quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Cria cuervos (sobre a expulsão do repórter do CQC de uma manifestação)

Assisto ao vídeo da expulsão do repórter do CQC da manifestação contra o PT e a Dilma, e a favor da ditadura militar, dia quinze de novembro, na Avenida Paulista. O manifestante que gravava a cena tece comentários ao fim da ação anti-mídia: "achei é que foi pouco". E foi mesmo. Não que merecesse mais - ou mesmo isso -, mas para quem viu o cortejo das esquerdas na última manifestação chamada pelo Movimento Passe Livre em junho de 2013, atacadas verbal e fisicamente por hordas de extremistas, achou a tal gritaria dos viúvos e das viúvas da ditadura nível iniciante: uns gritos, dedos em riste e a expulsão, sem ameaça séria ao repórter, que sequer precisou da ação dos policiais (que estavam do lado!) para conter o magote histérico. 
Como não sou jornalista não sou afetado pelo corporativismo (como atinge mesmo a excelentes nomes, como Paulo Nogueira), e tento evitar dois pesos duas medidas: por isso não condeno a ação contra o humorista. Já vi em greve da Unicamp, repórter da Folha de São Paulo tirar foto de papéis de divulgação publicitária, atirados por alunos numa ocupação da reitoria, para noticiar a perda de documentos importantes da instituição: se for para noticiar mentira (falo de fatos falsos, não se trata sequer de uma visão parcial), defendo que movimentos barrem a imprensa. Que a imprensa não se satisfaça com esse tratamento (por mais que muitas vezes mereça), acho do direito dela, e faz todo sentido não acatar cerceamentos - apesar de quando a polícia militar a impede de trabalhar, como no cerco aos manifestantes no hotel Linson, na Augusta, a Grande Imprensa no máximo solta uma nota de rodapé de pesar.
No caso dos manifestantes anti-PT e pró-militares de sábado, vale lembrar, antes de tudo, que o tal repórter é, antes de mais nada, um humorista, e o programa do qual participa tem como um dos seus expedientes principais, avacalhar com aquilo que estão acompanhando (eu ia dizer ironizar, mas para usar ironia é preciso um pouco de sofisticação intelectual e educação, algo que Marcelo Tas e seus pupilos, se possuem, não gostam de usar). Por mais boçais que sejam - talvez justo por isso -, os manifestantes na Paulista querem ser levados a sérios: o que esperavam que os manifestantes fizessem com quem chega para avacalhar em rede nacional com seu protesto? Que o receba com pompas de ser iluminado, só porque tem uma credencial de jornalista (se é que tem) e é acompanhando por um câmera? A situação é um pouco diferente no caso do repórter do Diário do Centro do Mundo, que cobria com intuito sério a manifestação - porém aqui trago o exemplo que vivi na Unicamp: se os manifestantes achavam que ele noticiaria inverdades, deveriam deixá-lo atuar, só porque jornalista se crê intocável? Jornalismo é uma profissão de risco, a depender de que linha o jornalista decidir seguir. Ser impedido de exercer seu trabalho por parte de um grupo de pessoas é um desses riscos, e isso não significa, necessariamente, cercear a liberdade de expressão - pode vir a ser, por exemplo, num caso de ameaças prévias ou agressões sistemáticas.
Aqui concordo, ainda que por um caminho diferente, com a análise de Paulo Nogueira, do DCM: a imprensa está criando seus próprios corvos. Pela sua incitação ao ódio, mas também pelo uso sistemático da mentira, ou da "desinformação", como preferem os mais pudicos. A recusa em contribuir, ou mesmo compactuar, com a imprensa se dá porque a população tem percebido - ainda que inconscientemente - que a imprensa não está ali para relatar os fatos, e sim para distorcê-los ao sabor dos seus interesses. E isso traz uma questão muito mais assustadora do que expulsão de jornalistas por extremistas: uma questão que atinge a população média, em tese longe de extremismos. Tratarei em uma próxima crônica.

São Paulo, 20 de novembro de 2014.

domingo, 16 de novembro de 2014

Abraçaço [memórias feitas de saudades]

Eu escrevia sobre política. Citava Comte-Sponville, Rancière, Rawls, Nelson Rodrigues - você talvez me chamasse de academicista, só para me provocar, e escutaria toda minha justificativa de que estou longe disso, para me responder, rindo, ao fim: "calma, Dalmorito, não se ofenda, gosto de você assim mesmo". No Face, Marcos pôs uma foto na qual antevi seu comentário: "hahahaha, aí, sim, Marcos!" Era um Pica-Pau de pelúcia defronte uma cachoeira - Chapada dos Veadeiros, se não me equivoco. Não perguntei, mas tenho certeza que o intuito dele foi o de fazer esse agrado para você - ele também deve ter antevisto seu comentário. Havia me deparado com um Pica-Pau assim na República ainda esta semana - me lembrei de você e a incompletude da vida tatuada no seu braço. Pica-Pau filosófico-existencialista - só você para subverter desse jeito! Tenho andado num período estranho: não é desânimo, não é a dor da tua ausência - o vazio segue, porém tenho conseguido a cada dia preenchê-lo de memórias e da alegria de ter te conhecido -, não sei ao certo o que é. Penso ser uma das minhas ecdises. Que pele nasce sob essa que, morta, tento me desvencilhar? Há você nessa pele nova, por mais que não esteja presente da mesma forma que nas minhas ecdises anteriores. Queria te perguntar "o que faço" diante das minhas pequenas dúvidas e angústias do dia a dia. Queria pedir seus conselhos sobre garotas - que raios se faz quando começa a tocar Pela luz dos olhos teus, que você cantarolava quando falava do Marcelo? Queria te abraçar para além do meu abraço simbólico que te dou toda vez que passo pelo Charm - você faz tanta falta, Misson! Queria palpitar nos seus dilemas quotidianos, existenciais, pequenos, grandes, bizarros - cadê suas histórias do Metrô? Ouço Miho Hatori, Ecdysis. Me recordo da vez que mostrei um clipe dela, tentando te convencer de que rock alternativo japonês e coreano não eram tão chatos assim - pela internet você sempre me dizia que não assistira ao que te enviara, pois tinha medo de clicar em links com caracteres que não conhecia. A produtora do clipe de Barracuda era uma Mariana Castro - rimos no QGinho. Muito tempo depois, Marcos daria um "checkin" no QGinho, pelo Face - estávamos Yane e eu também, foi dia dois de junho. Começava ali uma revolução? Começava, mas foi interrompida no meio do caminho. Ainda me lembro da terça-feira, vinte e sete de agosto, lá pelo meio-dia, em que encontrei Yane na Sé e perguntei se ele tinha te visto, conversamos sobre você, estávamos preocupados, mas esperançosos de que você já trilhava um novo caminho para a vida. Doze horas depois... você abandonava a "não-morte", como dizem os índios Bororo. Troco de disco, ponho Caetano Veloso, Abraçaço. Foi você quem mo mostrou pela primeira vez. Questionei se você apenas queria me mostrar a música, ou se queria falar por ela. Era a segunda opção. A música? Estou triste. Há tempos evito este disco. Sempre soube que me traria lágrimas: há uma coisa que há muito queria te dizer. Guardo isso como uma relíquia, como disse Débora. Esta carta que agora te escrevo, tenho ela escrita - o essencial dela - desde muito. Não que me faltasse coragem de dizê-lo, é que esperava falar pessoalmente - diante da impossibilidade... Sei que você sabe, que você sabia. Isso era claro e óbvio, eu apenas não dera conta de nomeá-lo. Esse sentimento ganhou nome com o disco do Caetano apresentado por você. Coincidência, não? Tantas. Estou triste, estou muito triste, o que será que existe, o que quer que seja. Me sinto vazio, mas não adianta estar farto: aprendi a aceitar certas coisas da vida. Perdi meu medo do porão, você viu? A Casuística talvez volte, eu assumiria seu papel de co-editor, Daisy como editora. Uma amiga sua, Daniela Nascimento, me perguntou de você esta semana - na verdade do seu livro, que eu pretendo ainda lançar um dia: seus cadernos estão aqui comigo, um tesouro. A Augusta não tem a graça de outrora, e não é porque ela mudou. Alberta, da noite do famoso "Fanoruti", reabriu. Conheci o apartamento novo do Djalma. Achei uma nova Ruth, a balconista. Semana que vem vou para Buenos Aires, cidade que você planejava conhecer. Tenho a impressão de que você passou por um sonho meu. São duas da manhã, chove lá fora. Vida sem utopia, não acredito que exista. A minha utopia está em reencontrá-la - para além dos reencontros diários por SP. Eu tinha tantas coisas pra te contar - imagino que você também. Poderia elencá-las aqui, mas seria apenas para fugir do essencial, como fiz outras vezes. Enquanto escuto Abraçaço me baixa um sentimento sutil de conforto, parece que estou em sua companhia - há algo a mais no ar de casa hoje. O dia e o disco se encaminham para o fim - toca Gayana. O amor que vive em mim/ vou agora revelar/ este amor que não tem fim/ já não posso em mim guardar/ eu amo muito você/ eu amo muito você/ eu não vou mais me calar/ eu não vou mais esconder/ este segredo guardado/ bem lá no fundo do peito/ eu amo muito você/ eu amo muito você/ não adianta fugir/ não adianta fingir/ já me cansei de sofrer/ por não poder lhe dizer/ eu amo muito você/ eu amo muito você. É Caetano, não sei para quem ele canta. Sou eu também, e canto para você, Missoneta. E por que escolhi dizer isso agora? Também não sei. Talvez para poder concluir minha ecdise, talvez para poder deixar você partir, talvez porque não coubesse mais em mim esse segredo (que todo mundo sabia, mas era segredo), talvez porque precisasse dividir essa minha relíquia. Você sabia, tenho certeza, isso era óbvio na nossa relação, mas mesmo assim eu precisava te dizer: eu amo muito você!

São Paulo, 16 de novembro de 2014.

Para Patrícia Misson, que eu tanto amo e tanta falta faz.