Com pouca fome, mas precisando comer, sem vontade de fazê-lo, saio
de casa, ver se me animo a jogar algo pra dentro do estômago. É
pouco mais das seis da tarde. Na esquina de casa, um mendigo ainda
dorme na calçada. Está lá desde a uma, quando saí pra almoçar.
Choveu nesse ínterim, ele puxou um cobertor, mas segue no mesmo
lugar. Desço a Augusta em busca de inspiração: se cozinhar é uma
arte, por que comer também não seria? É certo que comer junkie
e fast-food seria, na melhor
das hipóteses – e olhe lá –, kitsch.
No baixo Augusta penso em seguir até a Liberdade, comprar guioza e
comer em casa, mesmo. Mas sempre me perco no caminho, e não estou
disposto a conferir se seria uma aventura me meter pelo centrão de
São Paulo num sábado à noite. Volto pela mesma Augusta. No caminho
me decido por um cachorro-quente, apesar de não gostar muito: meu
estômago não anda tão bom, hoje havia tomado chimarrão depois de
mais de um mês sem beber nada com cafeína, por que não aproveitar
pra ferrar de uma vez, se for o caso?
Sigo um tanto ensimesmado pela
Paulista, cantarolando a quinta sinfonia de Mahler. O único
cachorro-quente que lembro fica antes da metade da avenida. Skatistas
passam, pessoas param nos postes para seus cachorros marcarem
território, num ponto de ônibus um mendigo grita "ai ai ai"
com as mãos na cintura, como se estivesse segurando as calças. As
pessoas olham, eu passo, observo, mas faço como os europeus –
conforme contou esta semana uma conhecida –, e finjo que não se
trata de nada extraordinário que mereça virar atração principal.
Em frente ao Reserva Cultural vejo uma guria que parece Camila, a
moreninha da balada. Passado o susto inicial (custou uma bambaleada
nas pernas), reparo que é japonesa demais para ser a referida
senhorita – que é mais bonita, diga-se de passagem. Vou até a
casa de uma amiga. Sei o prédio onde ela mora, o bloco, mas não sei
o apartamento. Descubro que ela não é amiga do porteiro, que, muito
solícito, procura no caderno de correspondências, liga para o
zelador, mas termina sem descobrir onde poderia morar minha amiga.
Vou ao cachorro-quente sozinho, mesmo. Cinco reais um básico,
salsicha, purê, maionese, vinagrete e batata-palha – sendo que não
gosto de maionese e batata-palha. Quase nove um um pouco melhor. Para
São Paulo, um valor normal. Porém, para uma salsicha, está caro.
Resolvo, então, encarar um sanduíche de junkie-food:
é o mesmo preço ou mais barato, e apesar de também não gostar
muito, soa mais interessante – por mais que já anteveja o final.
Entro em um shopping, ver se há
ali a rede que gostaria de provar. Não. Mas há cachorro-quente
gourmet: o kitsch do
kitsch. Quatorze
reais: quem se presta a comer num lugar assim merece pagar um valor
desses por uma salsicha. No outro shopping, já no início da
Paulista, também não há loja da rede que busco e me contento com o
Bob's.
Na segunda mordida, minha boca já
está levemente dolorida. Ao fim, minha garganta está irritada. A
quantidade de porcaria naquele hamburguer foge da minha compreensão,
então acho que é culpa do sal: ele me forneceu mais da metade do
que eu precisava pro dia. Não que eu seja assíduo freqüentador
desse shopping, mas me surpreendo de, pela primeira vez, me deparar
com um negro que fala português e não é funcionário. Nas lojas,
desconto de ternos, mantas e roupas de inverno. Orientais loiras,
tenho visto várias, mas de cabelo castanho e encaracolado, é a
primeira, até onde me lembro. Pela postura corporal dá sinal de
vinda diretamente do Japão (e não sei se houve mesmo pênalti no
segundo gol). O dia das crianças foi semana passada, e a decoração
de natal já está quase pronta. Para meu alívio, ainda não puseram
Simone para cantar, mas logo logo começa – então é natal, e o
que você fez (para merecer toda essa tortura)?
O caminho de volta é o mesmo de
ida. Um morador de rua, cabelo quase parecendo uma coroa, com um
cobertor marrom como manto, fumando um cigarro amaçado, faz
discurso. Passo em frente a uma igreja no exato instante em que os
noivos saem dela. Os convidados comemoram. Sorrisos de todos.
Alegria, alegria! Pra que ler tanta notícia assim?, talvez
perguntasse Caetano, se tivesse escrito sua música hoje. Eu vou. E
uma canção me consola. Eu vou... ao mercado. Lá, não um jingle,
mas um blues inteiro canta as maravilhas de um dado posto de
gasolina. Como dizer que a música que toca no rádio é arte, se um
publicitário faz algo exatamente equivalente? Lembro de My
Iron Lung, do Radiohead, em que
a banda se questiona repetir a fórmula que fez sucesso com Creep:
this is our new song, just like the last one, a total waste of time.
Para um criador, perder tempo não é necessariamente problema –
inclusive, os artistas de fato são capazes de fazer arte e crítica
a partir da redundância, questionando o próprio processo, como o
próprio Radiohead –, o ponto é ser consumidor e perder tempo
passivamente com mais do mesmo, sempre. Lembrar de My Iron
Lung me fez parar de cantarolar
Mahler. Por sinal, do terceiro ao sétimo minuto do terceiro
movimento, o scherzo,
o que é aquilo?! De um clima alegre, quase triunfal, para uma tensão
que se desenvolve rapidamente e, ao invés de ser resolvida, surge a
trompa cortando feito navalha e deixando terra devastada.
Outra vez a Paulista. Numa esquina,
um homem chega a um grupo de jovens, que animadamente conversava,
enquanto espera o sinal abrir: já viram a última folha? Os jovens
se olham, assustados com a interpelação do estranho. Já viram a
última folha? Não, responde um deles, meio se desviando. Aqui, a
última folha, e abre a mão (desconfio que com uma folha). O sinal
abre, os jovens seguem, o homem insiste: e agora, viram a última
folha? Sobra um clima estranho no grupo, que acaba num riso tenso.
Noto o quanto é positivo esses episódios inusitados e inofensivos:
abre chances de novos assuntos, que o ambiente asséptico do
shopping, definitivamente, não daria oportunidade.
Skatistas seguem passando. Pessoas seguem parando nos postes. Uma
hora passa um skatista com um skate sem prancha, apenas dois suportes
para os pés. Um amigo dele, um pouco à frente, uma hora se joga no
chão para não atropelar um casal de garotas. Pouco antes, uma
senhora seguia com dois cachorros que pareciam dois leitões de tão
cilíndricos. Três hippies cantam e tocam, sem qualquer chapéu
pedindo dinheiro. Em frente ao Reserva não há o saxofonista tocando
músicas melosas – para alívio dos casais que aproveitam das
escadarias e do movimento da avenida. Para meu alívio, também não
vejo ninguém que me lembre Camila, a moreninha da balada – ou a
própria. A capa da Veja é sobre a China, só que, claro, tem que
falar do julgamento do mensalão petista. Independência entre os
poderes, não implica em interesses independentes. Fico imaginando as
conseqüências do bom exemplo que esses togados da moralidade
seletiva estão dando ao país – nem vou falar da Grande Imprensa,
que não há nada além de mais do mesmo. Ao passar em frente ao
centro cultural Fiesp, lamento ter perdido a exposição da Thereza
Collor, e digo a mim mesmo que a da Lygia Clark, no Itaú Cultural,
eu não posso perder – o trio neoconcreto do Rio mais que me
encanta, já foi capaz de mudar minha percepção de mundo. Uma
colega da engenharia disse que está interessada em conhecer o local,
a oportunidade é ótima.
Cruzo com um homem que fica me encarando. Me pergunto porque
mulheres, quando fazem o mesmo, desviam o olhar quando encaro de
volta. A Paulista está bem movimentada. Tenho flanado pouco por ela,
desde que as aulas começaram – nem nos fins de semana, que, quando
saio, prefiro a Augusta. Por falar nela, falta ainda uma quadra para
chegar ao seu cruzamento, entretanto são visíveis girocopteros
luminosos cortando o céu. Pretendo comprar um desses antes de ir
para Pato Branco uma próxima vez, para brincar com ele na praça da
cidade e fazer meus amigos – que tem um nome a zelar na cidade –
morrerem de vergonha.
São Paulo, 20 de outubro de 2012.
2 comentários:
Nenhuma análise politizada sobre aquele menu perverso e de mau gosto?
Sim, há: no texto "A Casuística: modo de usar" (abre a imagem em nova aba pra conseguir ler).
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