Há
um certo ethos corrente nestes Tristes Trópicos que tento entender,
sem muito sucesso. É uma forma de pensar e se posicionar com relação
ao mundo, em especial diante do Outro, que me soa absurda - por mais
corriqueira que seja. O "complexo de vira-latas", enunciado
por Nelson Rodrigues ajuda, mas não dá conta de tudo, pois parece
se aplicar melhor à relação com o estrangeiro, em que nos vemos
inferiores em tudo - menos no futebol, único momento da nação
cantar que é brasileira, "com muito orgulho, com muito amor",
apesar que depois daquele lindo 7 a 1... O que me intriga é a forma
como essa auto-imagem caquética é reorganizada nas relações entre
as classes sociais, no interior do território.
Parece
que precisamos o tempo todo de comprovação do Outro de nosso valor,
e essa comprovação se dá pela negativa do Outro - que beira a
negação, almeja a negação do Outro, mas não sobrevive se negá-lo
-, com o regozijo do fracasso alheio (acho que isso se destaca tanto
pra mim por meu pai sempre ter combatido essa forma de apreender o
mundo, recordo a vez que tentei justificar minha nota baixa comparado
à de colegas). Me vem como um exemplo o professor de ética que tive
na graduação em filosofia: não perdia uma oportunidade de tentar
diminuir seus colegas ou sua desafeta-mor, Marilena Chauí - em
compensação, raríssimas vezes foi que demonstrou ter algum
conteúdo além de ressentimento e ego. Outro exemplo eu já trouxera
em crônica antiga, em que questionava a satisfação desditosa de
pessoas abusarem de pequenos poderes, quando tem a oportunidade (como
ficar no lado esquerdo da escada rolante propositadamente), que nada
acrescentam à sua vida pífia [http://j.mp/cG161009]. Um terceiro
exemplo: os tais "privilégios" que muitos se indignam e
querem ver abolidos (como os marajás colloridos), na maioria das
vezes não passam de direitos legítimos e que deveriam ser
extendidos a toda a população - dois meses de férias, trabalho
remoto, trinta horas, se tanto, de expediente por semana, salário na
casa dos cinco dígitos: isso deveria ser uma possibilidade factível
à maioria da população, e não apenas a meia dúzia de togados.
Somos
movidos a ressentimentos e, incapazes de nos atribuir uma valoração
positiva, sustentamos nossa auto-imagem na derrota do nosso próximo,
que nos faz esquecer temporariamente o fracasso que também somos.
Vejo
Donald Trump "caosando" nas prévias republicanas. Penso
nas tais "pessoas de sucesso" (sem entrar no mérito de que
sucesso é esse) daquelas terras, que estufam o peito para contar sua
história de vida, que se tornam modelos para seus conterrâneos.
Aqui, no Brasil, não teriam vez: seriam vistos não apenas sem
admiração, mas com inveja, dessas sangue nos olhos, das pessoas que
trazem o olhar sempre atento, sempre esperançoso de uma queda
triunfal no próximo passo - "aqui se faz, aqui se paga",
justificam. Exceção feita à nossa commodity for export,
jogador de futebol, e ao Sílvio Santos. Talvez porque saibamos,
ainda que não queiramos admitir, que a mobilidade social no Brasil é
para inglês ver e nunca ascenderemos à casta dos senhores da Casa
Grande, que nos incomoda os poucos exemplos que confirmam a regra.
Lula,
principalmente após a vitória nas eleições de 2002, assumiu com
ênfase esse discurso positivo sobre si, sobre seu passado, sua
história - ao invés de se fazer sobre o negativo do Outro, como fez
FHC. Foi o que recordou no seu discurso após os eventos bananeiros
de 4 de março, ao comentar, por exemplo, o quanto cobra por
palestra. Um migrante sem nível superior negar o complexo de
vira-latas para o mundo? Uma afronta dupla para a classe-média,
média-alta brasileira. Para piorar: pressionado, cresceu ainda mais
na auto-afirmação de si.
A
prisão, seqüestro, condução coercitiva ou que nome se queira dar
ao ocorrido com Lula dia 4, além do pedido cafajeste dos promotes do
Ministério Público de São Paulo, dia 10, trouxe a uma
significativa parcela da população esse prazer pusilânime de ver o
Outro se dar mal - mais, de mostrar a esse nordestino petulante seu
devido lugar. O que esses brasileiros não se deram conta - porque a
Grande Imprensa não entregou mastigado, e seu funcionários são
covardes e atiram no próprio pé na esperança de ganhar um bônus
no fim do ano - é que aplaudir o ato ilegal contra Lula e o pedido
de prisão contra o ex-presidente (independente de a suspeita de
corrupção vir a ser confirmada no futuro ou não), é aceitar que a
polícia, a justiça e quem mais for aja fora da lei, conforme a
conveniência de momento a si e aos seus interesses - banditismo,
para usar o termo que Datenas da vida tanto gostam de aplicar aos
pretos pobres periféricos. Diante de pessoas acima da lei, corrupção
e desvio de dinheiro se tornam problemas menores diante da violação
dos direitos humanos e de crimes contra a humanidade. Esses
brasileiros, que hoje ocuparam as ruas de várias cidades do país e
tem a fé cega de que estão do lado certo, do lado "do bem",
podem, mesmo sem mudar de posição, serem vistos como "do mal"
pelas mesmas pessoas que agora apóiam, e serem perseguidas, presas,
torturadas, mortas - vide Nelson Rodrigues, entusiasta do golpe de
64, até prenderem seu filho.
Mas
essas pessoas - classe-média, média-alta, branca, nível superior,
moradora de bairros abastados - que vibram com as agruras injustas
contra Lula não deixam de ser coerentes: o fazem também quando
polícia mata "bandido", quando prendem preto pobre
periférico em poste, quando chacinam craqueiros, quando prendem e
espancam sem-terra e sem-teto. Sua ignorância crassa (apesar do
diploma da USP) não permite que entendam que a igualdade é boa
quando estão todos sob o abrigo da lei, e que quanto mais direitos
todos tiverem, melhor. Só enxergam sua realidade mais estreita, por
isso acham sublime a igualdade que rebaixa todos ao seu nível, que
põe seus iguais junto a eles, como moradores da senzala. Seu ressentimento não
permite que percebam sua verdadeira condição: acham que por serem
escravos domésticos e servirem diretamente a mesa do senhor, não
são escravos. Se achavam ruim Lula ter transformado aeroporto em
rodoviária, mal esperam a vez de Globo e Moro transformarem o
Brasil todo numa favela - terra sem lei, em que o Estado é tão
criminoso quanto o dito "bandido", onde ninguém tem direito a nada, onde todos são suspeitos e não há para onde correr.
13 de março de 2016
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