sábado, 4 de setembro de 2010

Pára, que pode ser que o cachorro te morda

Já é de longa data que não acredito na pureza da infância. Que as crianças sejam castas, tudo bem: dizem que faz bem ao desenvolvimento psicológico e emocional. Mas santas puras castas e ilibadas, como pretendem as mães sobre seus pimpolhos, aí é forçar a barra. Inclusive, duvido que as mães realmente acreditem nessa pavada. Não que eu ache que a criança se corrompa ao sair das entranhas da mãe, não. Até porque não sou simpático a teorias sobre a natureza humana – seja a bondade ou a maldade inata.

Já teve vez que quase cheguei a ficar com medo de crianças. Foi depois de ler O marinheiros que perdeu as graças do mar, do Yukio Mishima. Crianças nada puras, nada santas, e sem qualquer justificativa social, como em Os capitães da areia, do Jorge Amado. Apenas sadismo.

A lembrança de Mishima não é sem propósito. Voltava para casa no início da noite e me deparei com duas crianças com seus cinco, seis anos, brincando de bater ou atirar garrafas pets vazias em dois cachorros de pequeno porte, acuados contra o portão de casa. Tinha sérias intenções de parar e perguntar o porquê deles estarem fazendo aquilo, se achariam graça se fossem eles os acuados. Perguntaria de boa, mais para ver se se tocavam. Quando eu me dirigia a eles, porém, a mãe de um mandou que parassem com aquilo: “Pára, que pode ser que o cachorro te morda”.

Fiquei perplexo diante do argumento e preferi seguir meu rumo. O problema de maltratar os animais era que eles poderiam se rebelar e devolver os mal-tratos! O sadismo e a covardia da brincadeira não mereciam qualquer menção! Pode-se argumentar que a questão do especismo é pouco conhecida, discutida, e muito difícil de ser lidada – os veganos que o digam.

Porém, na sociedade atual, os animais não são alvos exclusivos desse tipo de brincadeira. O bullying entre crianças ou atear fogo em pobre, como muitos jovens gostam de brincar, mostram que o que presenciei não era algo atípico, apenas de pouca importância por não se tratarem de pessoas. Ou melhor, por não se tratarem dos cachorros ou dos filhos daquela mãe que gritou ao filho “Pára, que pode ser que o cachorro te morda”.

Campinas, 04 de setembro de 2010.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Literatura de esquerda com moral da história

Esta semana fiz uma coisa que até então eu só fizera uma vez na vida: parar de ler um livro no meio. Claro que eu só poderia ter feito isso em vida! Quando mais seria, sendo que nunca morri e nem acredito que se possa fazer algo depois de morto, a não ser por procuração? Enfim, volto à interrupção. Não que eu ache isso uma heresia ou uma profanação, não. Minha questão é que costumo ter boa vontade para com a literatura, sempre acredito que ela, mesmo não sendo boa, não é perda de tempo.

O primeiro livro que desisti antes do fim foi Diário de um magro, do Mário Prata, isso já vai pra mais de dez anos. Não lembro de nada do livro, só que achei ele muito, mas muito ruim. O eleito desta vez foi Fausto Wolff e seu À mão esquerda. Não achei o livro ruim – fraquinho, não recomendaria, porém ruim não é–, mas ao chegar na página 200 me dei por satisfeito, decidi que pouco teriam a me acrescentar as 300 páginas restantes – ainda mais quando em minhas prateleiras Vila-Matas, Perec, Pinilla e Campos de Carvalho me esperam. Contou também para minha decisão, admito, o fato de Wolff ou seu livro não serem tidos por obra ou autor de referência – motivo pelo qual me arrastei dolorosamente até o fim do On the road, do Kerouac. Quem sabe se ele tivesse morrido há mais tempo. Por fim, ainda que não fosse motivo para interromper a leitura, me sinto aliviado por não prosseguir por aquela história de um anti-herói exemplar, da luta do bem contra o mal, com moral da história ao fim de cada capítulo (cheguei ao trigésimo).

Por sinal, isso me intriga: por que tantos escritores de esquerda se vêem necessitados de escrever histórias com moral, não raro explicitando-a? Uns o fazem de maneira mais elaborada (Steinbeck), outros, mais tosca (Brecht), mas no fundo são devotos enrustidos pregando uma moral cristã-católica, com o reino dos céus reservado para os pobres – boas almas ilibadas e sofredoras – assim que a revolução chegar. Por conta disso, apesar de gostar de Steinbeck, não raro prefiro autores conservadores, como Borges ou Nelson Rodrigues, justo por eles conseguirem de maneira bem mais profunda nos instigar a pensar, a questionar e – por que não – a desejar uma revolução, um mundo radicalmente diferente.

Campinas, 18 de agosto de 2010.