O
corpo nu, de costas, sob a luz fraca, não permite identificar de
início se se trata de homem ou mulher. E a questão principal ali
está para além de gênero: temos uma pessoa, um corpo humano. A
baixa intensidade da luz cria relevos inusitados no corpo que se
retorce. Em certos momentos, o corpo em seu lento mover se deforma -
ainda assim, o que há ali, em seus relevos desconhecidos, em sua
deformidade, é um corpo humano. Em Uma batida de uma borboleta,
Maki Watanabe diz querer dançar como uma mariosa girando em
torno de uma lâmpada. O corpo tenso e teso, em agonia, me faz
perguntar: seria em volta da luz da Little Boy que Watanabe dança?
Ou a referência é pesada demais, e posso ser menor, mais mesquinho,
e pensar que a lâmpada que mariposamente giramos em volta não
precisa ser de uma destruição instantânea, pode ser do nosso
quotidiano baço e banal, feita de brilhos artificais que não nos
levam a lugar algum?
Estou
no Centro de Referência da Dança de São Paulo, no Viaduto do Chá.
É minha segunda experiência com Butô. A primeira, Sankai Juku na
imensidão do teatro Alfa, me fez perder algo desse caráter
minuciosamente humano que Watanabe e Zaitsu me trazem e me tocam.
Na
segunda metade, Gyohei Zaitsu me emociona com seu Uma flor sem
nome. Mesmo sem ter lido o
programa, é perceptível notar como morte e vida convivem naquele
corpo que se apresenta sem gênero - ou com todos os gêneros -, sob
a luz inicialmente tênue. Morte e vida, destruição e renascimento,
devastação e esperança. Em terra devastada, aquele corpo se faz
esperança - de inicio, a esperança parece renascer à custa de
lucidez. Vale a pena a esperança quando não há sequer solo onde
ela possa brotar? me pergunto. Zaitsu defende que sim: a flor a
desabrochar - e o que parecia loucura se transforma em realidade. Não
é a flor de Drummond, não se deve parar tudo para vê-la surgir no
asfalto, porque não há mais asfalto, e é de se questionar se há
ainda alguém para poder observá-la. É uma flor e nada mais. Em
torno, os seres invisíveis, as almas perdidas, e o jardineiro
esperançoso orgulhoso de seu cultivo. Diz o programa: "O vento
sopra da terra da morte/ O ar está repleto de seres invisíveis e
desconhecidos/ Nele, as almas estão perdidas tranqüilamente/
Nutrindo a loucura de uma flor desabrochando.../ Uma flor se
desabrochou graças a todos os cadáveres...".
Saio
do CRD com uma frase lancinante que minha mãe falou pouco tempo
atrás: "a gente não morre de uma vez, a gente vai morrendo aos
poucos. Viver é morrer aos pedaços". Depois desses dois
espetáculos, interrogo: para além da morte, o que há? E penso que
talvez morrer seja renascer em terras até então aparentemente
áridas e estéreis, das mãos de um jardineiro aparentemente louco.
18
de setembro de 2015.
agradeço
ao Luis F. pelo convite para a dança!
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