sábado, 20 de outubro de 2012

Atrás de um cachorro-quente: uma andança pela Paulista

Com pouca fome, mas precisando comer, sem vontade de fazê-lo, saio de casa, ver se me animo a jogar algo pra dentro do estômago. É pouco mais das seis da tarde. Na esquina de casa, um mendigo ainda dorme na calçada. Está lá desde a uma, quando saí pra almoçar. Choveu nesse ínterim, ele puxou um cobertor, mas segue no mesmo lugar. Desço a Augusta em busca de inspiração: se cozinhar é uma arte, por que comer também não seria? É certo que comer junkie e fast-food seria, na melhor das hipóteses – e olhe lá –, kitsch. No baixo Augusta penso em seguir até a Liberdade, comprar guioza e comer em casa, mesmo. Mas sempre me perco no caminho, e não estou disposto a conferir se seria uma aventura me meter pelo centrão de São Paulo num sábado à noite. Volto pela mesma Augusta. No caminho me decido por um cachorro-quente, apesar de não gostar muito: meu estômago não anda tão bom, hoje havia tomado chimarrão depois de mais de um mês sem beber nada com cafeína, por que não aproveitar pra ferrar de uma vez, se for o caso?

Sigo um tanto ensimesmado pela Paulista, cantarolando a quinta sinfonia de Mahler. O único cachorro-quente que lembro fica antes da metade da avenida. Skatistas passam, pessoas param nos postes para seus cachorros marcarem território, num ponto de ônibus um mendigo grita "ai ai ai" com as mãos na cintura, como se estivesse segurando as calças. As pessoas olham, eu passo, observo, mas faço como os europeus – conforme contou esta semana uma conhecida –, e finjo que não se trata de nada extraordinário que mereça virar atração principal. Em frente ao Reserva Cultural vejo uma guria que parece Camila, a moreninha da balada. Passado o susto inicial (custou uma bambaleada nas pernas), reparo que é japonesa demais para ser a referida senhorita – que é mais bonita, diga-se de passagem. Vou até a casa de uma amiga. Sei o prédio onde ela mora, o bloco, mas não sei o apartamento. Descubro que ela não é amiga do porteiro, que, muito solícito, procura no caderno de correspondências, liga para o zelador, mas termina sem descobrir onde poderia morar minha amiga. Vou ao cachorro-quente sozinho, mesmo. Cinco reais um básico, salsicha, purê, maionese, vinagrete e batata-palha – sendo que não gosto de maionese e batata-palha. Quase nove um um pouco melhor. Para São Paulo, um valor normal. Porém, para uma salsicha, está caro. Resolvo, então, encarar um sanduíche de junkie-food: é o mesmo preço ou mais barato, e apesar de também não gostar muito, soa mais interessante – por mais que já anteveja o final. Entro em um shopping, ver se há ali a rede que gostaria de provar. Não. Mas há cachorro-quente gourmet: o kitsch do kitsch. Quatorze reais: quem se presta a comer num lugar assim merece pagar um valor desses por uma salsicha. No outro shopping, já no início da Paulista, também não há loja da rede que busco e me contento com o Bob's.

Na segunda mordida, minha boca já está levemente dolorida. Ao fim, minha garganta está irritada. A quantidade de porcaria naquele hamburguer foge da minha compreensão, então acho que é culpa do sal: ele me forneceu mais da metade do que eu precisava pro dia. Não que eu seja assíduo freqüentador desse shopping, mas me surpreendo de, pela primeira vez, me deparar com um negro que fala português e não é funcionário. Nas lojas, desconto de ternos, mantas e roupas de inverno. Orientais loiras, tenho visto várias, mas de cabelo castanho e encaracolado, é a primeira, até onde me lembro. Pela postura corporal dá sinal de vinda diretamente do Japão (e não sei se houve mesmo pênalti no segundo gol). O dia das crianças foi semana passada, e a decoração de natal já está quase pronta. Para meu alívio, ainda não puseram Simone para cantar, mas logo logo começa – então é natal, e o que você fez (para merecer toda essa tortura)?

O caminho de volta é o mesmo de ida. Um morador de rua, cabelo quase parecendo uma coroa, com um cobertor marrom como manto, fumando um cigarro amaçado, faz discurso. Passo em frente a uma igreja no exato instante em que os noivos saem dela. Os convidados comemoram. Sorrisos de todos. Alegria, alegria! Pra que ler tanta notícia assim?, talvez perguntasse Caetano, se tivesse escrito sua música hoje. Eu vou. E uma canção me consola. Eu vou... ao mercado. Lá, não um jingle, mas um blues inteiro canta as maravilhas de um dado posto de gasolina. Como dizer que a música que toca no rádio é arte, se um publicitário faz algo exatamente equivalente? Lembro de My Iron Lung, do Radiohead, em que a banda se questiona repetir a fórmula que fez sucesso com Creep: this is our new song, just like the last one, a total waste of time. Para um criador, perder tempo não é necessariamente problema – inclusive, os artistas de fato são capazes de fazer arte e crítica a partir da redundância, questionando o próprio processo, como o próprio Radiohead –, o ponto é ser consumidor e perder tempo passivamente com mais do mesmo, sempre. Lembrar de My Iron Lung me fez parar de cantarolar Mahler. Por sinal, do terceiro ao sétimo minuto do terceiro movimento, o scherzo, o que é aquilo?! De um clima alegre, quase triunfal, para uma tensão que se desenvolve rapidamente e, ao invés de ser resolvida, surge a trompa cortando feito navalha e deixando terra devastada.

Outra vez a Paulista. Numa esquina, um homem chega a um grupo de jovens, que animadamente conversava, enquanto espera o sinal abrir: já viram a última folha? Os jovens se olham, assustados com a interpelação do estranho. Já viram a última folha? Não, responde um deles, meio se desviando. Aqui, a última folha, e abre a mão (desconfio que com uma folha). O sinal abre, os jovens seguem, o homem insiste: e agora, viram a última folha? Sobra um clima estranho no grupo, que acaba num riso tenso. Noto o quanto é positivo esses episódios inusitados e inofensivos: abre chances de novos assuntos, que o ambiente asséptico do shopping, definitivamente, não daria oportunidade.

Skatistas seguem passando. Pessoas seguem parando nos postes. Uma hora passa um skatista com um skate sem prancha, apenas dois suportes para os pés. Um amigo dele, um pouco à frente, uma hora se joga no chão para não atropelar um casal de garotas. Pouco antes, uma senhora seguia com dois cachorros que pareciam dois leitões de tão cilíndricos. Três hippies cantam e tocam, sem qualquer chapéu pedindo dinheiro. Em frente ao Reserva não há o saxofonista tocando músicas melosas – para alívio dos casais que aproveitam das escadarias e do movimento da avenida. Para meu alívio, também não vejo ninguém que me lembre Camila, a moreninha da balada – ou a própria. A capa da Veja é sobre a China, só que, claro, tem que falar do julgamento do mensalão petista. Independência entre os poderes, não implica em interesses independentes. Fico imaginando as conseqüências do bom exemplo que esses togados da moralidade seletiva estão dando ao país – nem vou falar da Grande Imprensa, que não há nada além de mais do mesmo. Ao passar em frente ao centro cultural Fiesp, lamento ter perdido a exposição da Thereza Collor, e digo a mim mesmo que a da Lygia Clark, no Itaú Cultural, eu não posso perder – o trio neoconcreto do Rio mais que me encanta, já foi capaz de mudar minha percepção de mundo. Uma colega da engenharia disse que está interessada em conhecer o local, a oportunidade é ótima.

Cruzo com um homem que fica me encarando. Me pergunto porque mulheres, quando fazem o mesmo, desviam o olhar quando encaro de volta. A Paulista está bem movimentada. Tenho flanado pouco por ela, desde que as aulas começaram – nem nos fins de semana, que, quando saio, prefiro a Augusta. Por falar nela, falta ainda uma quadra para chegar ao seu cruzamento, entretanto são visíveis girocopteros luminosos cortando o céu. Pretendo comprar um desses antes de ir para Pato Branco uma próxima vez, para brincar com ele na praça da cidade e fazer meus amigos – que tem um nome a zelar na cidade – morrerem de vergonha.

São Paulo, 20 de outubro de 2012.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O estouro da noiada: outra andança pelo centro

Faz tempo que não tenho dado minhas voltas pelo centro de São Paulo – o que reflete na ausência de crônicas sobre o assunto. Um pouco receio da polícia, que anda dando tiro como se jogasse videogame, bastante por causa do clima destes últimos meses, que oscila entre seco, chuvoso e frio, sem parar num meio termo minimamente aprazível; e principalmente porque tenho que acordar às cinco e meia da manhã pra ir pra aula.

Aproveitando o clima agradável e o fato de não ter aula na quarta, decidi sair para tomar a fresca e comer fora, um junkie-not-so-fast-food oriental, na Augusta. Como havia fila na lanchonete, decidi ir na outra filial, na praça da República. No caminho passo pela praça Roosevelt – pela primeira vez desde que reabriu da sua "revitalização". Concreto concreto concreto concreto. Degraus degraus degraus. Skatistas skatistas skatistas. Policiais e mais policiais. Uns canteirinhos perdidos em meio a isso tudo. Sou mais de uma praça com mais verdes e menos agitos, como a praça Camões, em Ribeirão Preto, onde velhinhos, moradores de rua, cachorros acompanhados de suas respectivas madames e maconheiros se encontram pacificamente sob as árvores. De qualquer forma, sabendo que a parte concreto e degraus será sempre predominante na praça (até nova revitalização), se continuar havendo mais skatistas que policiais, creio que estamos bem. O problema é se os moradores de bem do entorno – que já teve um prostíbulo derrubado – conseguirem impôr toque de recolher aos skatistas, tornando-a outro espaço inóspito da capital – restrições sempre com as melhores das intenções, em nome dos bons costumes e da moral, é claro.

Na avenida São Luís, a calçada, refeita, tem o mapa estilizado de São Paulo distorcido, assumindo formas ora sem sentido, ora de pato. Troco a comida japonesa por um xis numa lanchonete próxima à galeria Olido. Já alimentado, no trajeto de volta, uma moradora de rua, indignada, comenta com outro que está sem cobertor pela terceira noite seguida, porque emprestou a não sei quem. Não passará frio, com certeza, fico me perguntando se não o utilizaria como colchonete. Parada súbita no Shopping Light, para usar o banheiro – que não é catraca livre. Aliviado, decido, então, por uma volta no centro.

Esqueço que já havia me comprometido comigo mesmo a não ir além da avenida São João depois do horário comercial. Não resisto. No cruzamento da Ipiranga com a Rio Branco, acho por bem voltar. De repente, da rua do Boticário, sai um enorme número de nóias. Não adianta parar ou continuar, o resultado é o mesmo: acabo no meio deles – um tanto apreensivo, admito. Andam em ritmo até que acelerado, sempre olhando para trás, assustados. O responsável pelo estouro da noiada: um carro da polícia que passa lentamente. Trato de acelerar o passo para sair do meio (só depois me dou conta que eles estavam preocupados demais com a polícia para se darem conta d'eu ali no meio, e que mais perigoso era a polícia ainda resolver me pegar).

Não me enrolo muito pela Boca do Lixo, basta de emoções pela noite. Volto pela Augusta, como sempre. Alguns novos empreendimentos imobiliários brotam no caminho, colocando a vida noturna da rua sob perigo – que a efervescência da Augusta fique na rua e pelo centro, ao menos! Estranho alguns garotos, na faixa dos treze anos, vestidos relativamente bem, no baixo Augusta. Estranho também o alto Augusta estar mais movimentado que o resto, apesar de já ser quase onze da noite. Não estranho o fato de estar cansado: estou há duas horas e meia caminhando, com breve pausa para o xis. Já do outro lado da Paulista, a revenda de automóveis de luxo próxima à minha casa fechou – mas o simpático morador de rua que ficava como se fosse o segurança da loja continua lá. Para compensar, entro na internet descubro que a diária no hotel que há no caminho é de quase trezentos dólares, a mais barata (sem café da manhã).

São Paulo, 17 de outubro de 2012.