sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Mariposas, flores, jardineiros e os ventos da morte a cultivar a vida [diálogos com a dança]

O corpo nu, de costas, sob a luz fraca, não permite identificar de início se se trata de homem ou mulher. E a questão principal ali está para além de gênero: temos uma pessoa, um corpo humano. A baixa intensidade da luz cria relevos inusitados no corpo que se retorce. Em certos momentos, o corpo em seu lento mover se deforma - ainda assim, o que há ali, em seus relevos desconhecidos, em sua deformidade, é um corpo humano. Em Uma batida de uma borboleta, Maki Watanabe diz querer dançar como uma mariosa girando em torno de uma lâmpada. O corpo tenso e teso, em agonia, me faz perguntar: seria em volta da luz da Little Boy que Watanabe dança? Ou a referência é pesada demais, e posso ser menor, mais mesquinho, e pensar que a lâmpada que mariposamente giramos em volta não precisa ser de uma destruição instantânea, pode ser do nosso quotidiano baço e banal, feita de brilhos artificais que não nos levam a lugar algum?
Estou no Centro de Referência da Dança de São Paulo, no Viaduto do Chá. É minha segunda experiência com Butô. A primeira, Sankai Juku na imensidão do teatro Alfa, me fez perder algo desse caráter minuciosamente humano que Watanabe e Zaitsu me trazem e me tocam.
Na segunda metade, Gyohei Zaitsu me emociona com seu Uma flor sem nome. Mesmo sem ter lido o programa, é perceptível notar como morte e vida convivem naquele corpo que se apresenta sem gênero - ou com todos os gêneros -, sob a luz inicialmente tênue. Morte e vida, destruição e renascimento, devastação e esperança. Em terra devastada, aquele corpo se faz esperança - de inicio, a esperança parece renascer à custa de lucidez. Vale a pena a esperança quando não há sequer solo onde ela possa brotar? me pergunto. Zaitsu defende que sim: a flor a desabrochar - e o que parecia loucura se transforma em realidade. Não é a flor de Drummond, não se deve parar tudo para vê-la surgir no asfalto, porque não há mais asfalto, e é de se questionar se há ainda alguém para poder observá-la. É uma flor e nada mais. Em torno, os seres invisíveis, as almas perdidas, e o jardineiro esperançoso orgulhoso de seu cultivo. Diz o programa: "O vento sopra da terra da morte/ O ar está repleto de seres invisíveis e desconhecidos/ Nele, as almas estão perdidas tranqüilamente/ Nutrindo a loucura de uma flor desabrochando.../ Uma flor se desabrochou graças a todos os cadáveres...".
Saio do CRD com uma frase lancinante que minha mãe falou pouco tempo atrás: "a gente não morre de uma vez, a gente vai morrendo aos poucos. Viver é morrer aos pedaços". Depois desses dois espetáculos, interrogo: para além da morte, o que há? E penso que talvez morrer seja renascer em terras até então aparentemente áridas e estéreis, das mãos de um jardineiro aparentemente louco.

18 de setembro de 2015.

agradeço ao Luis F. pelo convite para a dança!


terça-feira, 15 de setembro de 2015

Uma conversa na portaria do prédio

Vida de porteiro em prédio de classe média de São Paulo não é fácil. Além de ganhar pouco, ouve muito - de que ganham demais (miseráveis mil reais por mês) pro pouco que trabalham a todo tipo de doutrinamento dos moradores que se crêem ilustrados. Mas a coisa começa a assustar quando o porteiro assume esse discurso classe-média-fascista - o que não é difícil, visto que os moradores que se crêem ilustrados não fazem nada mais que repetir sem qualquer mostras de reflexão Datena, Rezende, Bonner, Sheherazade e "formadores de opinião" afins.
No meu prédio há um senhor que volta e meia está parlando seu discurso fascista aos porteiros que, presos pela profissão ao pouco espaço que possuem, não têm como fugir de tal vilania (esse mesmo senhor era sempre simpático e educado comigo, até a vez que, na frente de sua platéia, peguei meu jornal e não aceitei sua verdade de que tudo de ruim é culpa do PT, lembrando-o que havia também uma crise internacional, que se arrasta desde 2008, não me cumprimenta mais desde então, numa clara mostra de apreço pela democracia e pela pluralidade de opiniões).
Hoje, o porteiro da tarde - que, apesar de pernambucano, tenta ser um bom paulistano imitando aqueles que dizem que nordestino (ele) é quem estraga São Paulo - conversava com outro morador - branco, claro. Falavam mal do Haddad e dos novos limites de velocidade na cidade - medida que tem como objetivo (alcançado, conforme primeiros levantamentos) diminuir os acidentes automobilísticos e permitir que o trânsito flua sem percalços. O porteiro dizia que agora tinha que ir devagar na Marginal - ele tem uma moto - e, pior, se acelerasse além do limite, tomaria multa - "esse governo petista só quer ganhar em cima do povo". Eu, já com vontade de chorar, me segurando para não intervir, pensava "obra pro povo é oito bilhões de reais para não despoluir o rio Tietê, é ponte e viaduto superfaturados, é trem superfaturado, é novas pistas da marginal a preço de trilho de metrô, é conta no HSBC da Suiça", quando intervêm o morador: "e o pior, eles dizem que na Marginal tem muito atropelamento. Mas quem é atropelado? Mendigo, drogado, ambulante." Espero pela conclusão do raciocínio, mas o raciocínio está concluído, a ponto do porteiro concordar: "é isso mesmo!". O elevador chega, adentro querendo sumir logo dali. Ainda escuto o morador reclamar "aí somos nós que pagamos a conta". Contra minha vontade, deve me incluir no grupo dos "somos nós", esses que perdem velocidade por causa de vidas que não valem nada.

15 de setembro de 2015.

Malditos pedestres (que resolvem dirigir).