segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Te conto o sonho de sua ausência (memórias feitas de saudades)

Hoje sonhei com você. Minto. Sonhei com sua ausência. Eu sentia sua falta também no sonho. E chorava, chorava muito. Chorava todas as lágrimas seguradas nestes últimos dez dias, porque me resta a vida por levar – ainda embotada nas suas alegrias, manca da sua poesia, carente da sua interlocução. No sonho eu me encontraria em breve com uma guria que estava a fim (oriental, por mero acaso), mas não conseguia lembrar o nome dela – não me vinha nome algum. Pensava em te pedir ajuda, mandar um sms perguntando o que fazer, para que você me avisasse para o óbvio, para o simples, para o terreno. Sorria. Não tenha medo do ridículo. O não você já tem. Eram algumas das singelezas que você me dizia quando pedia seu auxílio nesses assuntos – mas você mesma admitia que essas coisas não eram assim tão fáceis, tanto que sempre recorria a mim para te dizer basicamente o mesmo, só que do meu jeito mais barroco. Ou repetir exatamente as suas palavras, para você me responder: meu deus, o que eu fiz?, criei um monstro! No meu sonho você estava ausente. Aquela ausência presente, sentida, indefectível. A mesma ausência que vivo quando acordado. O sonho tinha cortes espaciais sem explicações (lembra quando te contei do sonho em que eu, depois de te chamar para irmos a um castelo, te deixava sozinha pra ficar com Camila, e você aproveitou então para me falar do código de honra do grupo de amigos que fiz graças ao seu jeito agregador: se tiver mulher na parada, toda ausência é justificada?). Eu estava em um shopping. Um não-lugar (livro que você havia pego emprestado, depois que te mandara o trecho sobre o sentir-se em casa, e que você interromperia a leitura a meio caminho – para ir pra onde?), um lugar qualquer que não freqüentávamos, porque nosso lugar, fora de nossas casas, era a rua: era a Paulista, a Augusta, a República, a Sé, a Zona Leste. Eu estava nesse shopping e queria voltar para casa, precisava pegar um ônibus, mas não sabia como fazê-lo. Era noite e foi a gota d'água para que eu chorasse sua falta (a única vez que pegamos ônibus juntos, para ir a Cotia, era noite e conheci sua amiga Híndira). Em outro momento do sonho eu estava na despedida de Lagares. Na verdade devia ser Joaquim – eu sempre tive dificuldade com os nomes do seu quotidiano. Ele saía em definitivo do metrô, ia aproveitar sua aposentadoria. Nos encontramos na saída do vestiário, ele (que tinha a cara de Ian) me cumprimentava alegre, Prazer! Eu chorava porque sabia que era a última vez que o veria, que teria notícias dele – como da engenheira do metrô, da professora de inglês, de Eliza, de Carlos, de Ezgi, de Marcelo, de Nilson da granola, da Elefoa Gay, do moço que comprava bilhetes todos os dias e ficava te encarando, dos moradores de calçada, dos jovens cidadãos, das cédulas em que você escrevia Cuidado com o vão entre o trem e a palavra, entregava no troco e lamentava que não prestassem atenção, e tantos outros personagens e situações que eram quase meu quotidiano também. Lagares se encaminhava para sua partida. Era como uma sala da SP Escola de Teatro – você iria fazer cenografia e figurino lá ano que vem, lembra?, seríamos parceiros de experimento, você voltaria a mexer com teatro e arte, coisas que te faziam falta –, era também como o cenário do Show de Truman. Lagares subia por uma escada rumo a um céu com o sol contra, e acenava para todos que estavam abaixo, que estavam contentes e emocionados e acenavam de volta. Do outro lado da sala, sentado em outra escada, num escuro de platéia, eu chorava. A luz foi tomando conta dele, como no Pequeno Príncipe. Ele estava feliz, radiante – como aquele fim de tarde, que eu não sabia se era real ou era cenário.
Acordei como tantas vezes você me acordara, com o barulho de mensagem no celular. Era quase onze da manhã (e não seis, sete, como quando você me escrevia). A mensagem não falava de alguma discussão com usuário que tentara furar a fila dos preferenciais, de uma crise existencial, de alguma quotidianidade sua, de uma idéia de algo para fazermos juntos na sua folga de três. Falava de coincidências. Era de uma amiga que, por coincidência, na sua última mensagem, você perguntava sobre ela. Ela vai bem. Nos encontramos semana passada, conheceu minha mãe, devemos nos encontrar de novo esta semana. Queria que você a conhecesse também – acho que vão se dar bem.

São Paulo, 09 de setembro de 2013.

[para Patrícia Misson, que gostava de me contar seus sonhos literariamente por email]

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Patrícia M. (memórias feitas de saudades)

"Sempre acreditei que a vida fosse absurdo, limite. Foi essa idéia que não suportei mais". Me mandou esse sms no dia 19 de julho, quase sete da noite, e avisava: "Uma das toalhas terminou". Na verdade, ela terminara de bordar uma das toalhas que se propusera – mas nela sujeito e objeto, sujeito e predicado se confundiam em Vida. Nas últimas quarenta e oito horas fiz tanta coisa que não queria ter feito, mas não havia alternativa - tem horas que não nos cabe qualquer poder de escolha. Não queria ter tomado o primeiro trem para fazer o seu caminho inverso. Não queria ter que perguntar "verdade" duas vezes para começar a acreditar. Não queria abraços de amigos para me apoiar – assim como eu a eles –, a perna a tremer, as costas a doer, a respiração a faltar. Não queria ter ajudado ninguém nem pedido ajuda – no máximo queria sua opinião se o azul escuro ia ficar bom na parede da sala. Não queria a carona, a terra e as flores. Queria que fosse um sonho ultra-realista e absurdo, como a vida – irreal e sem sentido. Queria você empoleirada no sofá para fumar na janela a dizer, diante da história anedótica do meu enésimo fracasso com mulheres, "Pô, Dalmoro!, assim não!, assim não! Eu e Djalma vamos ter que te ensinar uns negócios”. Queria sms sobre usuários do metrô, às seis da manhã; paqueras ao meio-dia; toalhas bordadas às seis da tarde; piadas de seriados que nunca ouvi falar à meia-noite. Queria acordar com mensagens absurdas no meu celular, no meio da madrugada, me chamando de Fanoruti e avisando que logo chegaria na minha casa, que tinha a chave e não queria me acordar. Queria acordar às quatro da manhã como todos os dias, para ir ao banheiro, para comer uma castanha ou massa de pão que a máquina já começara a bater, porque a coberta caiu; não por causa de uma ligação do seu celular do qual falava uma voz diferente. Queria mandar um sms da conversa sem noção que ouvi no trem. Queria te contar de alguma paixonite e receber de volta notícias de Marcelo ou Ezgi. Queria você me anunciando uma moça pela qual eu iria me interessar e eu fazendo o mesmo. Mas a vida é absurdo. O tempo enlouquecera a partir da madrugada do dia vinte e oito: ele estancou às três e cinqüenta e oito, ao mesmo tempo em que as horas passavam rápidas enquanto eu estava na sua casa, esperando pela sua volta que eu sabia que não ocorreria. Passavam rápidas enquanto aguardava notícias suas e da burocracia. Passavam rápidas quando estive na sua presença. Sua aparência tão serena, você que andava seguidamente com a testa franzida – está em um texto seu do seu blog secreto –, até quando dormia – que eu também reparava. Nós e nossos blogs secretos e nossos emails e nossos sms e nossas mensagens no Facebook. A dor no peito, os exames que não apontavam nada. The panic, the vomit. Vinte e três de julho, a primeira vez, você reclamou que perdeu o dia. E teve um sonho apocalíptico depois. E se não acontecesse, os exames da manhã te salvariam? Como um cacto, que absorve as energias negativas e tenta neutralizá-la. Como uma irmã – mais que isso. Mas não tinha espinhos, não conseguia se proteger. Como minha primeira peça. Como meu último conto. O futuro do pretérito que não consola nem conforta. E se? Uma tatuagem do Pica-Pau incompleto no antebraço, como a nos apresentar nossa incompletude e a angústia desse estado – era um desenho animado, mas trazia o esculacho dos seus questionamentos radicais e sutis sobre a existência. Hoje eu sou essa tatuagem. A vida é absurdo, limite. A iminência da morte – e a morte materializada na ausência. A dor. Vinte dias antes você dizia: “Essas pessoas nunca saberão que me dão uma grande esperança, que me fazem suportar tantas coisas que não entendo, tanto concreto e alumínio. Essas pessoas me prendem naquele lugar e, tendo de repensar muitas de minhas relações mais antigas e profundas, não sei avaliar em que medida são a prova de que não sei caminhar sozinha. Eu preciso sempre de algo que esteja comigo, como se as pessoas, os lugares, as ruas fossem uma espécie de escapulário que carrego no pescoço. Não sei estar só. E é um desejo muito antigo”. Você sabia que me enxia de esperanças na Vida e me prendia como ninguém neste lugar. Com você eu também desaprendi a estar só.

São Paulo, 29 de agosto de 2013.