domingo, 7 de agosto de 2016

Quadrilha versão pocket

Em minha última visita a Pato Branco, um amigo me levou a um café recém aberto na cidade - a cafeteria a que eu estava habituado ele se recusou a ir, depois que encontrou bigatos em sua comida, motivo que me pareceu digno.
Estamos lá, conversando sobre várias coisas, dentre elas relacionamentos, quando a dona do estabelecimento se aproxima, troca duas palavras e sai. Nesse breve diálogo, ele diz seu nome. Apesar de ser ruim pra juntar rosto com nome, me esforcei pra ver aquele rosto como conhecido - o nome era. Perguntei se o sobrenome dela era aquele que eu imaginava - confirmou. Então contei: quase apanhei por causa dessa mulher, uns vinte anos atrás. Acho que foi a única vez que (quase) briguei por causa de mulher.
Eu tinha treze, no máximo quatorze anos. Tinha tido uma paquera que não foi muito além disso com a irmã do meio da dona do estabelecimento, quando freqüentávamos a AABB - adolescente tímido em sociedade machista é uma maravilha! A mais velha, tenho a impressão, também havia me olhado estranho algumas vezes - pouco depois seria miss Pato Branco, mas era a menos bonita, na minha opinião. A mais nova, quem se interessou foi um amigo. Falava e falava e falava dela. Louvores e louvores à beleza da menina (se eu tinha, se muito, quatorze, ele tinha treze e ela, doze) declamados em meus ouvidos já um pouco cansados daquela lenga-lenga, seguidos sempre de lamentos e lamúrias de não conseguir nada com ela. Até que ele resolveu me perguntar o que fazer. Idéia de jacu, como dizíamos na época. Eu não tinha experiência alguma, mas tinha um ano a mais que ele, que tampouco tinha qualquer experiência. Sugeri que parasse de enrolar: "chega, diz que está a fim dela e convida pra ir no cinema" (na época havia um cinema na cidade). Ele fez quase como sugeri, apenas acrescentou um "oi, tudo bem" antes. Recebeu um não da menina, que passou então a evitá-lo, e ele quis descontar o fora pra cima de mim - não chegamos às vias de fato.
Hoje a menina é uma bela mulher, casada com um dos herdeiros da família dona da cidade; adotou, é claro, o sobrenome do marido - não sei se o marido fez o mesmo, desconfio seriamente que não. Suas irmãs, desconheço o paradeiro, nem me interessei em pesquisar. Meu amigo de infância, que há mais de uma década não troco qualquer mensagem, entre coquetéis antidepressivos e inferninhos da Augusta se formou em medicina, conseguiu arranjar uma namorada, até casou - ela trocou o sobrenome, ele, claro que não -, mora nos Estados Unidos, onde é pastor (e eu torço para que ele não seja dos que agradeceram a deus pelo massacre na boate Pulse, nem ache Trump um cara razoável). E eu, bem... eu não casei, mas tentei trocar oficialmente de sobrenome - sem sucesso, por causa do hífen e da minha preguiça -; a única vez que fui líder ou dono de algo foi de um grupo de humor em que eu era o único integrante (ao menos foi divertido), e os domingos, invés de celebrar missas ou encontrar figurões locais, passo escrevendo crônicas bobas.

07 de agosto de 2016

ps: nesse ritmo de Drummond revisitado, lembrei de um poema de Jefferson Vasques, "Quadrinha revisitada":

João comia Teresa que trepava com Beth
que não gozava com Carlos que olhava (demais) pro Fred
que enrabou o Fábio que nunca havia transado.

João saiu do Brasil, Teresa, do armário,
Beth pediu o divórcio, Carlos pulou do oitavo,
o Fred purpurinou e o Fábio,
agora é Fábia e descobriu o amor por si própria
(que não tinha entrado na história)

em: Subverso, 2009, p. 74.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Poética feminista para dramas humanos [Dança à Deriva 2016] [Diálogos com a dança]

Vértigo (vertigem em espanhol) é claramente um espetáculo feminista, de um feminismo de pouco eco nestes Tristes Trópicos: o que põe a mulher, antes de representante de um gênero ontologicamente único, como representante da humanidade. A bailarina Camila Bilbao e a escritora Camila Urioste (ambas da Bolívia) trabalham o corpo dentro de um duplo registro: como local da política, portanto receptáculo de linhas de força e poder, predominantemente passivo; e como Político, isto é, constituinte de um sujeito ativo que intervém no mundo. Se no primeiro aspecto corpo masculino e feminino guardam grandes distâncias na forma como sofrem a dominação masculina, o segundo põe mulher e homem dentro de um mesmo registro, apesar das diferenças: o de sujeitos políticos, que refletem a sociedade em que vivem, mas são capazes de refletir, reflexionar sobre essa mesma sociedade, e intervir ativamente na sua transformação. Daí a capacidade dessa poética feminista tocar e comover uma pessoa, independente do seu gênero.
O espetáculo começa com Camila a analisar e lamentar as imperfeições da pele e do corpo diante de um espelho-câmera-Outro. Ainda que essa objetificação aguda do corpo recaia especialmente sobre as mulheres, também eu me pergunto: a que olhar tento me adequar? Que Outro invisível-mas-ostensivo faz com que eu me imponha determinados comportamentos? Que mecanismo é esse que nos reduz a imagem para permitir nossa existência dentro do espetáculo? A câmera de vídeo que flagra a insegurança de Camila não é olho de Deus, que está morto, não é o da autoridade do pai, que está capenga, é então o olho de quem que ela representa - para além do nosso, capturado por esse Outro? Que artifício é esse que nos faz reduzir também os demais a imagens, a fragmentá-los em pedaços como que independentes do todo, e a julgá-los e desprezá-los por terem o que nos falta e desejamos, exatamente da forma como fazem conosco e tanto reclamamos? 
Como corpos-objetos privilegiados para consumo, as mulheres são mais visadas por esse círculo perverso - que domina a sociedade do espetáculo de alto a baixo. Camila afirma explicitamente: "mi cuerpo es político". Dessa assunção decorre uma série de conseqüências, todas elas políticas: de ter um filho ou não a subir no tubo de pole dance, passando pelo usar rosa (cor de mulher) e observar seu corpo e o corpo das demais mulheres com um distanciamento cruel. É por ser um corpo político, iminentemente e radicalmente político, que Camila precisa também estar "siempre en guardia": não é em guarda temerosa do ataque do próximo homem, é em guarda do seu próximo ato: agirá ela com relação a outra mulher como a sociedade que a oprime? A questão de gênero não é posta mais em termos de vítima e carrasco, mas da dialética oprimido-opressor exposta por Paulo Freire.
Vértigo não é a recusa de um estado, é mais profundo: é o questionar radical de si, carregando junto com esse questionamento a sociedade toda - seus defensores e seus críticos. "El abismo abajo", que ela fala próximo ao fim do espetáculo, talvez seja tudo isso que levamos sem questionar, e que ela se põe corajosamente a encarar. Camila enumera as regras para uma "boa mulher": bonita, calada, sempre maquiada, sempre sexy, sempre submissa, sempre servil, sempre sorridente. Recusa o que não serve, incorpora o que acha válido para si - seu percurso dialético a autoriza a incorporar valores "positivos" da sociedade machista, sem que nisso haja contradição ou traição da causa. Recebe admoestações por ser sujeito autônomo, que vejo fácil na boca de algumas feministas-acadêmicas que conheci:  que é "demasiado sexy para ser feminista", que o tubo do pole dace é um símbolo fálico. Pois ela não vê assim: como sujeito é capaz de ressignificar elementos do quotidiano, sem se prender a determinações heterônomas, mostra que pode ser sexy E ser feminista; que o pole dance, fora dos inferninhos, é um instrumento de conhecer o próprio corpo de forma lúdica. Vértigo se autoriza a ser feminista e combativo ao mesmo tempo que é poético e delicado. Quem a repreende por não ter asas quando ela diz que vive uma "crisis de las alas" é porque não se dignou a enxergá-la, insiste em vê-la com os velhos olhos de um velho mundo - me dou um alento de que, sim, acho que vi asas em Camila. É por ter asas - ainda que em crise -, que Camila enxerga o abismo sob seus pés e ainda assim tem a coragem de dar "un paso fuera de mi". É quando o mundo muda: do "abismo abajo, infinito arriba" ela pode se deparar com a riqueza de sua humanidade: "el abismo abajo, el infinito adentro".

04 de agosto de 2016

ps: não coube no diálogo acima, mas destaco, a exemplo do espetáculo colombiano Elogio de guerra, que comentei em outro texto, o uso da palavra, do discurso, no espetáculo: um texto muito tocante e bem inserido na coreografia - coisa que não costumo ver em obras brasileiras.