Eu escrevia sobre política.
Citava Comte-Sponville, Rancière, Rawls, Nelson Rodrigues - você
talvez me chamasse de academicista, só para me provocar, e escutaria
toda minha justificativa de que estou longe disso, para me responder,
rindo, ao fim: "calma, Dalmorito, não se ofenda, gosto de você
assim mesmo". No Face, Marcos pôs uma foto na qual antevi seu
comentário: "hahahaha, aí, sim, Marcos!" Era um Pica-Pau
de pelúcia defronte uma cachoeira - Chapada dos Veadeiros, se não
me equivoco. Não perguntei, mas tenho certeza que o intuito dele foi
o de fazer esse agrado para você - ele também deve ter antevisto
seu comentário. Havia me deparado com um Pica-Pau assim na República
ainda esta semana - me lembrei de você e a incompletude da vida
tatuada no seu braço. Pica-Pau filosófico-existencialista - só
você para subverter desse jeito! Tenho andado num período estranho:
não é desânimo, não é a dor da tua ausência - o vazio segue,
porém tenho conseguido a cada dia preenchê-lo de memórias e da
alegria de ter te conhecido -, não sei ao certo o que é. Penso ser
uma das minhas ecdises. Que pele nasce sob essa que, morta, tento me
desvencilhar? Há você nessa pele nova, por mais que não esteja
presente da mesma forma que nas minhas ecdises anteriores. Queria te
perguntar "o que faço" diante das minhas pequenas dúvidas
e angústias do dia a dia. Queria pedir seus conselhos sobre garotas
- que raios se faz quando começa a tocar Pela luz dos olhos teus,
que você cantarolava quando falava do Marcelo? Queria te abraçar
para além do meu abraço simbólico que te dou toda vez que passo
pelo Charm - você faz tanta falta, Misson! Queria palpitar nos seus
dilemas quotidianos, existenciais, pequenos, grandes, bizarros - cadê
suas histórias do Metrô? Ouço Miho Hatori, Ecdysis. Me recordo da
vez que mostrei um clipe dela, tentando te convencer de que rock
alternativo japonês e coreano não eram tão chatos assim - pela
internet você sempre me dizia que não assistira ao que te enviara,
pois tinha medo de clicar em links com caracteres que não conhecia.
A produtora do clipe de Barracuda era uma Mariana Castro - rimos no
QGinho. Muito tempo depois, Marcos daria um "checkin" no
QGinho, pelo Face - estávamos Yane e eu também, foi dia dois de
junho. Começava ali uma revolução? Começava, mas foi interrompida
no meio do caminho. Ainda me lembro da terça-feira, vinte e sete de
agosto, lá pelo meio-dia, em que encontrei Yane na Sé e perguntei
se ele tinha te visto, conversamos sobre você, estávamos
preocupados, mas esperançosos de que você já trilhava um novo
caminho para a vida. Doze horas depois... você abandonava a
"não-morte", como dizem os índios Bororo. Troco de disco,
ponho Caetano Veloso, Abraçaço. Foi você quem mo mostrou pela
primeira vez. Questionei se você apenas queria me mostrar a música,
ou se queria falar por ela. Era a segunda opção. A música? Estou
triste. Há tempos evito este disco. Sempre soube que me traria
lágrimas: há uma coisa que há muito queria te dizer. Guardo isso
como uma relíquia, como disse Débora. Esta carta que agora te
escrevo, tenho ela escrita - o essencial dela - desde muito. Não que
me faltasse coragem de dizê-lo, é que esperava falar pessoalmente -
diante da impossibilidade... Sei que você sabe, que você sabia.
Isso era claro e óbvio, eu apenas não dera conta de nomeá-lo. Esse
sentimento ganhou nome com o disco do Caetano apresentado por você.
Coincidência, não? Tantas. Estou triste, estou muito triste, o que
será que existe, o que quer que seja. Me sinto vazio, mas não
adianta estar farto: aprendi a aceitar certas coisas da vida. Perdi
meu medo do porão, você viu? A Casuística talvez volte, eu
assumiria seu papel de co-editor, Daisy como editora. Uma amiga sua,
Daniela Nascimento, me perguntou de você esta semana - na verdade do
seu livro, que eu pretendo ainda lançar um dia: seus cadernos estão
aqui comigo, um tesouro. A Augusta não tem a graça de outrora, e
não é porque ela mudou. Alberta, da noite do famoso "Fanoruti",
reabriu. Conheci o apartamento novo do Djalma. Achei uma nova Ruth, a
balconista. Semana que vem vou para Buenos Aires, cidade que você
planejava conhecer. Tenho a impressão de que você passou por um
sonho meu. São duas da manhã, chove lá fora. Vida sem utopia, não
acredito que exista. A minha utopia está em reencontrá-la - para
além dos reencontros diários por SP. Eu tinha tantas coisas pra te
contar - imagino que você também. Poderia elencá-las aqui, mas
seria apenas para fugir do essencial, como fiz outras vezes. Enquanto
escuto Abraçaço me baixa um sentimento sutil de conforto, parece
que estou em sua companhia - há algo a mais no ar de casa hoje. O
dia e o disco se encaminham para o fim - toca Gayana. O amor que vive
em mim/ vou agora revelar/ este amor que não tem fim/ já não posso
em mim guardar/ eu amo muito você/ eu amo muito você/ eu não vou
mais me calar/ eu não vou mais esconder/ este segredo guardado/ bem
lá no fundo do peito/ eu amo muito você/ eu amo muito você/ não
adianta fugir/ não adianta fingir/ já me cansei de sofrer/ por não
poder lhe dizer/ eu amo muito você/ eu amo muito você. É Caetano,
não sei para quem ele canta. Sou eu também, e canto para você,
Missoneta. E por que escolhi dizer isso agora? Também não sei.
Talvez para poder concluir minha ecdise, talvez para poder deixar
você partir, talvez porque não coubesse mais em mim esse segredo
(que todo mundo sabia, mas era segredo), talvez porque precisasse
dividir essa minha relíquia. Você sabia, tenho certeza, isso era
óbvio na nossa relação, mas mesmo assim eu precisava te dizer: eu
amo muito você!
São Paulo, 16 de novembro de 2014.
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