domingo, 22 de julho de 2012

Como irritar pessoas (revisitado)– apresentação de dança

Reconheço, quando mais jovem eu era um velho rabugento e chato [j.mp/cG151001]. Agora, beirando os trinta, sigo um velho rabugento, mas menos, tanto velho (ao menos quesito "velho de espírito"), quanto rabugento (por conseqüênica, até). No quesito chato, sim, eu mudei: não que tenha deixado de sê-lo, apenas mudei minha chatice de situações. E não sei se por estas semanas estou um pouco mais irritadiço, ou se tenho tido sorte, mesmo.

Ao assistir à ultima apresentação do Balé da Cidade de São Paulo, no Theatro Municipal, me lembrei da esquete de John Cleese, do Monthy Pyton, "How to irritate people", quando ele fala do cinema. Não costumo ir muito a cinemas, mas apresentações de dança tenho me esbaldado como nunca este ano, desde que me mudei pra São Paulo. Tenho, logo, algum repertório de como irritar pessoas numa apresentação de dança – no caso, por ser uma das pessoas perturbadas e não perturbadoras. Eu bem poderia falar de jovens que querem aparecer mais do que quem está apresentando, mas sigo a esquete do Cleese, e prefiro falar de senhoras já de uma certa idade – coincidentemente três se sentaram ao meu lado no Municipal.


Não reparei bem na forma das senhoras, se se pareciam com saleiros ou o que, para seguir a esquete desde o início, pulemos para dentro da sala de espetáculo.

Conversas banais antes de começar a apresentação. Até aí, tudo bem. Muito normal, nada a reclamar – nem mesmo da conversa, que não tinha nada no esquema "bandido bom é bandido morto", "empalamento das aborteiras", "você viu na Veja?", ou coisas do gênero.

Soa o terceiro toque para o início da apresentação. É dado o aviso das saídas de incêndio, o pedido para que celulares sejam desligados. As luzes se apagam, as cortinas se abrem, o espetáculo começa. (Para poupar espaço, abreviemos as senhoras ao meu lado como V1, V2 e V3, na ordem de frase dita, e não para me referir a cada uma delas, que não fiquei reparando quem dizia o que).

Primeiro, elas reagem com alguma organização:
V1 – Começou!
V2 – Vai começar!
V3 – Sim, começou!

Então, não chegam a fazer um minuto de silêncio, e comentam algo sobre a dança:
V1 – Estão todos de terno!
V2 – É... todos de terno!
V3 – Sim, todos!
No caso, todos os bailarinos e bailarinas estavam vestidos de terno.

Logo a seguir, uma delas lembra que se esqueceu de desligar o celular:
V1 – Esqueci de desligar o celular!
V2 – Então desligue!
V3 – Sim, desligue!
V1 – Vou desligar.
A velhinha ao meu lado tira seu celular da bolsa, e antes de desligar, confere ver se não tem mensagem ou ligação nova, com ele virado para meu rosto. Quase um minuto depois, desliga a porcaria do aparelho.
V1 – Pronto!
V2 – Desligou?
V1 – Desliguei.
V2 – Ah, que bom!
V3 – Sim, que bom! Porque senão pode tocar...
V1 – Não mais.
V2 – Ah, que bom!

Pronto, posso começar a assistir à apresentação concentrado e tranqüilo, penso, ingenuamente. Elas seguem fazendo comentários, mal passa um minuto em silêncio:
V1 – Aquele cabeludo é muito bom!
V2 – Qual?
V1 – O cabeludo.
V2 – Ahhh...
O tal "cabeludo" devia ser uma das bailarinas, já que os bailarinos tinham todos cabelo curto.

Um instante um pouco maior de silêncio, deve chegar a três minutos, e novos comentários:
V1 – Como é escuro.
V2 – Muito escuro.
V3 – Sim, muito escuro.
Se referiam à iluminação da coreografia, que fazia uso um tanto acentuado do breu, até pra construir uma atmosfera pesada.

Talvez por não conseguir pensar em novo assunto e longe demais para reparar nos detalhes, a senhora exatamente ao meu lado – a mesma do celular – resolve limpar as mãos em um lenço de papel muito barulhento. Lentamente o tira da bolsa. Lentamente começa a limpar as mãos. Olho para ela uma vez. Segue limpando - lentamente, imaginando que assim não faz muito barulho nem incomoda os outros (quero crer na minha polianice). Olho outra vez, parece que percebeu meu olhar de pouco amigos, mas segue limpando (lentamente). Olho novamente, e desta feita resolve guardar o lenço – lenta e calmamente, com muito barulho.

Limpava as mãos, é claro, porque não iria levar comida à boca com elas sujas. Tira da bolsa balas e oferece às outras senhoras:
V1 – Quer bala?
V2 – Eu quero!
V3 – Bala?
V1 – Sim, bala.
V3 – Não, "obrigado" [sic].
V1 – Não mesmo?
V3 – Não, "obrigado" [sic].
Então as duas senhoras muito discretamente abrem as embalagens individuais de suas balas, no mínimo três minutos para desembrulhar aquelas embalagens barulhentas e discretamente guardarem o papel de bala na bolsa.

Passam um tempo em silêncio – creio eu que acompanhando a dança e procurando assunto:
V1 – Música cansativa.
V2 – Sim, cansativa.
O detalhe: a trilha sonora da coreografia era feita apenas por "barulhos" – vamos assim chamar –, não sei se as senhoras estavam a par de música eletroacústica para considerá-la música, mas a chamaram assim.

Mais um período em silêncio. A senhora ao meu lado não chega a roncar plenamente, mas ouço seu ressonar do sono de uma pessoa cansada – afinal, a música... 

Paz! Mas por alguns instantes.

Pouco antes do final, uma das senhoras se levanta, e falando sussurrante para não incomodar quem está atrás:
V1 – Vou embora.
V2 – Já?
V1 – Sim, já.
V2 – Não vai ver a outra coreografia.
V1 – Não, vou embora.
V2 – Então tchau.
V1 – Tchau.
V3 – Tchau.
V1 – Tchau. Bom espetáculo.
V2 – Obrigada.
V3 – "Obrigado" [sic].
V1 – Com licença, com licença.

Nem cinco minutos depois a coreografia se encerra.

São Paulo, 22 de julho de 2012.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Das coisas que não entendo

Caminhava rumo à Galeria Olido, sábado. Na Rua da Consolação, no cruzamento com o viaduto Nove de Julho, uma SUV ultrapassa em alta velocidade um carro comum, ocupado por quatro homens. “Viados-filho-da-puta”, gritam de dentro do carro. “Apenas outra troca de carícias no trânsito”, penso. Então reparo que a ofensa não é para a SUV apressada em buscar a mãe na zona, mas para um casal de homens que caminha de mãos dadas. Não entendo – e me choco, em resquícios da minha caipirice que crê num mundo harmônico, ainda que na roça não fariam muito diferente diante de um casal homossexual – a ofensa gratuita para alguém absolutamente indiferente. Lembro do que minha mãe costuma dizer, que “quem muito prega, pouco crê”. Imagino que não é difícil acontecer dos machões do carro irem da ofensa à agressão, simplesmente por rejeitar o que é diferente, o Outro.

Não entendo.

Não entendo como uma cidade pode ter o melhor do cosmopolitismo e o mais precário do provincianismo. Pior: como uma cidade pode ter o pior dos dois. Não entendo porque demorei tanto pra me mudar pra São Paulo, e como suportei tanto tempo Barão Geraldo e Campinas. Não entendo Serra e Russomano serem líderes na disputa pela prefeitura nas últimas pesquisas de intenção voto. Não entendo como a polícia pode matar oito pessoas em quatro horas e isso não causar a queda de, no mínimo, o secretário de segurança e toda a cúpula da PM – para não dizer do governador do Estado (entendo que na mesma semana a mesma PM saia matando publicitários e outros jovens, mais bem nascidos). Não entendo como os ditos “cidadãos de bem” podem defender o atire antes, pergunte depois (ou desculpe-se, como nos casos mais recentes). Como não entendo a academia, devastando florestas para produzir pilhas de estudos sobre violência e não conseguir impôr sequer o debate (mais que tardio) sobre a existência de uma polícia militar numa democracia. Também não entendo o pensamento binário de boa parte da academia e dos chamados intelectuais tupiniquins. Não entendo porque ser professor universitário ou âncora de tv é condição homologadora de seriedade para qualquer pataquada dita. Não entendo o que seria um Estado “laico-cristão”, e não entendo porque sopão aos pobres seria uma ofensa aos valores desse Estado (apesar da segunda explicação da prefeitura ser bem razoável).

Não entendo porque carro é a vaca sagrada no Brasil, e não entendo porque o Estado é invasor do direito individual ao tentar evitar números de guerra civil de mortos no trânsito – mortes e mutilações plenamente evitáveis, mas que preciso ler, quase diariamente, de motoristas bêbados que atropelam inocentes.

Não entendo a instalação sendo feita em frente a praça Roosevelt, nem se é por um artista plástico bem de vida ou mendigo. Não entendo um grupo de turistas orientais abestalhados em frente a um açougue. Não entendo porque as personagens femininas do Haruki Murakami me atraem tanto. Não entendo a queda brasileira por filas.

Não entendo porque virou ritual entrar com pacote de pipoca fedorenta no cinema e mastigar de boca aberta. Não entendo pessoas que vão a danças ou concertos para bater papo ou ficar mexendo no celular. Não entendo certas coreografias que assisto (mas não é por isso que deixo de achá-las boas por isso). Como não entendo as mulheres (e quando acho que as entendo, descubro que não entendo mais do que achava que não entendia). Não entendo como duas pessoas acabam por se encontrar, numa seqüência de acasos que remonta ao dia em que cada uma nasceu. Não entendo porque acho poético o silêncio de um casal terminando (não quando estou envolvido), o momento em que parece abrir um abismo entre as duas pessoas – talvez seja a impressão que me passa (e que também não entendo) de que uma mágica, um milagre está à espreita nesse instante de abismo.

Não entendo o porquê de uma crônica que diz algumas coisas que não entendo. Mas não entendo nem a mim mesmo. Minha cara de paisagem, meu traquejo diplomático para certas situações e minha completa falta de jeito para outras (quando diplomacia não serve).

O que tenho compreendido é que com uma coisa que não entendo aqui, outra que não consigo achar sentido acolá, com algo que poderia esclarecer mas prefiro deixar na sombra, a vida vai ganhando contornos mais coloridos, vai se tornando mais cheia de surpresa, mais rica, mais plena, mais interessante – diferentemente de quando eu tinha uma opinião formada sobre tudo.


São Paulo, 17-20 de julho de 2012.

ps: ok, eu poderia não entender um pouco menos as mulheres.