quarta-feira, 16 de março de 2016

Lula na Casa Civil: a confissão do golpe

Aqueles que entoam o "não vai ter golpe" não podem estar mais enganados: a ida de Lula para a Casa Civil é a admissão velada de que há um golpe de Estado em estágio avançado.
Lula pode não ter feito faculdade - diferentemente da maioria dos cabeças do golpe em curso e dos seus apoiadores apedeutas dos bairros nobres da nação -, mas é inteligente e demonstrou isso com tudo o que aprendeu ao longo de sua vida pública. Depois de afirmar que seria candidato em 2018 (eu ainda acho que ele não queimaria seu capital político com um terceiro mandato, antes tentaria a presidência da ONU, não fosse todo o trabalho dos seus inimigos de pô-lo fora da disputa da presidência do país), assumir um cargo no governo Dilma como o fez, às pressas e sem outras mudanças de imediato, seria um suicídio eleitoral - estivéssemos nós em condições democráticas normais. Não estamos, e assumir a Casa Civil foi a forma que o ex-presidente achou para tentar garantir eleições livres em 2018 - seja para ele ou para quem for do PT (e da esquerda?) participar.
(Parênteses para meia teoria conspiratória: a impressão que se tem é que sua prisão (na Guantanamo brasileira, conforme alcunha corrente da carceragem da PF em Curitiba) era para breve, ao que se seguiria o processo de impeachment de Dilma e sua destituição do cargo, um governo tampão "de união nacional" (vulgo PMDB, PSDB e os donos da voz) até 2018, quando novas eleições correriam "normalmente", sem perigo de vitória petista - tudo feito sob a supervisão do judiciário brasileiro e da nossa Grande Imprensa, ambos de notória imparcialidade).
A nomeação de Lula para a Casa Civil foi um belo contra-golpe político: no plano interno, dá ao governo petista um alívio - pequeno e por si só insuficiente - nas negociações com o legislativo, retardando o impeachment num primeiro momento, com possibilidade de freá-lo tão logo consiga se estabelecer (Paulo Henrique Amorim fala que Lula já estaria fechado com a maioria do PMDB, e a governabilidade, garantida); no plano internacional é que seu lance é grandioso: ao entrar no governo, uma destituição da presidenta deixaria escancarado ao mundo nossas instituições de república bananeira (em pé de igualdade com nossos hermanos paraguaios, de má-lembrança), o que traria sanções ao país, além de ferir nosso orgulho nacional tão pós-moderno e ao mesmo tempo tão século XIX - visível nas manifestações de domingo ou em manifestações de tucanos ou nas manifestações tanto dos políticos do Partido Conservador quanto do Partido Liberal -, de sermos quase primeiro mundo, não fosse a maioria da população desta terra, esse populacho feio e ignorante feito de gente mestiça e pobre.
O acerto do lance de Lula ficou evidente no destempero dos principais articulistas do golpe, Moro pelo judiciário e Globo pela Grande Imprensa e partidos de oposição de direita, ao divulgar conversas da presidenta da República - um crime contra a segurança nacional. Foi a comprovação de que o golpe estava em curso e que o contra-golpe também - "Nietzche", Marx e Hegel foi a primeira tentativa destrambelhada de barrar o contra-golpe. Se a espionagem da presidenta por parte da NSA (sigilosa, não fosse o WikiLeaks) mereceu congelamento das relações brasileiras com o todo-poderoso Estados Unidos, a espionagem e divulgação de conversas privadas da Presidente da República, com claro intuito de perturbar a ordem pública - o próprio Juiz admite de que não há indícios nas conversas -, merece respostas à altura, contra o juiz, contra o Grupo Globo de comunicação (e suas concessões públicas), e demais envolvidos nessa lastimável página de nossa história. 
Como já disse em outra análise: o Brasil hoje não se divide entre petistas e anti-petistas, coxinhas e petralhas, como a Grande Imprensa tenta fazer crer (e muitos acreditam); mas entre os defensores da democracia (falha, capenga, mas ainda assim sob o manto do direito e com possibilidades de aprimoramentos) e de uma ditadura com fortes traços fascistas.


PS: na CBN ouço da manifestação em Brasília, acompanhada pela PM e pelo exército. Desde a tentativa de locaute dos caminhoneiros, ano passado, tenho achado que o que o Exército mais quer é ter que entrar no jogo, garantindo a normalidade institucional ao obedecer as ordens das presidenta, e poder cobrar a fatura com o fim de Comissão da Verdade qualquer coisa relacionada ao período em que eles encabeçaram a ditadura nestes Tristes Trópicos - aplaudidos, diga-se de passagem, pelos mesmos que hoje aplaudem Gilmar Mendes, Sérgio Moro e seu jagunços.

PS2: é hora de Lula rever o documentário da BBC "Além do Cidadão Kane" (Beyond Citizen Kane), de Simon Hargo, em que um então político de esquerda homônimo ao ministro da Casa Civil falava do imperativo em se romper com o monopólio da comunicação do país, sob o risco de nossa democracia nunca poder triunfar por completo [http://j.mp/1XwkfRC].

16 de março de 2016.



domingo, 13 de março de 2016

Querem que o Brasil se torne uma grande favela

Há um certo ethos corrente nestes Tristes Trópicos que tento entender, sem muito sucesso. É uma forma de pensar e se posicionar com relação ao mundo, em especial diante do Outro, que me soa absurda - por mais corriqueira que seja. O "complexo de vira-latas", enunciado por Nelson Rodrigues ajuda, mas não dá conta de tudo, pois parece se aplicar melhor à relação com o estrangeiro, em que nos vemos inferiores em tudo - menos no futebol, único momento da nação cantar que é brasileira, "com muito orgulho, com muito amor", apesar que depois daquele lindo 7 a 1... O que me intriga é a forma como essa auto-imagem caquética é reorganizada nas relações entre as classes sociais, no interior do território.
Parece que precisamos o tempo todo de comprovação do Outro de nosso valor, e essa comprovação se dá pela negativa do Outro - que beira a negação, almeja a negação do Outro, mas não sobrevive se negá-lo -, com o regozijo do fracasso alheio (acho que isso se destaca tanto pra mim por meu pai sempre ter combatido essa forma de apreender o mundo, recordo a vez que tentei justificar minha nota baixa comparado à de colegas). Me vem como um exemplo o professor de ética que tive na graduação em filosofia: não perdia uma oportunidade de tentar diminuir seus colegas ou sua desafeta-mor, Marilena Chauí - em compensação, raríssimas vezes foi que demonstrou ter algum conteúdo além de ressentimento e ego. Outro exemplo eu já trouxera em crônica antiga, em que questionava a satisfação desditosa de pessoas abusarem de pequenos poderes, quando tem a oportunidade (como ficar no lado esquerdo da escada rolante propositadamente), que nada acrescentam à sua vida pífia [http://j.mp/cG161009]. Um terceiro exemplo: os tais "privilégios" que muitos se indignam e querem ver abolidos (como os marajás colloridos), na maioria das vezes não passam de direitos legítimos e que deveriam ser extendidos a toda a população - dois meses de férias, trabalho remoto, trinta horas, se tanto, de expediente por semana, salário na casa dos cinco dígitos: isso deveria ser uma possibilidade factível à maioria da população, e não apenas a meia dúzia de togados.
Somos movidos a ressentimentos e, incapazes de nos atribuir uma valoração positiva, sustentamos nossa auto-imagem na derrota do nosso próximo, que nos faz esquecer temporariamente o fracasso que também somos.
Vejo Donald Trump "caosando" nas prévias republicanas. Penso nas tais "pessoas de sucesso" (sem entrar no mérito de que sucesso é esse) daquelas terras, que estufam o peito para contar sua história de vida, que se tornam modelos para seus conterrâneos. Aqui, no Brasil, não teriam vez: seriam vistos não apenas sem admiração, mas com inveja, dessas sangue nos olhos, das pessoas que trazem o olhar sempre atento, sempre esperançoso de uma queda triunfal no próximo passo - "aqui se faz, aqui se paga", justificam. Exceção feita à nossa commodity for export, jogador de futebol, e ao Sílvio Santos. Talvez porque saibamos, ainda que não queiramos admitir, que a mobilidade social no Brasil é para inglês ver e nunca ascenderemos à casta dos senhores da Casa Grande, que nos incomoda os poucos exemplos que confirmam a regra.
Lula, principalmente após a vitória nas eleições de 2002, assumiu com ênfase esse discurso positivo sobre si, sobre seu passado, sua história - ao invés de se fazer sobre o negativo do Outro, como fez FHC. Foi o que recordou no seu discurso após os eventos bananeiros de 4 de março, ao comentar, por exemplo, o quanto cobra por palestra. Um migrante sem nível superior negar o complexo de vira-latas para o mundo? Uma afronta dupla para a classe-média, média-alta brasileira. Para piorar: pressionado, cresceu ainda mais na auto-afirmação de si.
A prisão, seqüestro, condução coercitiva ou que nome se queira dar ao ocorrido com Lula dia 4, além do pedido cafajeste dos promotes do Ministério Público de São Paulo, dia 10, trouxe a uma significativa parcela da população esse prazer pusilânime de ver o Outro se dar mal - mais, de mostrar a esse nordestino petulante seu devido lugar. O que esses brasileiros não se deram conta - porque a Grande Imprensa não entregou mastigado, e seu funcionários são covardes e atiram no próprio pé na esperança de ganhar um bônus no fim do ano - é que aplaudir o ato ilegal contra Lula e o pedido de prisão contra o ex-presidente (independente de a suspeita de corrupção vir a ser confirmada no futuro ou não), é aceitar que a polícia, a justiça e quem mais for aja fora da lei, conforme a conveniência de momento a si e aos seus interesses - banditismo, para usar o termo que Datenas da vida tanto gostam de aplicar aos pretos pobres periféricos. Diante de pessoas acima da lei, corrupção e desvio de dinheiro se tornam problemas menores diante da violação dos direitos humanos e de crimes contra a humanidade. Esses brasileiros, que hoje ocuparam as ruas de várias cidades do país e tem a fé cega de que estão do lado certo, do lado "do bem", podem, mesmo sem mudar de posição, serem vistos como "do mal" pelas mesmas pessoas que agora apóiam, e serem perseguidas, presas, torturadas, mortas - vide Nelson Rodrigues, entusiasta do golpe de 64, até prenderem seu filho.
Mas essas pessoas - classe-média, média-alta, branca, nível superior, moradora de bairros abastados - que vibram com as agruras injustas contra Lula não deixam de ser coerentes: o fazem também quando polícia mata "bandido", quando prendem preto pobre periférico em poste, quando chacinam craqueiros, quando prendem e espancam sem-terra e sem-teto. Sua ignorância crassa (apesar do diploma da USP) não permite que entendam que a igualdade é boa quando estão todos sob o abrigo da lei, e que quanto mais direitos todos tiverem, melhor. Só enxergam sua realidade mais estreita, por isso acham sublime a igualdade que rebaixa todos ao seu nível, que põe seus iguais junto a eles, como moradores da senzala. Seu ressentimento não permite que percebam sua verdadeira condição: acham que por serem escravos domésticos e servirem diretamente a mesa do senhor, não são escravos. Se achavam ruim Lula ter transformado aeroporto em rodoviária, mal esperam a vez de Globo e Moro transformarem o Brasil todo numa favela - terra sem lei, em que o Estado é tão criminoso quanto o dito "bandido", onde ninguém tem direito a nada, onde todos são suspeitos e não há para onde correr.


13 de março de 2016