quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A presença-ausente do Outro em “Desarticulações”

“Tentar entender este estar/não estar de uma pessoa que se desarticula diante de meus olhos”. Para onde fugir quando o outro que nos ancora se desfaz em um presente perpétuo, um presente que não é feito de presença, porque não possui em si a duração?

“Desarticulações”, peça inspirada na obra da argentina radicada nos EUA Sylvia Molloy, é o relato fragmentado e angustiado de uma mulher que visita uma pessoa íntima sua – Maria Luisa –, que está perdendo a memória – tanto a recente quanto a antiga. A peça levanta a questão da necessidade do Outro enquanto condição de formação de lembranças, de afetos e da própria identidade.

A protagonista nos conta sobre Maria Luisa, que ora se lembra apenas de coisas muito antigas – como se fossem ainda presentes –, ora apenas de coisas recentes, ora não se lembra sequer de ler. Há momentos que esquece até as palavras, e não só não consegue articular frases, como sua fala se reduz a sons. Diante dessa perda de conexão entre o ontem e o hoje e entre cada instante, desse desfazer-se, dessa desarticulação entre uma pessoa e um corpo, a protagonista se vê também desarticulada, ao não conseguir compartilhar as experiências vividas com Maria Luisa, se ver obrigada a contar suas memórias como se fossem novidades a alguém que há um certo tempo tinha o poder de balizá-las, confirmá-las, complementá-las. Sem esse retorno do Outro sobre o que a protagonista conta sobre si, sobre ambas, ela se vê numa situação quase tão precária quanto aquela que se desfaz. Tanto que assim como Maria Luisa aparece como sombra (projetada durante a peça), a protagonista, sem se tornar ainda sombra, se torna espectro, nas projeções em branco e preto no chão.

Num espaço branco, com luzes brancas, a protagonista veste o peso do luto: o Outro, cuja presença serve para fazer sombra e nos fazer recordar, antes de mais nada, da precariedade de nosso estar no mundo e da necessidade da contraposição do Outro como sujeito – para não nos tornarmos espectros do que um dia fomos.

São Paulo, 22 de agosto de 2013.


PS: Outro ponto que a peça me provocou: curiosamente, apesar das dos problemas de memória, Maria Luisa não se esquece de regras de etiqueta, de estratagemas de convívio social, as formas de agradar e se mostrar interessada e solícita, incorporadas como uma segunda natureza. Se apresentar bem, ser agradável, não se lembrar de nada – talvez o anúncio do que querem para nós?

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Mariana H. [Retratos feitos de memórias]

Era uma garota toda miúda: um metro e cinquenta e seis de altura, pouco mais de quarenta quilos, calçava trinta e três. Hiper-ativa, estava em mil projetos, confabulava infindas idéias, prestava atenção em tudo. Comunicativa, puxava conversa na rua com uma facilidade que me impressionava, e como uma criança curiosa queria saber onde morava, de onde vinha, o que fazia da vida. Para o futuro, pretendia arrumar um emprego tão logo terminasse a faculdade de arquitetura – no fim do ano –, e começar o curso de audiovisual: queria ser uma artista, uma videomaker. Já ensaiara alguns vídeos e eu me admirava do seu olhar. Ela criticava o excesso de rigor técnico e a falta de poesia dos estudantes de cinema e afins. Um amigo compositor certa vez tentou alertá-la: sem técnica não adiantava inspiração, as idéias não se traduziriam em poesia. Eu sei, mas... e insistiu na sua tese, como uma criança birrenta. Em uma oportunidade questionei como pretendia ser artista e ter muito dinheiro (como dizia ser sua ambição). Trabalho para ganhar dinheiro, faço arte no outro horário. E não teme acabar fazendo vídeos publicitários, sem tempo para se dedicar à sua arte. Será, se questionou, e depois, agoniada: não quero isso, preciso fazer minha arte também! Vou achar um jeito de conciliar. Como disse, eu gostava do seu olhar, dos seus vídeos mais próximos do chão, recortes de detalhes mais ou menos definidos que insinuavam o contexto. Porém temia quão longe chegaria – ou se logo capitularia sua arte – com sua postura imatura frente o mundo. Com um quarto de século e uma pele adolescente (só que sem espinhas), falava reiteradamente em pôr botox quando velha. Eu, de minha parte, torço para que muito antes disso ela aceite as linhas da idade e as marcas do tempo, e consiga conciliar seu sonho de ser artista com a aspereza do mundo.   

São Paulo, 19 de agosto de 2013.