-se parar para refletir como foi o relacionamento, quais as expectativas e as possibilidades, quais os erros e os acertos, pois isso poderia fazer com que a pessoa admitisse que o que ela esperava estava muito além do que alguém poderia oferecer; que o amor talvez não seja um perfeito mar de rosas, mas um caminho pedregoso, confuso, complicado, com suas belezas e seus incômodos, em que é preciso, muitas vezes, ceder a troco de nada e sem achar que se trate de um ato heróico ou sublime, mas simplesmente de uma necessidade imposta pelo momento, em que optamos por aceitar. Enfim, teria de assumir a responsabilidade por seus atos.
Voltando ao filme. Ainda bem que, a despeito de todo o avanço da indústria farmacêutica, ainda não chegamos ao estágio do tratamento proposto pela Clínica Laguna: significa que ainda nos resta a esperança de sermos donos da nossa história e, quem sabe, das nossas vidas: uma porta para o amadurecimento que ainda permanece aberta. Agora, se o amor resiste a tudo, quando encontramos nossa cara-metade, ou estamos predestinados a alguém, isso fica por conta do clichê romântico que não conseguimos abandonar tão fácil, muito menos no cinema.

Campinas, 23 de março de 2008