Caminhava rumo à Galeria Olido, sábado. Na Rua da Consolação, no
cruzamento com o viaduto Nove de Julho, uma SUV ultrapassa em alta
velocidade um carro comum, ocupado por quatro homens.
“Viados-filho-da-puta”, gritam de dentro do carro. “Apenas
outra troca de carícias no trânsito”, penso. Então reparo que a
ofensa não é para a SUV apressada em buscar a mãe na zona, mas
para um casal de homens que caminha de mãos dadas. Não entendo –
e me choco, em resquícios da minha caipirice que crê num mundo
harmônico, ainda que na roça não fariam muito diferente diante de
um casal homossexual – a ofensa gratuita para alguém absolutamente
indiferente. Lembro do que minha mãe costuma dizer, que “quem
muito prega, pouco crê”.
Imagino que não é difícil acontecer dos machões do carro irem da
ofensa à agressão, simplesmente por rejeitar o que é diferente, o
Outro.
Não entendo.
Não entendo como uma cidade pode ter o melhor do cosmopolitismo e o
mais precário do provincianismo. Pior: como uma cidade pode ter o
pior dos dois. Não entendo porque demorei tanto pra me mudar pra São
Paulo, e como suportei tanto tempo Barão Geraldo e Campinas. Não
entendo Serra e Russomano serem líderes na disputa pela prefeitura
nas últimas pesquisas de intenção voto. Não entendo como a
polícia pode matar oito pessoas em quatro horas e isso não causar a
queda de, no mínimo, o secretário de segurança e toda a cúpula da
PM – para não dizer do governador do Estado (entendo que na mesma
semana a mesma PM saia matando publicitários e outros jovens, mais
bem nascidos). Não entendo como os ditos “cidadãos de bem”
podem defender o atire antes, pergunte depois (ou desculpe-se, como
nos casos mais recentes). Como não entendo a academia, devastando
florestas para produzir pilhas de estudos sobre violência e não
conseguir impôr sequer o debate (mais que tardio) sobre a existência
de uma polícia militar
numa democracia. Também não entendo o pensamento binário de boa
parte da academia e dos chamados intelectuais tupiniquins. Não
entendo porque ser professor universitário ou âncora de tv é
condição homologadora de seriedade para qualquer pataquada dita.
Não entendo o que seria um Estado “laico-cristão”, e não
entendo porque sopão aos pobres seria uma ofensa aos valores desse
Estado (apesar da segunda explicação da prefeitura ser bem
razoável).
Não entendo porque carro é a vaca sagrada no Brasil, e não entendo
porque o Estado é invasor do direito individual ao tentar evitar
números de guerra civil de mortos no trânsito – mortes e
mutilações plenamente evitáveis, mas que preciso ler, quase
diariamente, de motoristas bêbados que atropelam inocentes.
Não entendo a instalação sendo feita em frente a praça Roosevelt,
nem se é por um artista plástico bem de vida ou mendigo. Não entendo um grupo de turistas orientais abestalhados em frente a um açougue. Não entendo porque as personagens femininas do Haruki Murakami me atraem tanto. Não entendo a queda brasileira por filas.
Não entendo porque virou ritual entrar com pacote de pipoca
fedorenta no cinema e mastigar de boca aberta. Não entendo pessoas
que vão a danças ou concertos para bater papo ou ficar mexendo no
celular. Não entendo certas coreografias que assisto (mas não é
por isso que deixo de achá-las boas por isso). Como não entendo as
mulheres (e quando acho que as entendo, descubro que não entendo
mais do que achava que não entendia). Não entendo como duas pessoas
acabam por se encontrar, numa seqüência de acasos que remonta ao
dia em que cada uma nasceu. Não entendo porque acho poético o silêncio de um casal terminando (não quando estou envolvido), o momento em que parece
abrir um abismo entre as duas pessoas – talvez seja a impressão
que me passa (e que também não entendo) de que uma mágica, um
milagre está à espreita nesse instante de abismo.
Não entendo o porquê de uma crônica que diz algumas coisas que não
entendo. Mas não entendo nem a mim mesmo. Minha cara de paisagem,
meu traquejo diplomático para certas situações e minha completa
falta de jeito para outras (quando diplomacia não serve).
O que tenho compreendido é que com uma coisa que não entendo aqui,
outra que não consigo achar sentido acolá, com algo que poderia
esclarecer mas prefiro deixar na sombra, a vida vai ganhando contornos
mais coloridos, vai se tornando mais cheia de surpresa, mais rica,
mais plena, mais interessante – diferentemente de quando eu tinha
uma opinião formada sobre tudo.
São Paulo, 17-20 de julho de 2012.
ps: ok, eu poderia não entender um pouco menos as mulheres.
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