Reconheço,
quando mais jovem eu era um velho rabugento e chato [j.mp/cG151001]. Agora, beirando
os trinta, sigo um velho rabugento, mas menos, tanto velho (ao menos
quesito "velho de espírito"), quanto rabugento (por
conseqüênica, até). No quesito chato, sim, eu mudei: não que
tenha deixado de sê-lo, apenas mudei minha chatice de situações.
E não sei se por estas semanas estou um pouco mais irritadiço, ou
se tenho tido sorte, mesmo.
Ao
assistir à ultima apresentação do Balé da Cidade de São Paulo,
no Theatro Municipal, me lembrei da esquete de John Cleese, do Monthy
Pyton, "How to irritate people", quando ele fala do cinema. Não costumo ir muito a
cinemas, mas apresentações de dança tenho me esbaldado como nunca
este ano, desde que me mudei pra São Paulo. Tenho, logo, algum
repertório de como irritar pessoas numa apresentação de dança –
no caso, por ser uma das pessoas perturbadas e não perturbadoras. Eu
bem poderia falar de jovens que querem aparecer mais do que quem está
apresentando, mas sigo a esquete do Cleese, e prefiro falar de
senhoras já de uma certa idade – coincidentemente três se
sentaram ao meu lado no Municipal.
Não
reparei bem na forma das senhoras, se se pareciam com saleiros ou o
que, para seguir a esquete desde o início, pulemos para dentro da
sala de espetáculo.
Conversas
banais antes de começar a apresentação. Até aí, tudo bem. Muito
normal, nada a reclamar – nem mesmo da conversa, que não tinha
nada no esquema "bandido bom é bandido morto",
"empalamento das aborteiras", "você viu na Veja?",
ou coisas do gênero.
Soa o terceiro toque para o início da apresentação. É dado o aviso
das saídas de incêndio, o pedido para que celulares sejam
desligados. As luzes se apagam, as cortinas se abrem, o espetáculo
começa. (Para poupar espaço, abreviemos as senhoras ao meu lado
como V1, V2 e V3, na ordem de frase dita, e não para me referir a
cada uma delas, que não fiquei reparando quem dizia o que).
Primeiro,
elas reagem com alguma organização:
V1 –
Começou!
V2 –
Vai começar!
V3 –
Sim, começou!
Então,
não chegam a fazer um minuto de silêncio, e comentam algo sobre a
dança:
V1 –
Estão todos de terno!
V2 –
É... todos de terno!
V3 –
Sim, todos!
No
caso, todos os bailarinos e bailarinas estavam vestidos de terno.
Logo
a seguir, uma delas lembra que se esqueceu de desligar o celular:
V1 –
Esqueci de desligar o celular!
V2 –
Então desligue!
V3 –
Sim, desligue!
V1 –
Vou desligar.
A
velhinha ao meu lado tira seu celular da bolsa, e antes de desligar,
confere ver se não tem mensagem ou ligação nova, com ele virado para meu rosto. Quase um minuto depois, desliga a porcaria do
aparelho.
V1 –
Pronto!
V2 –
Desligou?
V1 –
Desliguei.
V2 –
Ah, que bom!
V3 –
Sim, que bom! Porque senão pode tocar...
V1 –
Não mais.
V2 –
Ah, que bom!
Pronto,
posso começar a assistir à apresentação concentrado e tranqüilo,
penso, ingenuamente. Elas seguem fazendo comentários, mal passa um
minuto em silêncio:
V1 –
Aquele cabeludo é muito bom!
V2 –
Qual?
V1 –
O cabeludo.
V2 –
Ahhh...
O tal "cabeludo" devia ser uma das bailarinas, já que os bailarinos
tinham todos cabelo curto.
Um
instante um pouco maior de silêncio, deve chegar a três minutos, e
novos comentários:
V1 –
Como é escuro.
V2 –
Muito escuro.
V3 –
Sim, muito escuro.
Se
referiam à iluminação da coreografia, que fazia uso um tanto acentuado do
breu, até pra construir uma atmosfera pesada.
Talvez por não conseguir pensar em novo assunto e longe demais para reparar nos
detalhes, a senhora exatamente ao meu lado – a mesma do celular –
resolve limpar as mãos em um lenço de papel muito barulhento.
Lentamente o tira da bolsa. Lentamente começa a limpar as mãos. Olho
para ela uma vez. Segue limpando - lentamente, imaginando que assim não faz muito barulho nem incomoda os outros (quero crer na minha polianice). Olho outra vez, parece que percebeu
meu olhar de pouco amigos, mas segue limpando (lentamente). Olho novamente, e
desta feita resolve guardar o lenço – lenta e calmamente, com muito
barulho.
Limpava
as mãos, é claro, porque não iria levar comida à boca com elas
sujas. Tira da bolsa balas e oferece às outras senhoras:
V1 –
Quer bala?
V2 –
Eu quero!
V3 –
Bala?
V1 –
Sim, bala.
V3 –
Não, "obrigado" [sic].
V1 –
Não mesmo?
V3 –
Não, "obrigado" [sic].
Então
as duas senhoras muito discretamente abrem as embalagens individuais
de suas balas, no mínimo três minutos para desembrulhar aquelas
embalagens barulhentas e discretamente guardarem o papel de bala na
bolsa.
Passam
um tempo em silêncio – creio eu que acompanhando a dança e
procurando assunto:
V1 –
Música cansativa.
V2 –
Sim, cansativa.
O
detalhe: a trilha sonora da coreografia era feita apenas por "barulhos" – vamos assim chamar –,
não sei se as senhoras estavam a par de música eletroacústica para
considerá-la música, mas a chamaram assim.
Mais
um período em silêncio. A senhora ao meu lado não chega a roncar
plenamente, mas ouço seu ressonar do sono de uma pessoa cansada –
afinal, a música...
Paz! Mas por alguns instantes.
Pouco
antes do final, uma das senhoras se levanta, e falando sussurrante
para não incomodar quem está atrás:
V1 –
Vou embora.
V2 –
Já?
V1 –
Sim, já.
V2 –
Não vai ver a outra coreografia.
V1 –
Não, vou embora.
V2 –
Então tchau.
V1 –
Tchau.
V3 –
Tchau.
V1 –
Tchau. Bom espetáculo.
V2 –
Obrigada.
V3 –
"Obrigado" [sic].
V1 –
Com licença, com licença.
Nem
cinco minutos depois a coreografia se encerra.
São
Paulo, 22 de julho de 2012.
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