domingo, 26 de outubro de 2014

Medo do porão

 Aproveitando o ensejo de Ciro dos Anjos, Rubem Braga escreveu "Receita da Casa", crônica com a qual tive o primeiro contato com ele, por quem me apaixonei à primeira vista (é certo que isso não é tão raro em literatura, como o provam Saramago, Mia Couto, Kawabata, Leminski, Kundera e tantos outros). A primeira providência para uma casa, segundo o escritor de Cachoeiro do Itapemirim, é que tenha um porão. Ele dá as devidas especificidades, as funções na formação da criança, e ressalta que "convém que as crianças sintam um certo medo do porão; e embora pensem que é medo do escuro, ou de aranhas caranguejeiras, será o grande medo do Tempo, esse bicho que tudo come, esse monstro que irá tragando em suas faces negras os sapatos da crianças, sua roupinha, sua atiradeira, seu canivete, as bolas de vidro, e afinal a própria criança". 
 A casa dos meus pais, em Pato Branco, não segue exatamente as sugestões do cronista, mas graças ao engenheiro responsável pela obra possui um porão - um porão moderno, com luzes e organizado, mas um porão. Nele acumulam cadernos antigos, dos pais e dos filhos que lá habitam (pouco importa que apenas alguns dias por ano, ainda é minha casa), alguns brinquedos que resistem, esperando pela visita com filhos pequenos que os tirarão dos armários, coleções ou partes de - como a minha de latinhas ou a de pedras -, ferramentas quase nunca utilizadas, outras - as de jardinagem - empregadas com freqüência, graxa em uma lata de achocolatado do início da década de 1980, enfeites de natal (minha mãe cogitava jogar fora, porém não teve coragem, e eu mesmo me interessei em revê-los), bolas há muito murchas, madeiras que sobraram da construção da casa (anterior à lata de achocolatado), marcas na parede de um conflito entre a antiga cachorra e a antiga gata da casa, caixas vazias esperando para serem preenchidas elas também por entulhos ou por memórias.
 Sempre tive medo não exatamente do porão, mas de toda a parte de baixo da casa (ela segue o declive do terreno). Medo de algum ladrão escondido no banheiro ou no escuro do grande quintal, cercado de outros quintais grandes e escuros, e sem ser percebido pela cachorra; de alguém como o anarquista búlgaro de passagem pela cidade da crônica de Braga (não exatamente um anarquista, que esses nunca foram temidos em casa, apesar que os búlgaros também não), de uma aranha enorme ou um rato a me atacar, me obrigando a ser levado às pressas ao hospital, tomar injeção para não morrer de alguma doença terrível; de algum fantasma, apesar de eu não acreditar em fantasmas. 
 Havia motivos muitos, mas pode ser que fosse somente medo do escuro, uma vez que eu só tinha esses medos à noite, em especial quando me punha a subir pela escada, como se o perigo estivesse me observando o tempo todo e na hora em que eu abaixaria a guarda, já quase seguro no andar de cima - onde ladrões, aranhas, ratos, anarquistas búlgaros e fantasmas não entrariam -, me atacassem. Pior, confesso: ainda que não subisse mais correndo, e soubesse que aquele meu medo era besteira, até ano passado sentia um frio me correr a espinha no momento em que ia fechar a porta para o quintal e me preparar para subir. 
 Contudo ano passado esse medo passou, e não teve o que fizesse retornar: nem o rato a saltar sobre minha mãe, a aranha a me fazer um agrado, o braço a tentar roubar a mochila do meu irmão, o barulho de algo batendo na porta do porão na hora em que o abri: nada, nem um pingo de medo. Não sei dizer exatamente quando isso aconteceu, mas desconfio quando foi - mais ou menos quando passei a querer acreditar em fantasmas. Algo da criança, que ainda flanava por brinquedos velhos, coleções interrompidas e lições esquecidas, se perdeu, foi tragada para fora do porão. E então o homem de trinta anos, ainda que preocupado com as rugas e a calvice, começou a se irmanar com o Tempo.

São Paulo, 26 de outubro de 2014.

 ps: para Patrícia M., Dejanir D. e Marilda G.


sábado, 25 de outubro de 2014

O homem-panacéia e a mulher-burocrática-prepotente [Eleições 2014]

 O debate da rede Globo não teve nenhum golpe baixo da emissora contra a candidata petista. Não assisti ao jornal Nacional, mas pelo que vejo nas redes sociais, nenhum revival de 1989 - convenhamos, trechos de Veja sobre a Petrobrás são coisa pouca diante de seqüestradores de burgueses vestindo camisetas do PT (direção de figurino: Romeu Tuma). Isso não impediu de Aécio Neves trajar a plumagem collorida de salvador da pátria e caçador não de marajás, mas de bandidos (dentro da mais pura lógica "aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei"), traje usado com menos alarde por Marina Silva nas duas últimas eleições. 
 Provavelmente por um cálculo publicitário de tentar ganhar aquela parcela da população carente de um líder forte, Aécio buscou posar de homem-panacéia, determinado a sanar todos os problemas do país, pouco importa qual, se da alçada federal, estadual, municipal ou particular (parênteses: não deixa de ser curioso que os maiores defensores do estado mínimo estas eleições fossem justo os que mais pregam a interferência estatal máxima em assuntos de foro íntimo), se atribuições do executivo, legislativo, judiciário ou mercado. Dilma fez o contraponto dentro do seu estilo burocrático (afinal não era ela quem dizia, em eleição passada, que "o Brasil precisa de um gerente"? Ah, não, era o Alckmin), contestando as promessas tucanas com explicações sobre o desenho constitucional e as atribuições do executivo federal. 
 Espero que a candidata à reeleição tenha sido feliz em seu intento. O que não posso deixar de ressaltar, com grande preocupação, é o discurso de Aécio: homens firmes e salvadores da pátria, há uma razoável lista na história, sempre de amarga lembrança. Por exemplo: a face sombria do governo Vargas de 1930 a 1945: se criou a CLT e lançou as bases da industrialização do país, prendeu e matou uma série de opositores políticos. Ou os militares na ditadura civil-militar da segunda metade do século passado, instituição "forte" a curar as mazelas do país e pô-lo nos eixos.
 Em uma eleição caracterizada não por uma mera polarização, mas por encarar o outro não como adversário a ser batido, e sim como inimigo a ser aniquilado, com direito a conflitos de rua, o discurso de Aécio Neves, reverberando uma imprensa adepta de Goebbels, abre um perigoso paradeiro - um fantasma que anda a rondar o globo, ainda que com diferenças da sua versão original, da primeira metade do século XX. Para piorar, é endossado por um dos maiores partidos do país. Torço, no meu humanismo ingênuo, para que, passadas as eleições, o PSDB faça uma autocrítica e chegue à conclusão de que o mais importante não é seu projeto de poder, mas o futuro do país: que haja como oposição dentro dos limites aceitáveis, nas casas legislativas e nas ruas, pedindo investigações, barrando projetos, sem, contudo, desqualificar ou atropelar nossa constituição.   

São Paulo, 25 de outubro de 2014