“Tentar
entender este estar/não estar de uma pessoa que se desarticula
diante de meus olhos”. Para onde fugir quando o outro que nos
ancora se desfaz em um presente perpétuo, um presente que não é
feito de presença, porque não possui em si a duração?
“Desarticulações”,
peça inspirada na obra da argentina radicada nos EUA Sylvia Molloy,
é o relato fragmentado e angustiado de uma mulher que visita uma
pessoa íntima sua – Maria Luisa –, que está perdendo a memória
– tanto a recente quanto a antiga. A peça levanta a questão da
necessidade do Outro enquanto condição de formação de lembranças,
de afetos e da própria identidade.
A
protagonista nos conta sobre Maria Luisa, que ora se lembra apenas de
coisas muito antigas – como se fossem ainda presentes –, ora
apenas de coisas recentes, ora não se lembra sequer de ler. Há
momentos que esquece até as palavras, e não só não consegue
articular frases, como sua fala se reduz a sons. Diante dessa perda
de conexão entre o ontem e o hoje e entre cada instante, desse
desfazer-se, dessa desarticulação entre uma pessoa e um corpo, a
protagonista se vê também desarticulada, ao não conseguir
compartilhar as experiências vividas com Maria Luisa, se ver
obrigada a contar suas memórias como se fossem novidades a alguém
que há um certo tempo tinha o poder de balizá-las, confirmá-las,
complementá-las. Sem esse retorno do Outro sobre o que a
protagonista conta sobre si, sobre ambas, ela se vê numa situação
quase tão precária quanto aquela que se desfaz. Tanto que assim
como Maria Luisa aparece como sombra (projetada durante a peça), a
protagonista, sem se tornar ainda sombra, se torna espectro, nas
projeções em branco e preto no chão.
Num
espaço branco, com luzes brancas, a protagonista veste o peso do
luto: o Outro, cuja presença serve para fazer sombra e nos fazer
recordar, antes de mais nada, da precariedade de nosso estar no mundo
e da necessidade da contraposição do Outro como sujeito – para
não nos tornarmos espectros do que um dia fomos.
São
Paulo, 22 de agosto de 2013.
PS:
Outro ponto que a peça me provocou: curiosamente, apesar das dos
problemas de memória, Maria Luisa não se esquece de regras de
etiqueta, de estratagemas de convívio social, as formas de agradar e
se mostrar interessada e solícita, incorporadas como uma segunda
natureza. Se apresentar bem, ser agradável, não se lembrar de nada
– talvez o anúncio do que querem para nós?
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