quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Cronista crônico

A primeira vez que ouvi algo do gênero foi da minha mãe, no aniversário de noventa anos do meu avô. Em meio à festa, mais pro final, comentou, olhando para mim: “já vejo que isto vai virar uma crônica”. Não virou. Porém notei que minha estimada progenitora tinha encasquetado que eu transformava qualquer acontecimento em crônica. “Coisa de mãe”, pensei eu, sabendo ser ela uma das minhas poucas leitoras cativas, junto com meu pai – pelos motivos óbvios.

Dia desses estava numa despedida de um amigo, que iria para um curso na Bauhaus, e depois de um dos seus amigos ter seu isqueiro roubado (!), meu amigo viajante falou: “aposto que o Dalmoro vai escrever uma crônica sobre isto”. Não escrevi. Creio que mais por falta de tempo do que vontade, é certo. Mas comecei a me dar conta que ando com certa fama de cronista crônico, quase um big-brother do quotidiano – ao menos não tenho mais uma opinião formada sobre tudo, como quando comecei a escrever por hobby e não para redação da escola ou cursinho.

Fama essa reafirmada pelos meus amigos de república. Como somos jovens-não-mais-tão-jovens, sem pré-combinarmos acabamos tendo quase quotidianamente uma “hora do chá”, que não é às cinco da tarde, com chá preto, à moda britânica, e sim às onze da noite, com chá de cidreira, camomila, e ervas do gênero. Na hora do chá de ontem eles cismaram que eu preciso parar de escrever: “quando você sair à noite, ao invés de pensar na crônica, viva!”, sugeriu um deles, como se eu tivesse trocado qualquer programa mais interessante por uma crônica – e não o contrário, que já tivesse aceitado programas aparentemente desinteressantes pensando numa possível crônica.

Tentei justificar minha escrita em larga escala deste ano como uma tentativa de enganar a mim mesmo, que estou produzindo algo quando na verdade precisava era produzir minha dissertação. “Cara, você olha uma garota e já pensa numa crônica”, me acusaram injusta e erroneamente: olho uma guria, penso em puxar papo, mas como não sei o que falar – minhas abordagens estão mais para harakiris do que para cantadas –, acabo sendo levado naturalmente à crônica – muito eventualmente ela é interrompida bruscamente no meio, como no evento de Camila, a moreninha da balada, que só virou crônica quando não virava mais nada com a referida guria.

No fim, eis-me aqui, a escrever uma crônica para dizer que não sou desses que transformam tudo em crônica: tenho me aventurado por alguns contos e novelas também!


São Paulo, 08 de agosto de 2012.

ps: e Ruth existe de verdade!

domingo, 5 de agosto de 2012

Estudo ou dança? Rolê pelo centro.

Hesitava entre ficar em casa e estudar e ir a uma apresentação de dança. Como vi que não iria estudar de qualquer forma, decidi pela dança. Nenhuma novidade até aí – sempre tenho essa dúvida, sempre vejo que não vou estudar, sempre decido pela dança. O diferente foi que desta vez eu decidira faltando vinte minutos para o início do espetáculo. Me arrumo correndo: ponho minha camiseta do Mahler, lembro de pegar a caderneta pra qualquer anotação. Vou de metrô para chegar a tempo. Desço no metrô República. Um hippie toca violão elétrico e canta algo que não reconheço. Me surpreendo com uma fila em frente a um cinema pornô: que raios estará acontecendo? Terá reabrido de repente como cinema normal? Ao me aproximar, noto que a fila é para o fast food ao lado. Quase chegando à Olido, ouço uma moradora de rua contando a outro: “deu um tiro e saiu correndo”. Fico me perguntando se o tiro era de arma ou de pó. Chego em cima da hora para a apresentação: ingressos esgotados. Costumo chegar sempre com meia-hora de antecedência, raríssimas vezes presenciei a sala Paissandu lotada, mas eis que hoje...


Frustrado, decido dar um rolê pelas quebradas, olhar o movimento, quem sabe escrever uma crônica.

Vou até a Rio Branco, caminho um pouco por ela e entro em uma perpendicular que me parece um pouco mais movimentada, em direção à Consolação. É a região que os transeuntes me dão um pouco de medo, admito – mas nada que me faça fugir de lá. Nóias passam tranquilamente. Há lixo pelas ruas – muito lixo espalhado. Creio que houve época que isso era feito por cachorros. Pessoas bebem nos bares. Em frente a um inferninho, o porteiro com a camiseta do Corinthians joga algo no celular. Prostitutas passam, trans vão para seus pontos, uma moça que não sei se trans ou mulher me oferece seus serviços. Agradeço sem parar. Enquanto passo pelas vielas da cidade sujas de lixo, as calçadas congestionadas pelas mesas dos bares, me pergunto o quanto não circula de pó (cocaína, mármore, maisena) e DSTs por entre as veias de quem tem na rua mais do que um local de passeio – preconceito meu? Quantos sonhos frustrados não povoam aquela região da cidade – da população e da própria São Paulo –, e quantas pessoas ali nunca tiveram sequer a possibilidade, o direito de sonhar? Sonhar é de graça, mas tem horas que acho que é preciso ter pelo menos dinheiro para conseguir fazê-lo de forma que não se torne apenas outra frustração. Ouço o fim da frase de uma garota de programa, em frente a um inferninho, abraçada a um rapaz: “afinal, você é meu namorado, não é?” Os anseios por uma vida banal não faz distinção de classe.

Ao cruzar a São João o medo muda de figura: temo agora a polícia: se me pegarem, não sei se tenho dinheiro suficiente para salvar minha pele. Quem não deve não teme, dirão os cidadãos de bem, crentes de que se estou andando por Cracolândia e Boca do Lixo é porque suspeito sou. E a quem pensa assim, espero mesmo que tenha razão: não gostaria de ser o que esse tipo chama de pessoa de respeito.

Desta feita reparo um pouco nos prédios. Há prédios antigos, década de sessenta, setenta, bem conservados. Há um monstrengo que tem nos primeiros andares estacionamento: um prédio desses é um atentado a qualquer cidade. Passo por um dos primeiros prédios do Niemeyer. O Copan está ali perto: para São Paulo, cai bem, mas creio que se fosse em Barcelona, por exemplo, teria sido um atentado contra cidade, violento e feio como o prédio de estacionamentos – ou prédios de vidro verde. Reparo em um prédio novo, na beirada do Minhocão, com muitas placas de aluga-se e vende-se. Minhocão que, como comentou um amigo estudante de arquitetura, é um muro que protege os pobres das regiões degradadas do avanço da especulação imobiliária – ou seja, uma reserva de mercado de três quilômetros para as empreiteiras–, e protege os ricos da turba fedorenta que limpa latrinas e atende em lojas.

Uma festa infantil acontece no primeiro andar de um prédio, em frente travestis fazem ponto. Passo por um bar chamado “Canela de prata” e, a la Francoy, me vem à mente futebol paraolímpico. Passo por uma travesti com quantidade industrial de silicone nos seios – a impressão que dá é que vão estourar a qualquer momento. É domingo, início da noite, o movimento, salvo nos bares de uma avenida, é tranqüilo. Uma hora escuto um estrondo do outro lado da rua, me abaixo me protegendo (se é que se abaixar protege de algo) do que pode ser que tenha estourado. Alarmes de carro disparam. Meu ouvido zune. Um homem parado na frente de um prédio, um pouco a minha frente comenta com outro: “putaqueopariu, que cagaço!”, “mas você não viu o cara do estacionamento pondo a bomba?”, “vi porra nenhuma”. Não entendo o porquê de estourar a tal bomba em frente ao próprio estacionamento. Sinto um cansaço gigantesco: a descarga de adrenalina foi forte. Mais do que cansaço, meu corpo dói do susto. Decido que é mais do que hora de voltar pra casa.

Em frente a uma igreja presbiteriana, o vendedor de pipocas espera sua hora (de ganhar dinheiro) ouvindo o jogo do Santos. Já na Augusta, cruzo com um cadeirante fazendo rali – imagino se fosse pro caminho da casa da minha amiga na Penha: estaria impedido de circular. No inferninho do Garcia, mentor espiritual do meu amigo [j.mp/cG25712], novidade: está uma mulher de maître, vestida de social e tudo o mais. Os bares estão pouco movimentados – só no início da Augusta, uma balada parece mais agitada. Ao passar pelo Cine Sesc, reparo no inferninho que fica logo ao lado – inferninho de luxo: até nisso o Sesc soa ascéptico. Mais ou menos defronte o cinema, do outro lado da rua, uma moradora de rua tira algo da roupa – não sei se bolinhas da blusa de lã ou insetos. Na revenda de carros próxima de casa noto que mais um Porsche foi vendido.


São Paulo, 05 de agosto de 2012.