domingo, 14 de abril de 2013

Não foi crítica, foi demonstração (sobre o episódio Gerald Thomas - paniquete)

Amiga minha havia comentado da cena de Gerald Thomas avançando sobre uma paniquete. Sem ver as imagens, achei que pudesse ser algum caso de exagero ou da imprensa ou das feministas acadêmicas de plantão – que sabem da “experiência da violência contra a mulher” mais por teoria do que por serem mulheres, e acham que uma passada de mão na bunda praticamente equivale a um estupro, como tive de ouvir mais de uma vez. Ao ver as fotos, achei o episódio bastante agressivo – e ouso dizer, feliz.

Com algum esforço, dá para entender o que Thomas gostaria de criticar – com a atitude e seu texto posterior. A forma como o fez, contudo, além de ser exatamente o que se esperava dele, serviu para escancarar um pensamento comum e bastante precário. Ando um tanto averso à internet, de modo que não li quase nada sobre o ocorrido, por isso pode ser que eu não saia do senso comum, que não vá além do que já foi dito sobre o assunto. O que li foram os dois textos publicados na página da Carta Capital [j.mp/ZuVbLf]: o do próprio Thomas e o de Nádia Lapa. O texto de Gerald é uma tentativa de explicar o que deveria ser motivo para uma profunda auto-reflexão. O de Nádia traz pontos interessantes, mas que perdem por falta de uma compreensão um pouco mais ampla do contexto e por uma visão bem simplista de relações humanas: parte-se do pressuposto da racionalidade do homo oeconomicus, a pessoa com seus desejos claros e transparentes, unidirecionalidade nas suas condutas, sempre expressas em contratos explícitos – mas não é isso que pretendo discutir, o texto de Lapa, antes a atitude de Thomas.

Thomas tenta justificar que estavam dentro da classe artística – tudo o que ele fez ali seria, se não aceito, tolerado, afinal, são colegas de classe e amigos –, e seu ato não seria mais que reverter o jogo de constrangimento que o programa Pânico impõe às suas vítimas, ao mesmo tempo que revelaria o papel de mulher-objeto protagonizado pela paniquete. Acontece que sua atitude foi uma baita publicidade para o programa – o que eles justamente buscam. Ele não inverteu o jogo, ele jogou o jogo da forma mais quadrada possível. Isso, penso eu, explica em parte o porquê ninguém fez nada, como alerta Lapa: o programa é muito violento, uma violência a mais, que diferença faz? Ademais, estavam às claras, sendo filmados: era de se imaginar que o dramaturgo não iria muito além do que foi – sem contar que até hoje não me consta que ele seja um estuprador (no sentido antigo do termo, já que agora qualquer desrespeito físico contra a mulher é estupro). O questionamento levantado por Lapa, de que “se a agressão tivesse sido com uma atriz considerada recatada" seria aceito com a mesma normalidade, tem uma óbvia resposta negativa por um óbvio motivo: a paniquete estava interpretando um certo papel-social, o de mulher-objeto em um apelativo programa de televisão – o que uma "atriz considerada recatada" não faria. Uma mulher é, antes de qualquer papel social, uma pessoa, e merece respeito só por isso (como Gerald Thomas também merece, ainda que uma violência não justifique a outra), porém não há essa pura abstração de mulher-em-si numa situação desprovida de qualquer contexto – neste caso, temos o de violência masculina como a da imprensa espetacular.

O fracasso da pretensa crítica à imprensa de Thomas vira precariedade de raciocínio quando ele tenta argumentar que seu ato seria de aversão à mulher-objeto: há formas e formas de mostrar essa condição. Dou aqui meu exemplo, num outro contexto, bem mais tranqüilo que um programa de tevê, e por isso mais sutil: o leitor mais atento, a leitora mais detalhista devem ter notado que citei algumas vezes a paniquete sem ter dito seu nome. A paniquete continuará sem nome nesta crônica, uma vez que salvo em situações imprescindíveis (como contrapôr extremos de riqueza e pobreza de São Paulo), evito falar o nome de objetos, produtos, em meus textos: que se chame Maria ou Josefa, o que importa para o programa é que seja gostosa. Agir como o machista típico costuma agir diante de uma mulher-objeto está se mostrando útil para abrir o debate (como o pastor Feliciano está sendo útil para a questão homoafetiva desde que assumiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados), porém está longe de ser uma crítica, ainda mais quando Thomas justifica a violência pelo fato da paniquete estar “(praticamente) [de] bunda de fora, salto alto de “fuck me”, seios a mostra". Já fui execrado por uma feminista por ter dito isto, mas uma mulher com vestido mini, decote master e "salto alto de 'fuck me'" está realmente pedindo... pra ser vista – ouso dizer que esteja querendo também ser assediada, ainda que não afirme tão peremptoriamente. E quando me deparo com uma mulher assim, eu reparo mesmo. Discretamente, porque sou alguém educado; sem falar grosserias, porque não acho que seja puta por causa da roupa, nem que chamá-la assim seja uma abordagem muito frutífera; sem passar a mão, porque não tenho esse direito; e caso esteja com algum amigo ou amiga que tenha o mesmo gosto que eu, chego a fazer algum comentário "machista", como "é gostosa, mas essa paniquete exagerou no silicone". A mulher pode estar só com calor, como contra-argumentou minha interlocutora, isso pouco me importa: não estou agredindo fisica ou verbalmente, não vou fazer avaliação de intenções do Outro para saber se ela queria ser olhada ou não. Assim como quando estou com calor e tiro a camisa, não vou poder ficar incomodado com pessoas se admirando com minha magreza – seja porque achem bonita ou feita.

Outra coisa que me chamou muito a atenção no texto de Thomas sobre o episódio foi a justificativa de que, por serem amigos – ele e o pessoal do Pânico –, sua atitude não teria problema. É a demonstração de uma noção de violência e de estupro (no sentido antigo, porque no atual, se eu fosse mulher, já teria sido estuprado quatro vezes, no mínimo) muito estreita (e, pior, muito comum): não é raro casos de violência sexual entre amigos e colegas de trabalho ou faculdade. Há um tempo teve repercussão o de uma estudante de direito, estagiária do escritório de advocacia Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, que se matou tempos depois de ter sido estuprada por um colega do emprego [j.mp/11dZHlg]. Ouvi uma vez no bandejão da Unicamp amigos repreendendo (de leve) um colega, porque havia embebedado uma amiga para que "consentisse" fazer sexo anal. Inclusive uma frase me marcou nessa conversa: "com puta tudo bem, com amiga é sacanagem", numa mostra de que o estupro em si não seria um ato condenável, porque mulher-objeto é pra ser usada, independente do que ela quer ou aceita. Esse tipo de estupro, cometido por um conhecido, lembro ter lido há muito tempo uma reportagem, é o mais comum e o menos denunciado: vira um caso de "sacanagem", motivo pra rompimento de relação, uma vergonha para a mulher, que não dá ao ato a dimensão que ele realmente tem – caso de polícia.

Como disse, o episódio grotesco de Gerald Thomas e a paniquete abre a feliz oportunidade de tratar para além de círculos estreitos a questão da violência sexual contra a mulher, os preconceitos na sociedade, mesmo entre pessoas tidas por esclarecidas. Se isso será levado na base do “ativismo de reação”, se centrando nos casos e personagens; se resultará num debate mais consistente, como no caso da homoafetividade; se será seqüestrado pelo feminismo acadêmico e seus jargões para convertidas, ainda está em aberto. De minha parte, torço pelo segundo caminho, uma movimentação que aborde e ataque o problema sem discursos prontos e foco em inimigos e palavras de ódio: não é um caso isolado, não é uma questão de bem contra o mal, de achar inimigos: é uma questão social mais do que de gênero, uma questão de respeito, de dignidade, de relação com o Outro, de vida em sociedade.


São Paulo, 14 de abril de 2013.

sábado, 13 de abril de 2013

Depois da festa, os corvos.

Nada contra corvos, urubus e aves do gênero. Reconheço que não acho dos pássaros mais bonitos, nem acharia muito interessante se tivesse um exemplar desses em meu quintal – prefiro as curucacas ou maritacas, a depender de que casa falo –, mas são aves que simpatizo. Feito o parênteses introdutório de desculpas, ao texto.

Em meus anos nos bancos de universidade, descobri que honestidade intelectual não é algo lá muito valorizado na academia – ou melhor, todo mundo fala bem, mas nem todos praticam. Quero acreditar que poucos, muito poucos agem de má-fé, e que eventuais lapsos são, antes, aquilo que Freud chamou de ato falho.

Amiga minha me avisou que o pesquisador da USP Silvio Carneiro havia redigido uma resposta pro meu texto “A alta intelectualidade contra o baixo centro”. Entrei no blog, dei um control F, digitei Daniel, não apareceu nada: se confundiu, avisei. Ela insistiu. Tem meu nome, meu blogue, referência ao meu texto? Não. Então não é pra mim. Ela insistiu de novo: é. Ok, fui ver o que o camarada tinha a dizer. Pode não ter sido uma resposta ao meu texto, e sim a um outro texto qualquer (que ele não apresenta), afinal, era bem visível seu convite à inação contemplativa-revolucionária que critiquei.

Achei que cabia uma nova resposta não tanto por o que ele escreve, mas porque em minha crítica ao artigo anterior do Carneiro, havia dito que seu “texto é um belo exemplo do cacoete dessa esquerda parasita de bancos acadêmicos, precária de pensamento”, e noto que não disse outra característica importante: é uma nata acadêmica a quem falta auto-análise e auto-crítica. Faltou também ele levar menos para o lado pessoal – reconheço que meu texto era um tanto agressivo, o que dificulta um distanciamento.

O “novo” artigo, “Depois da festa, os despojos” [http://j.mp/XJkgb4], tem duas partes: na primeira Carneiro se explica, na segunda, se justifica. A primeira serve para ele deixar clara sua erudição aos apedeutas ranzinzas. A segunda, para dizer que ele não é um apático pesquisador revolucionário de gabinete.

Não sei, reconheço que está divertido pegar o exemplo de um pesquisador de uma sigla cheia de letras, que se diz revolucionário, pra mostrar suas contradições. Mas que dá uma preguiça, dá. Se eu tivesse me proposto a ajudar na organização do Festival Baixo Centro – ou qualquer coisa útil – não estaria perdendo tempo com isto. Por falar em Baixo Centro, deixo claro: se no texto anterior falei do festival, de universidade pública e esquerda-intelectual-status-quo, neste falo só dos dois últimos: o Baixo Centro, apesar da torcida contra, conseguiu os fundos necessários para acontecer e está acontecendo, abrindo as possibilidades que comentei – resta saber como serão aproveitadas. Eu e Carneiro estamos aproveitando pra treinar nossa retórica de quem se diz crítico e babar nossa erudição feita de palavras-chaves.

A crítica pela crítica. Diretamente da sua comuna auto-sustentável (onde os integrantes não tocam em dinheiro), Carneiro fetichiza sua inteligência e erudição, “pois o fetiche remete a isto: não importa onde se dê, sequer com quem esteja se relacionando, o fetichista procura seu prazer na construção de um cenário”. O cenário que ele busca é aquele que ele lê, para poder ajustar a realidade à sua visão, e se pôr como ator político esclarecido – dono de uma contemplação iluminada. O autor, tudo indica, queria ver no Festival Baixo Centro a aplicação prática das teorias e críticas do seu grupo de vanguarda. Mas eles não seguem a verdade e isso o frustra. Carneiro vai pondo palavras nas bocas dos organizadores, numa interpretação do que foi dito bastante contestável, ainda mais pelos textos que ele indica (pode ser que ele oculte parte das suas fontes, vai saber, pode ter coisas que ele não consegue rebater). Por mais que não seja o foco, a atual onda de repressões não foram ignoradas no texto de Gabriela Leite. Onde ele viu toda essa rejeição à burocracia cultural? No fato de não pedirem autorização pra ir pras ruas nem se utilizarem da reserva técnica da Fapesp? A ausência de uma tutela incomoda sobremaneira o pesquisador: parece que ele só conhece a autonomia pela hierarquia.

Na parte em que se justifica, Carneiro se lembra que faz parte de outro grupo que o Zagaia – do qual sigo com a impressão de que é uma Negação da Negação soft e sem aquela boa revista que o MNN edita –, e é mais do que um pesquisador de um lugar cheio de letras da USP: também faz parte do Cordão da Mentira, o qual faz O evento verdadeiramente transgressor – a carnavalização em bares pra esquerdistas. Não deixa de ter graça ele precisar se explicar, e não deixa de ser amostra do quanto eles promovem ações relevantes e significativas fora do círculo dos próximos e iniciados. Enfim. A seguir, ele se esconde ao encadear uma lista de movimentos dos quais seriam parceiros. Ter grupos que apóiam é ótimo, melhor do que um aglomerado de pessoas tão-somente (o que, segundo ele, é o que acontece com o Baixo Centro). Mas no que esses grupos estão livres do fetichismo (que ele insiste em identificar rasteiramente com dinheiro) que acomete os organizadores do Festival Baixo Centro? Seriam pessoas abnegadas de qualquer conforto material que fazem fotossíntese? E como explicar bares revolucionários que cobram R$ 8,00 a garrafa de cerveja de multinacional que patrocina a escrete canarinho? Não explicou como financia os sambas em bar bacana de bairro de pessoas bacanas, onde desdentado não só não entra, como nem passa em frente. Isso para não dizer no que haveria de essencialmente diferente da sua festa pra do Baixo Centro – além de meia dúzia de pessoas iluminadas ou de uma pequena massa que aprova bovinamente as palavras da vanguarda

No fim, ele ainda precisa se explicar do porquê exercer “atividade de pesquisa”: “para entender as contradições de seu tempo”. Poderia começar por entender as suas próprias e do seu meio (aproveita que estuda psicanálise e procura um): afinal, fetichismo também não é dar vida a objetos inanimados? Por que Caneiro precisa se sustentar no fato de ser pesquisador do LATESFIP-USP para dar legitimidade ao que fala, isso numa sociedade que despreza conhecimentos não livrescos (vide o preconceito com o ex-presidente Lula)? É essa a contestação que ele faz, do alto da sua hierarquia? (não tão alta). Esse batido fetichismo acadêmico, que acha que títulos e participação em congressos são sinônimos de conhecimentos. Por que críticas incomodam – ainda mais de alguém que nem é pesquisador de porcaria alguma – tanto a ponto de ele não as pôr, só a responder, numa apresentação unilateral? Por que precisa pôr tão explicitamente que pesquisa é “atividade”? Não lembro de vendedor dizer: faço atividade de vendas: é óbvio que este faz uma atividade. E por que a prática não pode se tornar práxis sem as luzes dos doutos do marxismo? Que seja mais difícil, isso quer dizer impossível? Por que – além de por preconceito – achar que não é possível contestação num festival aberto como o Baixo Centro? Não sei se é do festival, mas não estava lá há duas semanas: embaixo do minhocão há um cartaz cobrando memória, com o nome de cinco (não lembro agora) desaparecidos políticos durante a ditadura militar. E se a academia e sua esquerda são tão eficientes, por que a USP se fecha cada vez mais pra sociedade? Por que ela se perde em patéticas discussões sobre polícia ou não polícia (patética pela forma que é posta)? Por que sua utilidade, aos olhos da maior parte da população, não vai além do HC?

Eu sigo achando que o mundo é mais vasto que a academia, mais complexo que uma teoria engessada e mal-digerida por seus seguidores, e que ações que rompem com a inércia e abrem possibilidades, mesmo que tais possibilidades não se concretizem, são melhores que disputas de ego em textos que querem apenas manter tudo como está – apesar de seus autores dizerem que são contra.



São Paulo, 13 de abril de 2013.

Daniel Gorte-Dalmoro, além da Casuística [www.casuistica.tk] e do MAP, PEPMA, PQPPFFC, ETZN, mIRC, ICQ, MSN e Facebook, não se lembrou de nenhum outro grupo do qual participou. Exerce a atividade de bon vivant por achar que se tem a oportunidade deve bem aproveitá-la. E segue freqüentando o Baixo Centro, mesmo fora do festival.