Hoje
sonhei com você. Minto. Sonhei com sua ausência. Eu sentia sua
falta também no sonho. E chorava, chorava muito. Chorava todas as
lágrimas seguradas nestes últimos dez dias, porque me resta a vida
por levar – ainda embotada nas suas alegrias, manca da sua poesia,
carente da sua interlocução. No sonho eu me encontraria em breve
com uma guria que estava a fim (oriental, por mero acaso), mas não
conseguia lembrar o nome dela – não me vinha nome algum. Pensava
em te pedir ajuda, mandar um sms perguntando o que fazer, para que
você me avisasse para o óbvio, para o simples, para o terreno.
Sorria. Não tenha medo do ridículo. O não você já tem. Eram
algumas das singelezas que você me dizia quando pedia seu auxílio
nesses assuntos – mas você mesma admitia que essas coisas não
eram assim tão fáceis, tanto que sempre recorria a mim para te
dizer basicamente o mesmo, só que do meu jeito mais barroco. Ou
repetir exatamente as suas palavras, para você me responder: meu
deus, o que eu fiz?, criei um monstro! No meu sonho você estava
ausente. Aquela ausência presente, sentida, indefectível. A mesma
ausência que vivo quando acordado. O sonho tinha cortes espaciais
sem explicações (lembra quando te contei do sonho em que eu, depois
de te chamar para irmos a um castelo, te deixava sozinha pra ficar
com Camila, e você aproveitou então para me falar do código de
honra do grupo de amigos que fiz graças ao seu jeito agregador: se
tiver mulher na parada, toda ausência é justificada?). Eu estava em
um shopping. Um não-lugar (livro que você havia pego emprestado,
depois que te mandara o trecho sobre o sentir-se em casa, e que você
interromperia a leitura a meio caminho – para ir pra onde?), um
lugar qualquer que não freqüentávamos, porque nosso lugar, fora de
nossas casas, era a rua: era a Paulista, a Augusta, a República, a
Sé, a Zona Leste. Eu estava nesse shopping e queria voltar para
casa, precisava pegar um ônibus, mas não sabia como fazê-lo. Era
noite e foi a gota d'água para que eu chorasse sua falta (a única
vez que pegamos ônibus juntos, para ir a Cotia, era noite e conheci
sua amiga Híndira). Em outro momento do sonho eu estava na despedida
de Lagares. Na verdade devia ser Joaquim – eu sempre tive
dificuldade com os nomes do seu quotidiano. Ele saía em definitivo
do metrô, ia aproveitar sua aposentadoria. Nos encontramos na saída
do vestiário, ele (que tinha a cara de Ian) me cumprimentava alegre,
Prazer! Eu chorava porque sabia que era a última vez que o veria,
que teria notícias dele – como da engenheira do metrô, da
professora de inglês, de Eliza, de Carlos, de Ezgi, de Marcelo, de
Nilson da granola, da Elefoa Gay, do moço que comprava bilhetes
todos os dias e ficava te encarando, dos moradores de calçada, dos
jovens cidadãos, das cédulas em que você escrevia Cuidado com o
vão entre o trem e a palavra, entregava no troco e lamentava que não
prestassem atenção, e tantos outros personagens e situações que
eram quase meu quotidiano também. Lagares se encaminhava para sua
partida. Era como uma sala da SP Escola de Teatro – você iria
fazer cenografia e figurino lá ano que vem, lembra?, seríamos
parceiros de experimento, você voltaria a mexer com teatro e arte,
coisas que te faziam falta –, era também como o cenário do Show
de Truman. Lagares subia por uma escada rumo a um céu com o sol
contra, e acenava para todos que estavam abaixo, que estavam
contentes e emocionados e acenavam de volta. Do outro lado da sala,
sentado em outra escada, num escuro de platéia, eu chorava. A luz
foi tomando conta dele, como no Pequeno Príncipe. Ele estava feliz,
radiante – como aquele fim de tarde, que eu não sabia se era real
ou era cenário.
Acordei
como tantas vezes você me acordara, com o barulho de mensagem no
celular. Era quase onze da manhã (e não seis, sete, como quando
você me escrevia). A mensagem não falava de alguma discussão com
usuário que tentara furar a fila dos preferenciais, de uma crise
existencial, de alguma quotidianidade sua, de uma idéia de algo para
fazermos juntos na sua folga de três. Falava de coincidências. Era
de uma amiga que, por coincidência, na sua última mensagem, você
perguntava sobre ela. Ela vai bem. Nos encontramos semana passada,
conheceu minha mãe, devemos nos encontrar de novo esta semana.
Queria que você a conhecesse também – acho que vão se dar bem.
São
Paulo, 09 de setembro de 2013.
[para
Patrícia Misson, que gostava de me contar seus sonhos literariamente
por email]
1 comentário:
Lindo demais... triste e lindo demais...
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