segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Política ou polícia: as tais “lições de democracia”, novamente na USP.

Neste domingo de carnaval, 19 de fevereiro de 2012, mais uma vez a Tropa de Choque da Polícia Militar de São Paulo tomou a fresca da madrugada na Universidade de São Paulo [http://j.mp/yd0p10]. Chegou às cinco horas da manhã para desocupar meia dúzia de saletas que há quase dois anos eram ocupadas por estudantes que reivindicam aumento de vagas na moradia estudantil – o CRUSP –, distribuindo democraticamente violência, inclusive deixando sua marca em uma mulher grávida. Diz a polícia que apenas se utilizou da força necessária para se defender. Para uma polícia com longa lista de "mortes em conflito" e acusações de violações de direitos humanos, podemos deduzir que bala de borracha seja coisa leve.

Contrariamente à ocupação da reitoria, em novembro de 2011, não havia nenhum motivo que pudesse ser alegado “forte” para desocupação do prédio: o Moradia Retomada, definitivamente, não atrapalhava em nada as atividades burocráticas, administrativas ou pedagógicas da universidade. Não eram vagabundos, baderneiros, maconheiros, irresponsável, pelo contrário: conseguiam uma organização, e tinham um senso de responsabilidade – individual e coletivo – que a USP tem se mostrado falha em muitos aspectos. Mas a lei é a lei, dirão alguns, defensores da ordem e do progresso, ignorando que se a lei fosse a lei para sempre, a escravidão ainda estaria em vigência, e não teríamos tido FHC, Lula ou Dilma na condução do país, e sim Dom Luís Gastão Maria José Pio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orléans e Bragança e Wittelsbach – apesar que, com o pensamento político visceral que parece ser a regra hoje nestes tristes trópicos, muitos devem encarar esse futuro do pretérito como virtuoso.

Como no Brasil o que temos é um arremedo de segunda linha do programa Renda Básica Cidadã (ou Renda Mínima), vinculado ainda ao que (não) ganha uma pessoa, o auxílio estudantil se torna um imperativo não apenas do ponto de vista individual, como do próprio critério de excelência acadêmica: alguém preocupado com onde morar, ou morando precariamente, tende a ter dificuldades para se concentrar nos estudos. Inclusive nesses ranqueamentos que mídia e academia de país subdesenvolvido adoram, índice de desistência do curso é algo levado em conta.

Não é demais repetir, entretanto, que a universidade pública brasileira – as paulistas acima de tudo – é feita pela elite e para a elite, para a perpetuação da elite. Os órgãos de assistência à ciência, idem. Pretendo tratar em mais detalhes deste assunto em crônica posterior.

Na semana anterior foi noticiado parceria entre USP e SPTrans, para que haja um circular que faça o trajeto USP-Estação Butantã do metrô gratuitamente para alunos e funcionários. Primeiro aspecto a ser lembrado: originalmente deveria haver uma estação de metrô dentro do campus, ela não existe porque a universidade vetou – não imaginemos que seja um disparate de uma burguesia burra e preconceituosa as reações contra as estações em Higienópolis ou no Morumbi. Segundo ponto: já que a estação fica fora do campus e haverá uma linha que fará a ligação direta entre esses dois pontos, por que não estender a gratuidade a todos os que desejam ir até a USP, seja para pesquisar, para usar a biblioteca, para vender artesanato, para catar latinhas, para passear, para ir ao MAC? No que custará a mais para USP ou SPTrans cinqüenta pessoas ao invés de dez num ônibus? Contudo, sabe-se bem quanto custará a mais para essas pessoas. Isso para não falar no aspecto simbólico: apesar de não ser inibidor dessas pessoas sem direito legal ao templo sagrado do conhecimento freqüentarem-no, ter que pagar a integração com o ônibus, ou mesmo fazer uma caminhada de vinte minutos para chegar à USP, serve para deixar claro que não são bem vindas. Lugar de povo é na cidade; na USP, acadêmicos e pessoas em seus carros, em trânsito para os bairros nobres que a cercam.

Volto à questão inicial, a nova ação do Choque na USP. Ou melhor: a nova ação do Choque em ação de contestação política. Já é assustador notar que se trata de política deliberada – política de governo – do PSDB paulista massacrar (não, o termo massacre não é pesado) qualquer contestação política e social que não seja feita nas instâncias “apropriadas”: via representantes nas casas legislativas – nas quais, diante das manobras e dos acordos entre cavalheiros que ocorrem a rodo, contestações ou são abafadas, ou são risíveis. Ainda mais aterrador é esse padrão se repetir com tamanha naturalidade na USP, teoricamente centro de excelência da ciência e do pensamento tupiniquim. Apesar de não ser o reitor mais votado – Serra escolheu o segundo na lista tríplice –, Rodas recebeu votos: possuía apoio, portanto, quando assumiu o cargo. E ainda que seu apoio seja precário – e ele e seu grupo o administra muito mal –, houve poucas manifestações contundentes e em peso dos seus pares – professores da USP – pelas atitudes que vem tomando – desmandos que vão bem além da questão da ação policial.

Não se pode chamar Rodas de fascista, simplesmente – até porque o fascismo é um fenômeno político bem delimitado na história –, mas as semelhanças que ele guarda com o movimento do início do século são evidentes, e coadunam com a idéia de universidade defendida pela elite ilustrada e pela Grande Imprensa: o tecnocratismo levado ao extremo da negação radical da política – via perseguições internas ou via polícia. A passividade dos professores apenas reforça essa impressão. Não se trata aqui de encampar o tosco discurso “quem defende a universidade não deve ser punido”, afinal, não há um absoluto do que seja a defesa da universidade, mas saber que dissenção é parte da política e da ciência – goste-se ou não, ambas estão fortemente vinculadas. Assumir o debate e a negociação – que não devem ser confundidos, o primeiro com o é assim, entendeu?, a segunda com você faz do meu jeito e estamos todos bem – é fator vital para o crescimento da própria universidade, e até, quem sabe, para uma futura inserção de fato desta na vida quotidiana do país – inserção essa, espero, que não seja para calcular o gás mais agressivo sem ser letal, se é que ser letal de vez em quando não caia bem, a depender sobre quem.


São Paulo, 20 de fevereiro de 2012.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Sta. Cecília - Luz - Liberdade - Paulista

Combinei de encontrar um desconhecido às 13h na estação Santa Cecília. Ele vinha de Barão e tinha um presente que uma amiga me dera: babosa – desde que a Anvisa proibiu a comercialização de derivados da planta, anda difícil achar o concentrado que tomava, e o último que encontrei estava com ágio de 50%. Me entregou o pacote e fomos a um restaurante ali perto, almoçar e conversar um pouco – brasilianista, faz doutorado e é professor (no sentido português do termo) na Universidade de Nova Iorque. Conversamos sobre São Paulo, viagens e algumas questões acadêmicas, políticas, marxistas – ele conhece meu orientador da monografia.

De lá fui à Pinacoteca do Estado, onde vi as exposições de Eliseu Visconti, Joaquín Torres Garcia e “Percursos e Afetos – Fotografias, 1928/2011” – a única que realmente me interessou, em especial as fotos do fotógrafo Boris Kossoy –, além do trabalho Mausoléu, de Carlos Bunga, que me trouxe algumas reflexões.

Da Pinacoteca, aproveito o ensejo para saciar minha índole consumista, e dou um passeio pela famigerada região da Luz, em busca de um fone e uma extensão para ele, na Santa Ifigênia. Antes, uma rápida volta pelo Parque da Luz, que eu nunca tinha ido – me lembrou o passeio público, em Curitiba, mas não tão bem cuidado.

Cruzo a Estação da Luz, o piano, como sempre, sendo tocado, com uma pequena platéia em volta – não páro, e de passagem não consigo identificar o que está sendo tocado. Do outro lado, noto menos mendigos à porta da estação - mas seguem lá. Enquanto transito pela região, não tem como não lembrar do polêmico projeto da Nova Luz e seus últimos desdobramentos: a política higienista para limpar a área dos nóia e do populacho, para deixar o terreno livre à especulação imobiliária. Dizem que se trata de "revitalizar". Realmente, há locais ermos e mortos, mas em uma boa parte possui vida – e muita – pulsando nas ruas. Passeio pelas galerias da av. Santa Ifigênia, em busca dos tais fones, mas pensando que eu bem poderia ter dinheiro pra comprar umas câmeras de segurança pra fazer o filmete que uma vez tive idéia – a câmera de segurança apenas pela questão estética. Noto que se coço a barbicha ao entrar nos locais me abordam com mais freqüência: abandono o expediente. No caminho, uma senhora trova um policial militar, que a trata de uma maneira bem diferente da imagem que a PM paulista tem conseguido passar – conversam sobre o Big Brother, se bem entendi. Na loja onde vou comprar o fone, a mulher conversa sobre seus planos de fazer lipo e pôr silicone – com o médico da Mulher Samambaia, sabe. Comenta que já teve dois filhos, agora pode se dedicar a isso. Seu interlocutor diz que tem um contato melhor, que ao invés de 16 faz tudo por 12 mil, e ainda parcela em seis vezes.

Saio da Santa Ifigênia, pela Av. Ipiranga chego à São João. Ali páro pra tomar um mate e descubro onde comprar erva-mate argentina – a um preço nada argentino. Não compro porque acredito ainda ter um pacote na casa dos meus pais. 

Meio perdido de onde estou – sei que em algum canto eu devo dar na Consolação, que vai dar na casa do Cássio –, decido tentar chegar à Sé, como sempre. Sigo em frente e me deparo com a Galeria Olido, ao lado a Galeria do Rock, que uma vez entrei e nunca mais achei. Desta vez não acho a camisa do Paraná Clube a preço interessante, mas descubro que ela fica bem mais perto da Sé do que eu imaginava – e saio de lá desconfiado de que da próxima vez vou ter dificuldade em encontrá-la de novo, se não pesquisar no mapa antes.

Já no centrão de São Paulo, me vem aquele espanto de sempre: como a cidade é bonita! Ao menos enquanto tem gente – e acho que é isso que faz a beleza de São Paulo –, pois a vez que passei ali já depois do expediente, soava quase uma cidade deserta, não era bonita. Decido ir até o Patéo do Colégio – nunca passara por lá. No caminho, uma pedinte, já com mais de sessenta anos, cabelos brancos, me chama atenção pela beleza e garbosidade. Atrás da Sé, enquanto espero o sinal pra pedestre abrir, um homem berra num megafone que foi roubado pelo Bradesco, isso pode acontecer com você também. Uma prostituta compra café de um vendedor ambulante de bolos e afins.

Na Liberdade, entre a Galvão Bueno e a São Joaquim, uma mocinha, seus dezessete, dezoito anos me abora, está vendendo canetas. Já a imagino voluntária de alguma instituição de recuperação de drogados. Na verdade é voluntária do CAIC – não, não se trata da escola inspirada nos CIEPS da dupla Brizola-Darcy Ribeiro, e sim de uma instituição que quer salvar os valores da família. Não, obrigado, não concordo com os valores da família – lembrei da minha babosa na hora: será que em breve serei eu um novo drogado a atentar contra os valores da família e da sociedade? Quer dizer que não concorda com os valores normais? Então tá, e já se vira para oferecer caneta a outro passante – me arrependo de ter sido tão breve, poderia ter enrolado um pouco mais a moça, só para deixá-la em contradição.

Passo pelo Centro Cultural São Paulo, ver a programação. Na entrada, um homem me lembra o Hugo, que mora comigo, mas um pouco mais maduro – na casa dos seus trinta anos. Descubro a parte de teatro que está fechada para reforma. Presencio a cena de um senhor em “roupas de aposentado”, que dava pinta de morar pela região do Paraíso, Aclimação, jogando xadrez com um hippie – um fazedor/vendedor ambulante de artesanato.

Atravesso a ponte da 23 de março. Pouco à frente, rio com um namorado que beijava insistentemente sua garota, e dá uma pequena pausa, apenas para ver se não vai trombar em poste algum e se depara com uma loira bronzeadíssima, de belas formas que andava na minha frente, e não consegue disfarçar a olhada. Antes de voltar aos beijos insistentes na namorada, ainda a observa de rabo de olho. Espero o sinal abrir para atravessar a rua e chegar, finalmente, à Paulista. Dali escuto de algum canto sinos badalando as dezoito horas. Uma madame, num carrão, acompanhada de um homem e um cachorrinho, resolve não esperar pelo próximo sinal e pára em cima da faixa de pedestre. Me dou conta de que só corro perigo se a mulher estiver disposta a sacrificar seu carro, não acredito na hipótese, e enquanto serpenteio pelo carro pra atravessar a rua, singelamente a cumprimento com o dedo médio – tomo apenas cuidado para ver se não vai mesmo jogar o carro pra cima de mim, não presto atenção em nada mais dela: uma boa desfeita deve ser feita sem se preocupar com a reação. 
 
Atravesso a Paulista quase inteira, desço a Haddock Lobo, cruzo com algumas mulheres bonitas no caminho, nenhuma parecida com a Carla Bruni.

São Paulo, 15 de fevereiro de 2012.