Hesitava entre ficar em casa e estudar e ir a uma apresentação de
dança. Como vi que não iria estudar de qualquer forma, decidi pela
dança. Nenhuma novidade até aí – sempre tenho essa dúvida,
sempre vejo que não vou estudar, sempre decido pela dança. O
diferente foi que desta vez eu decidira faltando vinte minutos para o
início do espetáculo. Me arrumo correndo: ponho minha camiseta do
Mahler, lembro de pegar a caderneta pra qualquer anotação. Vou de
metrô para chegar a tempo. Desço no metrô República. Um hippie
toca violão elétrico e canta algo que não reconheço. Me
surpreendo com uma fila em frente a um cinema pornô: que raios
estará acontecendo? Terá reabrido de repente como cinema normal? Ao
me aproximar, noto que a fila é para o fast food
ao lado. Quase chegando à Olido, ouço uma moradora de rua contando
a outro: “deu um tiro e saiu correndo”. Fico me perguntando se o
tiro era de arma ou de pó. Chego em cima da hora para a
apresentação: ingressos esgotados. Costumo chegar sempre com
meia-hora de antecedência, raríssimas vezes presenciei a sala
Paissandu lotada, mas eis que hoje...
Frustrado, decido dar um rolê pelas
quebradas, olhar o movimento, quem sabe escrever uma crônica.
Vou até a Rio Branco, caminho um pouco por ela e entro em uma
perpendicular que me parece um pouco mais movimentada, em direção à
Consolação. É a região que os transeuntes me dão um pouco de
medo, admito – mas nada que me faça fugir de lá. Nóias passam
tranquilamente. Há lixo pelas ruas – muito lixo espalhado. Creio
que houve época que isso era feito por cachorros. Pessoas bebem nos
bares. Em frente a um inferninho, o porteiro com a camiseta do
Corinthians joga algo no celular. Prostitutas passam, trans vão para
seus pontos, uma moça que não sei se trans ou mulher me oferece
seus serviços. Agradeço sem parar. Enquanto passo pelas vielas da
cidade sujas de lixo, as calçadas congestionadas pelas mesas dos
bares, me pergunto o quanto não circula de pó (cocaína, mármore,
maisena) e DSTs por entre as veias de quem tem na rua mais do que um
local de passeio – preconceito meu? Quantos sonhos frustrados não
povoam aquela região da cidade – da população e da própria São
Paulo –, e quantas pessoas ali nunca tiveram sequer a
possibilidade, o direito de sonhar? Sonhar é de graça, mas tem
horas que acho que é preciso ter pelo menos dinheiro para conseguir fazê-lo de
forma que não se torne apenas outra frustração. Ouço o fim da
frase de uma garota de programa, em frente a um inferninho, abraçada
a um rapaz: “afinal, você é meu namorado, não é?” Os anseios
por uma vida banal não faz distinção de classe.
Ao cruzar a São João o medo muda de figura: temo agora a polícia:
se me pegarem, não sei se tenho dinheiro suficiente para salvar
minha pele. Quem não deve não teme, dirão os cidadãos de bem,
crentes de que se estou andando por Cracolândia e Boca do Lixo é
porque suspeito sou. E a quem pensa assim, espero mesmo que
tenha razão: não gostaria de ser o que esse tipo chama de pessoa
de respeito.
Desta feita reparo um pouco nos
prédios. Há prédios antigos, década de sessenta, setenta, bem
conservados. Há um monstrengo que tem nos primeiros andares
estacionamento: um prédio desses é um atentado a qualquer cidade.
Passo por um dos primeiros prédios do Niemeyer. O Copan está ali
perto: para São Paulo, cai bem, mas creio que se fosse em Barcelona,
por exemplo, teria sido um atentado contra cidade, violento e feio
como o prédio de estacionamentos – ou prédios de vidro verde.
Reparo em um prédio novo, na beirada do Minhocão, com muitas placas
de aluga-se e vende-se. Minhocão que, como comentou um amigo
estudante de arquitetura, é um muro que protege os pobres das
regiões degradadas do avanço da especulação imobiliária – ou
seja, uma reserva de mercado de três quilômetros para as
empreiteiras–, e protege os ricos da turba fedorenta que limpa
latrinas e atende em lojas.
Uma festa infantil acontece no primeiro andar de um prédio, em
frente travestis fazem ponto. Passo por um bar chamado “Canela de
prata” e, a la Francoy, me vem à mente futebol paraolímpico.
Passo por uma travesti com quantidade industrial de silicone nos
seios – a impressão que dá é que vão estourar a qualquer
momento. É domingo, início da noite, o movimento, salvo nos bares
de uma avenida, é tranqüilo. Uma hora escuto um estrondo do outro
lado da rua, me abaixo me protegendo (se é que se abaixar protege de
algo) do que pode ser que tenha estourado. Alarmes de carro disparam.
Meu ouvido zune. Um homem parado na frente de um prédio, um pouco a
minha frente comenta com outro: “putaqueopariu, que cagaço!”,
“mas você não viu o cara do estacionamento pondo a bomba?”, “vi
porra nenhuma”. Não entendo o porquê de estourar a tal bomba em
frente ao próprio estacionamento. Sinto um cansaço gigantesco: a
descarga de adrenalina foi forte. Mais do que cansaço, meu corpo dói
do susto. Decido que é mais do que hora de voltar pra casa.
Em frente a uma igreja presbiteriana, o vendedor de pipocas espera
sua hora (de ganhar dinheiro) ouvindo o jogo do Santos. Já na
Augusta, cruzo com um cadeirante fazendo rali – imagino se fosse
pro caminho da casa da minha amiga na Penha: estaria impedido de
circular. No inferninho do Garcia, mentor espiritual do meu amigo
[j.mp/cG25712], novidade: está uma mulher de maître, vestida de social e tudo
o mais. Os bares estão pouco movimentados – só no início da
Augusta, uma balada parece mais agitada. Ao passar pelo Cine Sesc,
reparo no inferninho que fica logo ao lado – inferninho de luxo:
até nisso o Sesc soa ascéptico. Mais ou menos defronte o cinema, do
outro lado da rua, uma moradora de rua tira algo da roupa – não
sei se bolinhas da blusa de lã ou insetos. Na revenda de carros
próxima de casa noto que mais um Porsche foi vendido.
São Paulo, 05 de agosto de 2012.
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