Nada
contra corvos, urubus e aves do gênero. Reconheço que não acho dos
pássaros mais bonitos, nem acharia muito interessante se tivesse um
exemplar desses em meu quintal – prefiro as curucacas ou maritacas,
a depender de que casa falo –, mas são aves que simpatizo. Feito o
parênteses introdutório de desculpas, ao texto.
Em
meus anos nos bancos de universidade, descobri que honestidade
intelectual não é algo lá muito valorizado na academia – ou
melhor, todo mundo fala bem, mas nem todos praticam. Quero acreditar
que poucos, muito poucos agem de má-fé, e que eventuais lapsos são,
antes, aquilo que Freud chamou de ato falho.
Amiga
minha me avisou que o pesquisador da USP Silvio Carneiro havia
redigido uma resposta pro meu texto “A alta intelectualidade contra
o baixo centro”. Entrei no blog, dei um control F, digitei Daniel,
não apareceu nada: se confundiu, avisei. Ela insistiu. Tem meu nome,
meu blogue, referência ao meu texto? Não. Então não é pra mim.
Ela insistiu de novo: é. Ok, fui ver o que o camarada tinha a dizer.
Pode não ter sido uma resposta ao meu texto, e sim a um outro texto
qualquer (que ele não apresenta), afinal, era bem visível seu
convite à inação contemplativa-revolucionária que critiquei.
Achei
que cabia uma nova resposta não tanto por o que ele escreve, mas
porque em minha crítica ao artigo anterior do
Carneiro, havia dito que seu
“texto é um belo exemplo do cacoete dessa esquerda parasita de
bancos acadêmicos, precária de pensamento”, e noto que não disse
outra característica importante: é uma nata acadêmica a quem falta
auto-análise e auto-crítica. Faltou também ele levar menos para o
lado pessoal – reconheço que meu texto era um tanto agressivo, o
que dificulta um distanciamento.
O “novo”
artigo, “Depois da festa, os despojos” [http://j.mp/XJkgb4], tem duas partes: na
primeira Carneiro se explica, na segunda, se justifica. A primeira
serve para ele deixar clara sua erudição aos apedeutas ranzinzas. A
segunda, para dizer que ele não é um apático pesquisador
revolucionário de gabinete.
Não
sei, reconheço que está divertido pegar o exemplo de um pesquisador
de uma sigla cheia de letras, que se diz revolucionário, pra mostrar
suas contradições. Mas que dá uma preguiça, dá. Se eu tivesse me
proposto a ajudar na organização do Festival Baixo Centro – ou
qualquer coisa útil – não estaria perdendo tempo com isto. Por
falar em Baixo Centro, deixo claro: se no texto anterior falei do
festival, de universidade pública e esquerda-intelectual-status-quo,
neste falo só dos dois últimos: o Baixo Centro, apesar da torcida
contra, conseguiu os fundos necessários para acontecer e está
acontecendo, abrindo as possibilidades que comentei – resta saber
como serão aproveitadas. Eu e Carneiro estamos aproveitando pra
treinar nossa retórica de quem se diz crítico e babar nossa
erudição feita de palavras-chaves.
A
crítica pela crítica. Diretamente da sua comuna auto-sustentável
(onde os integrantes não tocam em dinheiro), Carneiro fetichiza sua
inteligência e erudição, “pois
o fetiche remete a isto: não importa onde se dê, sequer com quem
esteja se relacionando, o fetichista procura seu prazer na construção
de um cenário”.
O cenário que ele busca é aquele que ele lê, para poder ajustar a
realidade à sua visão, e se pôr como ator político esclarecido –
dono de uma contemplação iluminada. O autor, tudo indica, queria ver no Festival Baixo Centro a aplicação prática das teorias e críticas do seu grupo de vanguarda. Mas eles não seguem a verdade e isso o frustra. Carneiro vai pondo palavras nas
bocas dos organizadores, numa interpretação do que foi dito
bastante contestável, ainda mais pelos textos que ele indica (pode
ser que ele oculte parte das suas fontes, vai saber, pode ter coisas
que ele não consegue rebater). Por mais que não seja o foco, a atual onda de repressões não foram ignoradas no texto
de Gabriela Leite. Onde ele viu toda essa rejeição à
burocracia cultural? No fato de não pedirem autorização pra ir
pras ruas nem se utilizarem da reserva técnica da Fapesp? A ausência
de uma tutela incomoda sobremaneira o pesquisador: parece que ele só
conhece a autonomia pela hierarquia.
Na
parte em que se justifica, Carneiro se lembra que faz parte de outro
grupo que o Zagaia – do qual sigo com a impressão de que é uma
Negação da Negação soft
e sem aquela boa revista que o MNN edita –, e é mais do que um
pesquisador de um lugar cheio de letras da USP: também faz parte do
Cordão da Mentira, o qual faz O
evento
verdadeiramente transgressor – a carnavalização em bares pra
esquerdistas. Não deixa de ter graça ele precisar se explicar, e
não deixa de ser amostra do quanto eles promovem ações relevantes
e significativas fora do círculo dos próximos e iniciados. Enfim. A
seguir, ele se esconde ao encadear uma lista de movimentos dos quais
seriam parceiros. Ter grupos que apóiam é ótimo, melhor do que um
aglomerado de pessoas tão-somente (o que, segundo ele, é o que
acontece com o Baixo Centro). Mas no que esses grupos estão livres
do fetichismo (que ele insiste em identificar rasteiramente com
dinheiro) que acomete os organizadores do Festival Baixo Centro?
Seriam pessoas abnegadas de qualquer conforto material que fazem
fotossíntese? E como explicar bares revolucionários que cobram R$
8,00 a garrafa de cerveja de multinacional que patrocina a escrete
canarinho? Não explicou como financia os sambas em bar bacana de
bairro de pessoas bacanas, onde desdentado não só não entra, como
nem passa em frente. Isso para não dizer no que haveria de
essencialmente diferente da sua festa pra do Baixo Centro – além
de meia dúzia de pessoas iluminadas ou de uma pequena massa que
aprova bovinamente as palavras da vanguarda
No fim,
ele ainda precisa se explicar do porquê exercer “atividade de
pesquisa”: “para entender as contradições de seu tempo”.
Poderia começar por entender as suas próprias e do seu meio
(aproveita que estuda psicanálise e procura um): afinal, fetichismo
também não é dar vida a objetos inanimados? Por que Caneiro
precisa se sustentar no fato de ser pesquisador do LATESFIP-USP para
dar legitimidade ao que fala, isso numa sociedade que despreza
conhecimentos não livrescos (vide o preconceito com o ex-presidente
Lula)? É essa a contestação que ele faz, do alto da sua
hierarquia? (não tão alta). Esse batido fetichismo acadêmico, que
acha que títulos e participação em congressos são sinônimos de
conhecimentos. Por que críticas incomodam – ainda mais de alguém
que nem é pesquisador de porcaria alguma – tanto a ponto de ele
não as pôr, só a responder, numa apresentação unilateral? Por
que precisa pôr tão explicitamente que pesquisa é “atividade”?
Não lembro de vendedor dizer: faço atividade de vendas: é óbvio
que este faz uma atividade. E por que a prática não pode se tornar
práxis sem as luzes dos doutos do marxismo? Que seja mais difícil,
isso quer dizer impossível? Por que – além de por preconceito –
achar que não é possível contestação num festival aberto como o
Baixo Centro? Não sei se é do festival, mas não estava lá há
duas semanas: embaixo do minhocão há um cartaz cobrando memória,
com o nome de cinco (não lembro agora) desaparecidos políticos
durante a ditadura militar. E se a academia e sua esquerda são tão
eficientes, por que a USP se fecha cada vez mais pra sociedade? Por
que ela se perde em patéticas discussões sobre polícia ou não
polícia (patética pela forma que é posta)? Por que sua utilidade,
aos olhos da maior parte da população, não vai além do HC?
Eu
sigo achando que o mundo é mais vasto que a academia, mais complexo
que uma teoria engessada e mal-digerida por seus seguidores, e que
ações que rompem com a inércia e abrem possibilidades, mesmo que
tais possibilidades não se concretizem, são melhores que disputas
de ego em textos que querem apenas manter tudo como está – apesar
de seus autores dizerem que são contra.
São
Paulo, 13 de abril de 2013.
Daniel
Gorte-Dalmoro, além da Casuística [www.casuistica.tk] e do MAP,
PEPMA, PQPPFFC, ETZN, mIRC, ICQ, MSN e Facebook, não se lembrou de
nenhum outro grupo do qual participou. Exerce a atividade de bon
vivant
por achar que se tem a oportunidade deve bem aproveitá-la. E segue
freqüentando o Baixo Centro, mesmo fora do festival.
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